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No contexto de uma eleição marcada pela insatisfação popular com a
representação política, um dos fenômenos políticos mais importantes é a
ascensão do Partido Socialista Brasileiro (PSB) ao ponto de se
qualificar, em princípio, para disputar uma vaga no segundo turno e
alterar a correlação de forças políticas no Brasil. É a opinião do
cientista político Leonardo Avritzer, professor da Universidade Federal
de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Associação Brasileira de Ciência
Política.
Para Avritzer, a presença da aliança entre Eduardo Campos (PSB) e
Marina Silva no pleito soma-se a outros fatores significativos para os
resultados da eleição de outubro, como o desgaste dos 12 anos de governo
petista, que começa a desfazer a ampla aliança da eleição de 2010, e o
desafio que o candidato tucano, o senador mineiro Aécio Neves, enfrenta
para nacionalizar uma liderança ainda estadual.
Ao fim de um período em que um possível fracasso da organização da
Copa do Mundo, incluídas as obras de infraestrutura, era um assunto de
temores públicos e debates políticos, a conclusão do torneio abre as
portas para o período eleitoral. Embora a questão da Copa tenha sido
politizada tanto pelo governo quanto pela oposição, Avritzer entende que
ambos erraram, ao não perceber que o tema dizia respeito a um
compromisso não do governo, mas do país.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista com o cientista
político, que analisa o possível impacto da recente ascensão do PSB
sobre o quadro eleitoral, a relação das manifestações de rua com o
sistema político e os possíveis cenários para a disputa de outubro.
Valor: O governo trata o fato de não ter havido o
caos anunciado para a Copa como grande ativo político, porque a
oposição teria apostado nesse caos. A ausência de caos é trunfo
político?
Leonardo Avritzer Quando o Brasil assumiu o
compromisso de realizar a Copa, foi um compromisso administrativo
importante para um país que, dentre os principais países em
desenvolvimento, tem a pior infraestrutura. À medida que as obras foram
atrasando, parecia que o governo ia descumprir amplamente um compromisso
internacional, o que o desgastaria. Isso significaria, talvez, algum
ganho para a oposição. Nenhuma das duas coisas se confirmou e acho que
tanto o governo quanto a oposição erraram. O governo errou por gerir de
forma deficiente as obras. A oposição errou por achar que esse era um
compromisso do governo, quando era um compromisso do país.
"As manifestações de junho expõem a profunda insatisfação
da população com o sistema político.
Isso não é passageiro"
Valor: A ampla aliança de 2010 que elegeu Dilma
Rousseff está fora de cogitação para 2014, com a saída do PSB e do PTB, e
uma série de palanques locais se afastando do PT. Aécio Neves chegou a
sugerir que esses partidos "sugassem" o máximo antes de mudar de lado.
Em que medida isso pode ser decisivo?
Avritzer: Neste presidencialismo de coalizão
fragmentado, fazer alianças é bom e ruim. É bom porque é difícil
governar sem maioria no Congresso. Mas o preço dessa maioria é ruim para
o país. Sabemos quais são os partidos ligados às falhas nas obras de
infraestrutura para a Copa, por exemplo. Não é bom ter alianças tão
amplas, mas elas garantem tempo na TV e uma certa governabilidade. É
infeliz a frase de Aécio. O "sugar" não diz respeito ao governo, é sugar
o país. O preço das alianças amplas é a ineficiência da máquina
pública. Se for eleito, é Aécio quem vai ter que lidar com esse
problema. Uma das grandes dificuldades do país é um centro apolítico
fisiológico representado por alguns partidos. Vamos pensar nos
ministérios de que esses partidos gostam, como Transportes. O PR é
"especializado" nesse ministério. São concessões de rodovias e coisas
muito importantes para o país. A melhoria do corredor de exportação da
soja, por exemplo. Esse "sugar" significa problemas na gestão da
economia.
Valor: O PT, em 2010, parecia ser um grande ímã
de alianças, mas essa fratura parece indicar que a força de atração
diminuiu. O que houve?
Avritzer: O magnetismo que o governo do PT exercia
sobre os partidos diminuiu nesses últimos 12 a 18 meses. A teoria da
democracia diz que governos muito longos são desgastantes. O revezamento
no poder exerce um equilíbrio sobre os vícios que o poder provoca. No
caso do PT, há desgastes, seja na organização da máquina pública e dos
ministérios, seja na relação com os partidos. Que partidos estão saindo?
Alguns grupos estão entre os mais fisiológicos da política brasileira. A
saída não é necessariamente ruim para a aliança governista. Pode trazer
um pouco de coerência.
