Por Silvia Viana*.
A socióloga Silvia Viana, autora de Rituais de sofrimento concedeu uma entrevista a Mauricio Duarte para a Revista da Cultura de
julho. Elaborada na efeméride dos 100 anos da Primeira Guerra Mundial, a
matéria convidava três pensadores brasileiros (Silvia Viana, Luis
Felipe Pondé e Maria da Graça Marchina Gonçalves) a refletirem sobre
nossa relação com o horror e o sofrimento. Na matéria publicada,
intitulada “A sangue frio“,
as considerações de Silvia Viana aparecem polemizando com um lugar
comum expresso em uma afirmação de Pondé – “Há um sadismo humano e um
fascínio pelo sofrimento. Às vezes erótico, outras vezes metafísico” – e
em seguida em um comentário sumário sobre a normalização e a
comercialização do sofrimento nos reality shows contemporâneos.
A entrevista completa, contudo, é muito mais extensa que o espaço
disponibilizado pela revista. Publicamos, abaixo, o texto integral
enviado pela autora ao Blog da Boitempo:
***
1. Por que o ser humano é atraído pelo horror ou por situações macabras, que geralmente envolvem o sofrimento alheio?
O fato de
sempre imputarmos aos outros a atração pelo sofrimento alheio já é
indício de que essa afirmação, tida hoje como fato inelutável, deve ser
questionada. Podemos facilmente contrapor esse pressuposto pétreo à
repulsa que, em tantos, e em nós mesmos, tais situações são capazes de
gerar. Então, a questão que nos devemos fazer não é o que nos atrai, mas
o que nos leva a crer que tal atração é constitutiva do ser humano.
Não é fácil,
aliás, muito pelo contrário, é agoniante assistirmos passivamente à
agonia: ela respinga sua própria substância ao redor. À exceção dos
psicopatas – cuja incapacidade de refletir sofrimento é mesmo
excepcional –, a indiferença diante do horror não é algo natural e sim o
resultado de uma construção social. Tanto assim que a mesma sociedade
que enxerga nas manifestações de rua, e seu saldo de vidros quebrados,
uma violência inaceitável, é capaz de destilar a demanda por mais pernas
quebradas; uma exigência que pode, do mesmo modo, arrefecer ou virar de
cabeça para baixo quando o terror estatal e espetacular, sabe-se lá
mediante qual contra poder subterrâneo, toca os juízos; então se faz
necessário um novo dispositivo para a dupla produção, de indiferença
diante das pernas e de compaixão pelas vitrines: “há uns e outros, e os
outros merecem…”. O outro sempre merece, não obstante ser objeto
infinitamente intercambiável, tornando-se passível de ser machucado ao
sabor da dominação. Até que, de vez em quando, ele morre na contramão e o
olhar do mundo torna-se capaz de se desviar do tráfego, pois sua última
agonia transborda a contrapelo: Amarildo e Douglas não são exceções, o
fato de sua dor ser socialmente sentida, sim. Então, mais uma vez, como
uma maldição, o mecanismo de distanciamento é reativado: “mas eles eram
trabalhadores, já os outros…”.
Há uma
lógica social que calibra os campos da indiferença e do intolerável.
Apesar de se tornar mais explícita em momentos de viravolta insurgente,
ela permanece despercebida por ser segunda natureza. É dessa perspectiva
que devemos abordar as infindáveis provas e contraprovas desse nosso
suposto “fascínio” pelo horror: que lógica o materializa?
2. O
fascínio que esse tipo de situação causa nas pessoas não é um fenômeno
novo. Porém, existe alguma particularidade referente ao modo como ele é
percebido atualmente?
Antes de
qualquer coisa, precisaríamos definir o tipo de situação à qual nos
referimos. Se pensarmos nas situações cruéis e/ou bizarras levadas a
cabo em reality shows, por exemplo, a questão a ser posta é:
até que ponto os programas são socialmente sentidos como tal. Não que a
brutalidade não esteja explícita, pelo contrário ela é propalada pela
própria propaganda, que nos promete embates violentos a cada temporada,
que sublinha o sofrimento dos participantes a cada rodada, que enaltece o
sangue frio dos “vencedores” etc. Contudo, a paixão pelo horror não
passa disso: propaganda de um produto cujo consumo não pode ser tido
como atestado de fascinação. Pelo contrário, os programas são tão
descartáveis quanto seus participantes, e a compulsão febril cessa assim
que é encenado o último “paredão”.
Contudo, tal
constatação é, ou deveria ser, ainda mais assustadora que o pressuposto
de sua questão, pois se trata de uma brutalidade perpetrada e
acompanhada mecanicamente. A novidade está nisso, na “banalização do
mal”, entendida aqui em seu sentido original. Ou seja, não se trata da
mera proliferação da crueldade, mas no fato dela ocorrer desprovida de
qualquer paixão – política, guerreira, estética, sádica etc. – afinal,
“é só um jogo”. O escândalo causado por Hannah Arendt, ao cunhar o
termo, estava precisamente na percepção de que Eichmann não era um
monstro, mas apenas um funcionário ordinário cumprindo suas funções
ordinárias, no caso, a logística ferroviária. Arendt nada mais fez que
traduzir a ética profissional específica do III Reich que, logo em seus
primeiros anos, expulsou de suas fileiras todos aqueles que gozavam com o
sangue alheio, substituindo-os por técnicos e gestores competentes.
Como essa ética voltou a funcionar, ainda que com outro aspecto e novas
facetas, é a questão que devemos nos fazer caso ainda consideremos o
horror horrível.
3. Qual é o papel da imprensa e da mídia em geral nisso tudo?
Não há nada
na transmissão televisionada da crueldade que já não tenha sólido
assentamento em nossa reprodução social. Então a questão jamais deve ser
posta, em primeiro lugar, do lado de lá da tela. Se a “banalidade do
mal” não tivesse se tornado estrutural, nada disso seria palatável – em
casos como os reality shows, não seria sequer compreensível. A
eliminação aleatória de pessoas que concorrem ferozmente entre si por
uma única vaga só faz sentido na TV quando as relações de produção tomam
exatamente a mesma forma. Também nós “batalhamos” cotidianamente para
“sobrevivermos” em um mercado de trabalho cada vez mais seleto – ou pelo
menos assim rezam nossos rituais cotidianos, sejam eles
espetacularizados ou não. A mídia reafirma e reforça essa lógica, o que
não é pouco, mas jamais será o suficiente caso não haja uma estrutura
social que a sustente. Por exemplo: a aflição de uma senhora
entrevistada no ponto de ônibus, graças a uma manifestação, não é uma
manipulação ideológica banal, ela só adquire peso coercitivo por estar
pautada na coerção real de um “paredão” que parece mais próximo em dias
de atraso. Nessa entrevista-chavão podemos vislumbrar a baliza que
separa a crueldade ignorada daquela vivenciada como insuportável: as
horas de vida desperdiçadas em posição estressante em um trem lotado
para que se alcance nada mais que a possibilidade de continuar
sobrevivendo são “parte da vida”, não nos parecem horripilantes. O
adjetivo cabe, ao contrário, para a violência política posta na ação de
frear esse movimento brutal e autopropulsionado.
A partir
dessa cena, que de “macabra” aparentemente não tem nada, talvez possamos
começar a entender a comiseração diante de vidros quebrados que, ao
mesmo tempo, brada por mais pernas quebradas. A imprensa pode ninar
cuidadosamente tal ressentimento, mas foi a precarização, do trabalho e
da existência que gira a seu redor, que o pariu. A violência aceitável é
a que toma a vida inteira, ela é ordinária, cotidiana, profissional: é
aquela do participante de programa de TV que não quer ser eliminado; do
gestor que precisa demitir mais e melhor; do porteiro que recusa a
entrada de alguém com quem compartilha a cor da pele; do policial que
nada mais faz senão “cumprir o seu dever” – e há aqueles que creem poder
realizar essa tarefa de modo mais eficiente, acorrentando o outro da
vez ao poste, pelo pescoço, com uma trava de bicicleta. À âncora do
jornal não cabe muito mais que aplaudir o “trabalho bem feito”.
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* Professora de sociologia da FGV-SP. Graduada em ciências sociais pela
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo (FFLCH-USP), possui mestrado e doutorado pela mesma instituição.
Além de corintiana, é autora de Rituais de sofrimento, pela coleção
Estado de sítio da Boitempo. Colabora com o Blog da Boitempo
mensalmente, às sextas.
Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/2014/07/28/a-acumulacao-do-horror-e-o-horror-da-acumulacao-uma-entrevista-com-silvia-viana/
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