Fabricio Carpinejar*
Minha mãe saía para trabalhar e eu ficava sozinho em casa até o anoitecer.
Antes de se despedir, ganhava as instruções de arrumar o quarto,
aquecer a comida, tomar banho e realizar os temas da escola. Mas havia
sempre aquela advertência mais severa, dada no abraço e beijo de tchau:
— Não abra a porta para ninguém! Ninguém, viu? Ninguém!
Numa dessas tardes desamparadas, a campainha tocou. Era minha tia Cléia. Já havia identificado pelo som meloso de seu timbre:
—Adorável sobrinho…
Toda tia carrega no perfume e na adjetivação. Toda tia é exagerada, o que soa involuntariamente cínico.
Espiei pela janelinha e não abri a porta.
Ela insistiu:
— Vejo você mexendo na cortina, meu adorável sobrinho, sua mãe me mandou aqui.
— Não posso, respondi. Não posso abrir para ninguém.
Ela gritou, esperneou, produziu escândalo, chamou os vizinhos, só que
não cedi. A mãe depois veio reclamar que sua exigência não valia para
quem era da família.
— Ninguém é ninguém!, bati o pé.
Lembrei de minha teimosia quando vi um gandula brigando com o jogador
da Alemanha, nas oitavas de final da Copa do Mundo, em partida contra a
Argélia, em Porto Alegre.
O atacante Kramer pediu a bola para aquecer no intervalo da
prorrogação. Gesto natural, já que seria a próxima substituição do
técnico Joachim Löw. Menos para o gandula. Na puberdade de seu
bigodinho, enfrentou o número 23 da seleção germânica. Nem aí para a
hierarquia do momento, ou para a importância do jogo tenso e dramático,
sob o risco de ser decidido nos pênaltis.
— Não, impossível, só posso dar a bola dentro da partida — explicou o gandula.
Ele não falava alemão, o alemão não falava português. A linguagem que
vingou foi a da coerção. Kramer teve que arrancar com violência a bola
das mãos do adolescente.
O guri ainda tentou lutar em vão, reaver o objeto de sua estima. Em
represália, ensaiou correr ao campo, porém recuou pelos assobios da
torcida.
Eu me identifiquei com seu gesto. Mesmo se Joseph Blatter solicitasse
a bola, ele negaria. Aquele homenzinho de capuz e tênis colorido
recusaria com convicção qualquer infração à ordem recebida.
Não abriria
exceção para presidente da FIFA, tia, carteiraço, privilégios. Não
estava em campo para interpretar a lei, e sim para executar tarefas até o
fim. Custe o que custar.
Para a maioria dos torcedores, sua ação terminou sendo alvo de
deboche, acolhida como falta de senso e burrice. Gerou longas vaias e
risos. Não segui a hola de bullying. De pé, rompi a gozação, aplaudi
isoladamente, bati palmas com força.
A obediência é tão rara, tão incomum, tão inesperada hoje em dia. Eu
me alegrei ao testemunhar a ingenuidade comprometida com a palavra, a
missão sendo cumprida à risca. Como é bonita a responsabilidade
amadurecendo em um menino.
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* Poeta. Escritor. Cronista.
Fonte: http://www.vidabreve.com/02/07/2014
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