Valor: O PSB lançou Eduardo Campos candidato a presidente. Ele é um candidato forte para chegar ao segundo turno?
Avritzer: Ele está procurando uma posição num
sistema muito polarizado, que não o favorece. O apoio a Lindbergh
[Farias, do Partido dos Trabalhadores] no Rio faz sentido em sua
trajetória política, mais do que a aliança com [o governador tucano
Geraldo] Alckmin em São Paulo. Mas o problema central de Campos é que é
muito difícil chegar ao segundo turno sem um apoio significativo em São
Paulo. Marina Silva ajuda ou atrapalha? É cedo para dizer. Ele é pouco
conhecido da população e a aliança com Marina também. Talvez o fenômeno
partidário mais relevante no Brasil seja o crescimento do PSB. Desde
1994, consolidamos um sistema de dois grandes partidos que governam e
dois grandes partidos que os auxiliam a governar. O PSB, dependendo de
seu desempenho, pode ser uma novidade.
Valor: Se o PSB chegar ao segundo turno,
deixando de fora o PSDB, será a primeira vez, desde 1994, que o PSDB não
estará nessa fase da eleição. A novidade poderá ter consequências na
política brasileira?
Avritzer: Para muitos cientistas políticos, o
sistema democrático só é consolidado quando os mesmos partidos disputam o
poder. Tenho dúvidas. A Espanha, por exemplo, está numa crise política e
econômica profunda. E está surgindo um novo partido. Isso tem a ver com
a insatisfação da população. No Brasil, uma parcela da população não
está satisfeita com a polarização entre PT e PSDB. Um possível
crescimento de Campos pode estar relacionado a isso. Seria uma novidade
decisiva. O centramento em dois grandes atores gera uma previsibilidade
necessária no sistema político. Os atores econômicos pedem isso. Mas não
acho que o PSB esteja muito fora daquilo que se espera, seja pelos
atores sociais, seja pelos econômicos.
Valor: O senhor escreveu em artigo que tornar-se
conhecido fora de Minas Gerais é um grande desafio para Aécio Neves.
Como lhe parece o senador como candidato que enfrenta uma máquina
poderosa como a do PT?
Avritzer: Esta eleição é decisiva para ele. Ou ele
se dá muito bem, não necessariamente ganhando, ou dificilmente vai
manter uma liderança nacional. Os mineiros gostam de Aécio. Não está
claro que gostem dos governos do PSDB. Existe um diferencial entre apoio
político a Aécio e apoio a candidatos do espectro político ao qual ele
pertence. É muito significativo esse diferencial. É difícil saber se ele
vai conseguir nacionalizar a liderança local. É um desafio importante
em São Paulo, dados os conflitos com [José] Serra e Alckmin. Ele tem
características que não parecem se adequar ao eleitorado paulista, que é
conservador nos hábitos morais. Outro problema é que ele não consegue
ser uma liderança forte no Senado. O PSDB tem líderes mais importantes
que ele no Senado, como Álvaro Dias.
Valor: Marina Silva foi o grande fenômeno de
2010. Depois desses quatro anos, pode-se dizer que ela soube aproveitar o
impulso das urnas?
Avritzer: Marina enfrentou um problema comum na
política, ao qual parece ter dado uma solução ruim: a diferença entre
sua popularidade pessoal e a capacidade de transformá-la em estrutura
organizacional competitiva. Recorrer à aliança com Campos colocou outros
problemas para ela, problemas de coerência política. Ele tem uma
política desenvolvimentista, que frequentemente não atenta para o meio
ambiente. Seja sob o ponto de vista organizacional, seja do ponto de
vista do campo político a que ela quer pertencer, a liderança de Marina
Silva tem problemas hoje.
Valor: A aposentadoria de Sarney, anunciada na última semana, pode ser lida como uma página que se vira na política brasileira?
Avritzer: Desde a redemocratização, temos
renovações importantes na política brasileira, como o crescimento do
PSDB e do PT. Mas temos fortes continuidades, especialmente no campo do
PMDB. Dentre elas, Sarney é uma das principais, com Renan Calheiros e
outros. É um estilo de fazer política no Brasil que persiste. Alguns
Estados ainda são muito clientelistas, outros menos. São máquinas
políticas aliadas à mídia, especialmente à televisão. Essa concepção de
fazer política está sob ataque no país, mas ainda não foi derrotada. A
aposentadoria de Sarney está mais ligada à idade do que à decadência da
liderança de seu grupo no Maranhão. É um grupo desafiado, existe mais
oposição a ele hoje do que no passado, mas essas estruturas construídas
na democratização, em torno de fortes alianças políticas e meios de
comunicação, continuam vivas.
