Na
novela "Em Família", as personagens Clara (Giovanna Antonelli) e Marina
(Tainá Müller)
precisam explicar seu amor a Ivan (Vitor Figueiredo)
Foto:
TV Globo / Divulgação
Pode homem com homem e mulher com mulher? Mesmo que o tema seja recorrente até nas novelas, abordar o assunto com naturalidade ainda é um desafio em casa e em sala de aula
A pergunta que vai chegar
Animadas para prestigiar uma apresentação dos filhos, 10 mães
percorrem o pátio da escola. No meio do caminho, tropeçam em uma cena
que gerou assunto para o resto do ano: duas meninas se beijam em frente
ao bar. O grupo de mulheres fica ensandecido. Marcha à sala da
coordenação exigindo providências.
— Chamamos as meninas e explicamos que ali não era lugar para
namorar. Entre os alunos, acaba não sendo esse horror porque a gente
trabalha desde pequenininho as diferenças. Quem se assusta mais são os
pais — diz Sandra Cavalcanti, orientadora educacional do Colégio Bom
Conselho, em Porto Alegre.
Paula de Oliveira Sá, 42 anos, acompanhou o ocorrido. Achou a reação
dos pais exagerada, mas compreende a preocupação. A filha Júlia, oito
anos, já a deixou em saias justíssimas:
— Ela diz: "tu nem sabe, no colégio tem duas meninas que namoram" ou
"tem um coleguinha meu que gosta de um menino". Eu me assusto. Respondo
que a vida é assim, que tem muitas pessoas diferentes, mas fico
desconcertada, só tento não passar isso para ela. Acho que é muito cedo
para aprofundar estes assuntos.
Quanto mais cedo, melhor para cognição
TV e internet aceleraram a chegada do tema ao lar. Na novela Em Família, atual trama das nove da Rede Globo, a personagem Clara
(Giovanna Antonelli) teve de explicar ao filho que estava apaixonada
por uma mulher (veja abaixo). Cabe aos pais responder cada vez mais cedo
a dúvida que, segundo especialistas, está entre as mais recorrentes:
"homem pode beijar na boca de outro homem?".
— Quanto mais cedo tu contas para uma criança, mais rápido podes
preparar a cognição infantil para conceber que na homossexualidade tem
afeto, amor, carinho — aconselha o professor de psicologia da Fadergs,
Eduardo Lomando.
Sobra para as instituições de ensino explicações mais aprofundadas, como na escola Amigos do Verde, em Porto Alegre.
— Lembro de uma vez em que alunos estavam brigando, se ofendendo e um
chamando o outro de gay. Daí perguntamos o que é gay, para saber a
compreensão que eles têm dessa palavra. Porque normalmente eles recebem
isso da família, e isso é até uma construção social — afirma Taís
Brasil, coordenadora pedagógica do colégio.
Isabel Cristina Dalenogare é orientadora educacional da Escola
Municipal Moradas da Hípica, na Zona Sul. Há poucos anos, a
homoafetividade foi trabalhada na aula de filosofia. Familiares de uma
aluna a tiraram de lá, conta Isabel:
— As pessoas ainda usam uma maquiagem de não preconceito, mas porque não querem manifestar publicamente a sua opinião.
Professores se esquivam do tema
Olívia é uma menina de cinco a seis anos, com as birras e
preocupações naturais da idade. Ela é criada com zelo e amor por... dois
papais. A história Olívia Tem Dois Papais (Companhia das
Letrinhas), de apenas oito páginas, não faz defesa de casais gays,
apenas mostra o cotidiano de uma criança cercada por afeto. Mesmo assim,
é como se fosse ignorada em sala de aula, lamenta a autora, a paulista
Márcia Leite, que assina outros livros infantis e juvenis:
— É um tabu, reflexo da sociedade que, aos poucos, começa a olhar
para esta questão com olhos mais humanistas, e não punitivos ou
religiosos. Mas, até mesmo em escolas laicas, o tema ainda é tabu. Vou a
escolas aqui em São Paulo que trabalham com vários livros meus e esse
nunca está na lista! É um tema que desconforta, infelizmente.
Márcia, que trabalhou como educadora por 30 anos, diz que se
preocupou em tratar do assunto com naturalidade, mas sente que os
professores têm fugido do tema:
— A gente sabe que ele (o livro) vai criar um certo mal-estar porque
atende a expectativas de famílias muito diferentes. Mas a criança está
exposta, é a vida. E a literatura cria um espaço para vivenciar uma
experiência e pensar sobre a realidade.
