Ana, a guerrilheira
Primavera de 1973. Ela não se chamava Ana, mas era assim que
todos a conheciam. Ana, a guerrilheira, detida em uma prisão militar
feminina, construída especialmente para mulheres tupamaras, em algum
lugar desconhecido no interior do Uruguai, com uma carta na mão, que era
de Emiliano, ou Ulpiano, ou seja lá qual fosse o seu verdadeiro nome.
Em junho daquele ano, o fim do MLN-T (Movimento de Liberação
Nacional, também conhecido como Tupamaros), foi um dos episódios que
marcou o início da ditadura uruguaia, e levou centenas de jovens
revolucionários à prisão, quinze deles como reféns de guerra. Ulpiano
era um deles. Se os tupamaros ainda livres voltassem a atuar, ele seria
fuzilado.
Um torturador chuta as grades da cela enquanto ri jocosamente e
relembra as últimas humilhações, de diferentes tipos, que a fez sofrer.
Ana continua lendo a carta. Ele insiste:
- Você é a nossa preferida, bebê. Vai ficar aqui por milhares de anos.
A raiva a faz apertar o papel em suas mãos até quase rasgá-lo:
- Olha, daqui a doze anos eu vou sair daqui e viver a minha vida.
Você viverá com o fantasma dessas perversões, atormentando até o dia da
sua morte.
Enquanto ele aumentava o volume das gargalhadas, Ana buscava algo
onde escrever uma resposta. Precisava contar sua verdade, que seu nome
não era Ana, que era filha de uma família de classe média de Pocitos,
bairro nobre de Montevidéu. Tinha uma irmã gêmea, tinha uma família
enorme, sofria pelas saudades e pelo medo, mas não medo da morte, era o
único medo que não tinha, pois lhe bastava a certeza de sair dali e para
se encontrar com ele.
Dias depois, seu advogado lhe forneceu papel, caneta e a grande
coincidência de suas vidas. Ele era casado com a advogada de Ulpiano. Os
dois nada podiam fazer pelos dois guerrilheiros. Livrá-los da prisão em
meio a uma ditadura era impensável. Mas puderam ser um casal de
carteiros, trabalhando por um amor que lutava para sobreviver.
Dois prisioneiros vivendo um típico amor tupamaro. O MLN surgiu em
meados dos Anos 60, fundado por um grupo de estudantes socialistas que
queriam fazer a revolução no Uruguai. Diferente das guerrilhas urbanas
de outros países, os tupamaros começaram a atuar antes de instalada a
ditadura. A vida na clandestinidade impedia que houvesse relações fora
da organização e saber o verdadeiro nome da pessoa amada. O amor deles
nasceu quando ela se chamava Ana e ele Ulpiano, e não importava a
verdade.
Amor que nasceu com um passo para fora da prisão. Ela, uma estudante
de arquitetura com talento para a falsificação de documentos, lhe fazia
uma identidade falsa, e assim se conheceram. Ana tinha um namorado que
também era do MLN, se chamava Blanco Katrás, que meses depois seria
capturado junto com ela. Ana só passou alguns meses na cadeia, mas
Blanco seria executado pela polícia uruguaia. “Não era o primeiro
namorado que eu perdia naquelas condições, e naquela altura, já tinha
visto muitos outros companheiros morrerem. Não há tempo pra sentir pena
quando você precisa salvar a própria pele”, pensava Ana, libertada em
1972, antes de encontrar refúgio no mesmo porão em que estava escondido
Ulpiano – na época, um dos homens mais procurados do país.
A caça aos tupamaros no Uruguai passou a ser mais intensa nos Anos
70, com a ajuda dos Estados Unidos. Os tupamaros sequestraram e
assassinaram um agente do FBI, em agosto de 1970 (Dan Mitrione, que anos
antes esteve no Brasil, ensinando técnicas de tortura aos militares).
Ulpiano era acusado de fazer parte dessa operação – que é narrada pelo
filme Estado de Sítio, de Costa Gravas.
Ninguém sabe se foi aí, no ocaso do movimento tupamaro, quando viviam
de porão em porão pelos bairros do centro velho de Montevidéu, que
começou a história de amor de Ana e Ulpiano. “Eles passaram a andar
juntos na época mais dura, quando nem sempre havia um teto. Às vezes,
era preciso dormir em pântanos fora do perímetro urbano da cidade.
Ninguém sabe se a relação, digamos, física, começou nessa época, mas com
certeza o carinho mútuo sim”, relata Henry Engler, um ex-tupamaro,
amigo pessoal de Ulpiano.
O pouco que se sabe sobre o começo da relação é que eles se tornaram
imprescindíveis um para o outro nesses últimos meses do MLN, antes do
fim definitivo da organização, em junho de 1973. Ambos foram presos. Ana
foi levada a uma prisão de mulheres. Ulpiano virou refém, ficava numa
solitária, sob ameaça de morte se algum ex-companheiro voltasse a atuar.
Tentaram trocar correspondências entre si para sobreviver, com a
ajuda dos advogados-carteiros. Ela se confessou, disse que se chamava
Lucía, Lucía Topolansky, e que sonhava em sair dali e encontrá-lo. Ele
respondeu com sua própria revelação: “meu nome é José Alberto Mujica”.
A carta-desabafo de Pepe Mujica, ex-Ulpiano, era a mais bela carta de
amor de todos os tempos, segundo as companheiras de presídio de Lucía –
“era toda sentimentalona, como todas as coisas do Pepe”, segundo María
Elia Topolansky, irmã gêmea de Lucía, também ex-tupamara. Passou por
todas as mãos e fez sucesso até entre os carcereiros – “naqueles anos,
cada carta que chegava era para todas”, conta Lucía, sobre a falta de
ciúmes com o bilhete.
Diz a lenda que a ternura das palavras de Mujica amoleceu as
restrições que havia para correspondência entre presos, e assim eles
puderam trocar mais cartas que os demais casais tupamaros separados
entre prisões.
Essa situação durou exatamente os doze anos que Lucía deu de prazo ao
seu torturador, até que seu amor renasceu como na primeira vez, com um
passo para fora da prisão. No dia 14 de março de 1985, ela e a irmã
gêmea saíram da cadeira e foram para a enorme casa da família – no mesmo
dia em que Pepe foi libertado, depois de onze anos na solitária,
“conversando com os ratos e agarrado na esperança” segundo ele mesmo.
“No dia seguinte, Lucía foi embora, foi morar com o Pepe, e nunca mais
voltou”, conta María Elia Topolansky.
Desde então, vivem
juntos em uma chácara de um bairro de classe baixa, na periferia de
Montevidéu. Começaram criando flores e vendendo no mercado municipal,
mas sem esquecer os ideais políticos. Pepe se candidatou e se elegeu
deputado em 1995. Em 2000, ele passou a ser senador, e Lucía deputada.
Em 2005, ela se elegeu senadora, e nesse mesmo momento, trinta anos
depois do começo da relação, vinte anos depois de começarem a viver
juntos, decidiram formalizar o matrimônio. Cinco anos antes de Pepe
assumir como presidente do Uruguai.
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A melhor forma de mergulhar na
história de amor de Pepe Mujica e Lucía Topolansky, e também na história
dos Tupamaros, é mergulhar na história dela. Por isso os jornalistas e
historiadores uruguaios Nelson Caula e Alberto Silva escreveram o livro Ana, La Guerrillera,
que traz detalhes de tudo o que se contou neste tópico e muito mais
episódios sobre a criação do MLN, a vida na clandestinidade e a disputa
política que levou o Uruguai à sua mais recente ditadura.
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Reportagem por Victor Farinelli on
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