Valor: Com a burocratização, a aliança com o
agronegócio e o apoio à repressão policial, os movimentos sociais e a
esquerda militante, das ruas, sentiram-se alienados do PT, tratando-o
por "ex-querda". Isso pode comprometer o partido?
Avritzer: Talvez o fato que melhor simbolize esse
afastamento seja a saída da Marina Silva. Ela é claramente uma
personificação dessa relação: líder ambientalista, que trouxe lideranças
de movimentos sociais da Amazônia para o governo. Hoje, há dissensões
no meio ambiente, na política indígena, nas políticas urbanas. Mas o
afastamento é relativo. Ninguém ocupou esse espaço. Esses movimentos não
são eleitoralmente significativos, mas são muito significativos do
ponto de vista do espírito da opinião pública. Até o sentimento
anti-Copa teve ligação com eles. Essa é uma questão para o PT: como
retomar uma relação que foi positiva num período histórico muito
significativo.
Valor: Caso o PT perca a eleição: o que acontece
com um partido que passou a maior parte de sua história como oposição,
foi governo, compôs com forças às quais tinha se oposto renhidamente,
desenvolveu uma máquina eleitoral forte, afastou-se das bases sociais e
voltou a ser oposição?
Avritzer: Certamente, implicaria muitas mudanças.
Mas o PT tem tanto bases sociais fortes quanto capacidade de adaptação
ao governo. Continuou fazendo convenções, continuou fazendo eleições
internas diretas. Adaptou-se ao poder, é inegável, levando um conjunto
de militantes para as estruturas do Estado. Talvez o lugar em que mais
se adaptou tenha sido a estrutura parlamentar. De 2002 para cá, o perfil
dos parlamentares do PT mudou muito. Eles se tornaram mais influentes. O
PT faria o chamado "aggiornamento", a atualização da identidade
partidária. Vai ter que readequar sua relação com as bases que deixou de
lado. Vai ser um pouco menos governo, menos Estado, e um pouco mais
movimentos sociais. Todos os partidos com origem em movimentos sociais
fazem isso. O PSOE, na Espanha, o PS francês, o Bloco de Esquerda em
Portugal.
"O magnetismo que o governo do PT exercia sobre
os partidos diminuiu. Governos muito longos
são desgastantes"
Valor: Outra aposta é que a chamada classe C
pode ser um fiel da balança na eleição, dependendo do que decidir: se
continua apoiando as políticas às quais se atribui sua ascensão social
ou se fica mais conservadora.
Avritzer: A ideia de que classes ascendentes se
tornam conservadoras pode estar correta em relação à direção, mas
esperar que isso se manifeste rapidamente é um equívoco. O melhor
exemplo é a classe média que Roosevelt criou nos EUA dos anos 30. Ela
foi votar nos republicanos nos anos 80, com Reagan. É um longo processo.
Mesmo no caso dos EUA, até hoje eles são chamados de "swing voters",
porque voltaram aos democratas com Clinton. Talvez essa seja a vocação
da classe C. A principal preocupação dessas pessoas, hoje, é continuar
sendo classe média.
Valor: Os protestos que começaram em 2013 deixaram marcas visíveis no sistema político?
Avritzer: As manifestações de junho expõem a
profunda insatisfação da população com o sistema político. Isso não é
passageiro. É uma característica estrutural da opinião pública que está
se formando no país, que não se identifica com os partidos, é crítica do
Congresso e acha, com razão, que a corrupção não é punida e o estrato
político é privilegiado. Também já passou o tempo em que, no Brasil, o
acesso a serviços públicos era a grande reivindicação. Não se trata mais
de acesso. A questão, hoje, é a qualidade dos serviços. Essas questões
estão aí para ficar e vão exigir que o sistema político as trate com
seriedade. Acho decisivo, também, fazer uma reforma política. Quase um
quarto dos senadores são suplentes que não foram eleitos. O sistema de
financiamento entre grandes empresas e sistema político quase não tem
controle. A política precisa se adaptar à nova sociedade que o Brasil já
é, com mais informação e menos desigualdade.
Curriculum Vitae
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Formação:
Graduado em ciências sociais (UFMG), mestre em ciência
política (UFMG), doutor em sociologia política (New School for Social
Research), pós-doutorado pelo Massachusetts Institute of Technology.
Atividade
É professor titular da UFMG.
Foi professor visitante da USP, da Tulane University e da
Universidade de Coimbra. É presidente da Associação Brasileira de Ciência Política.
Livros publicados
“Democracy and the Public Space in Latin America”(2002);
“A Moralidade da Democracia”(1996)
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Reportagem por Diego Viana / Para o Valor de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico online, 04/07/2014
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