Isabel Cristina Dalenogare, orientadora educacional do Moradas da
Hípica, nota essa dificuldade nos docentes. Não esquece do dia em que
uma professora chegou estupefata à sala dela exigindo providências.
— Ela pegou uma carta de amor entre duas meninas. Me implorou para
fazer alguma coisa. Eu perguntei se tinha algo entre elas que estava
prejudicando a turma. Ela respondeu que não, que inclusive elas se
ajudavam. Então, está bem. Não há o que ser feito. Elas precisam ser
respeitadas — lembra Isabel.
"E se eles me tirarem das brincadeiras?"
O ator Vitor Figueiredo, nove anos, vive Ivan na novela Em
Família, filho de Clara (Giovanna Antonelli), que deixou o marido
(Reynaldo Gianecchini) para ficar com Marina (Tainá Müller). A mãe de
Vitor, Daniela, contou em entrevista ao jornal Extra, do Rio, que o
menino vê a situação do personagem como algo normal e que, em casa,
enfatiza a importância do respeito ao outro.
— Isso é bom, porque, no futuro, levará de forma tranquila e respeitosa a diversidade — disse Daniela.
No sábado, a novela — a segunda consecutiva da emissora a mostrar
beijos gays — apresentou a cena em que Clara conta a Ivan que vai se
casar. Leia o diálogo:
Clara — Eu gosto tanto da Marina, ela é tão
importante para mim. Nós estamos pensando em morar juntas. Acho que eu
vou me casar com a Marina.
Ivan — Sério? E pode?
Clara — Por que não pode?
Ivan — Ué, porque vocês são duas mulheres.
Clara — Não, nós somos duas pessoas. Não importa se é menina com menina.
Ivan— É que eu nunca tinha visto isso antes.
Clara — É porque você é muito pequeno ainda. Tem muita coisa que você ainda não viu. Você ficou feliz com a notícia?
Ivan — É, mas quem vai usar o vestido de noiva? Você ou ela?
Clara — Ninguém, cara. Eu já usei vestido de noiva
uma vez e foi com o seu pai. Desta vez não, desta vez a gente queria
fazer uma coisa assim, só para aqueles amigos mais íntimos, do coração,
pra família, sabe? O que foi, tá preocupado?
Ivan — Como é que eu vou contar para os meus amigos da escola que você vai se casar com outra mulher?
Clara — Ué, do mesmo jeito que você contaria se eu fosse me casar com um homem, entendeu?
Ivan — E se eles rirem de mim?
Clara — Se eles rirem de você, você não fica
chateado. Sabe por quê? Porque eu e a Marina nós somos um casal
diferente, mas deve ter um monte de gente na sua escola nessa situação
também. É que as pessoas não sabem ainda lidar direito com a diferença,
sabe filho? Então não fica chateado se alguém rir, não. Você tem que
falar assim ó: "pô, eu sou feliz, cara, porque eu tenho duas pessoas que
me amam muito (...)." Olha aí que privilégio.
Ivan — E se eles me tirarem das brincadeiras por causa disso?
Clara — Aí você fica firme. É sério, filho, a sua
mãe não tá fazendo nada de errado. Se duas pessoas se amam, elas podem
ficar juntas, entendeu? (...) Acho que os seus amigos vão amar a Marina,
passar o final de semana com a gente.
Como abordar o assunto com as crianças?
Normalmente o questionamento mais comum é "homem pode beijar na boca
de outro homem?". Não seja prolixo, pois, possivelmente, a criança quer
uma resposta direta. Se o adulto estiver inseguro para explicar, poderá
fazer a criança entender que se trata de um problema.
— Procure não antecipar o assunto antes da pergunta. Espere a dúvida
chegar para abordar o tema, pois, muitas vezes, a construção do
questionamento é parte importante para o amadurecimento do diálogo.
— Não torne a conversa um monólogo. Introduza a criança ao tema,
instigue-a a refletir sobre o assunto. Muitas vezes os adultos
transmitem muita informação, mas é importante ouvir as crianças também.
— Muitos adultos acreditam que conversar sobre homossexualidade com
crianças é um incentivo a práticas homoafetivas. Falar de sexualidade é
instrumentalizar crianças para entender o mundo.
— Faça-os entender que homossexualidade é mais uma forma de amor, tal qual a heterossexualidade.
-----------------
Reportagem por Kamila Almeida | Vinícius Fernandes
15/07/2014 | 06h01
Fonte: Cláudia Amaral, doutora em pedagogia
ZH online, 15/07/2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário