sábado, 19 de julho de 2014

CONFISSÕES

 Claudia Laitano*
 
 "Por que algumas confissões íntimas soam banais e vazias, 
e outras profundas e transcendentes? 
O que separa a arte do 
mero narcisismo?"

Quem fala não é quem escreve, e quem escreve não é quem é.” A frase de Roland Barthes pode ser lida como uma espécie de lembrete ao leitor de que ele deveria desconfiar do escritor mesmo quando ele parece estar dizendo a verdade – que mais não seja porque quase sempre é impossível dizer ou escrever toda a verdade.

Com frequência, a literatura borra os limites entre o que é realidade e o que é invenção, propositalmente confundindo o leitor. Será que isso aconteceu mesmo? Ele traiu a mulher? Foi traído? A mãe era mesmo uma bruxa? E o que a mãe dele achou de ser descrita como uma bruxa? O escritor que, confessadamente ou não, utiliza elementos biográficos em um romance está autorizando o leitor a completar o retrato do autor/personagem com a sua imaginação.

Proust, por exemplo. Sabemos bastante sobre a sua biografia, que viveu da fortuna da família, gostava de frequentar festas elegantes e a certa altura abandonou tudo para trancar-se no quarto e escrever um romance largamente inspirado em sua própria vida. Proust era, ao mesmo tempo, autor e personagem do seu livro, e quando o leitor pensa no homem e em como ele deveria ser quando não estava escrevendo, fatalmente vai misturar a verdade histórica com a própria imaginação. O escritor que devorei agora nas férias, o norueguês Karl Owe Knausgard, é um fã de Proust e escreveu ele mesmo um romance em seis partes dedicado a esquadrinhar a própria vida – mais explicitamente ainda que Proust, que pelo menos trocava os nomes dos personagens reais que o inspiraram. Nos livros A Morte do Pai e Um Outro Amor, já lançados no Brasil, ficamos sabendo tudo sobre a família de Knausgard, suas namoradas, suas manias, suas pequenas e grandes fragilidades de caráter. Quando terminei o primeiro livro, a sensação era de que eu conhecia mais sobre Knausgard do que sobre algumas pessoas que eu vejo todos os dias no trabalho há mais 10 anos.

O leitor que não é muito chegado em Proust e nem sequer ouviu falar de Knausgard pode estar se perguntando para que, afinal, serve saber tanto assim sobre a vida de uma outra pessoa, principalmente numa época em que todo mundo parece estar fazendo a mesma coisa: narrar e fotografar a si mesmo o tempo todo. Boa e decisiva pergunta, perspicaz leitor. A tecnologia possibilitou esse ambiente de trocas inesgotáveis de confissões cotidianas: tomei café, briguei com o caixa do banco, emagreci cinco quilos. Ao mesmo tempo, a investigação íntima, por vezes radical e perturbadora, como no caso dos livros de Knausgard, é cada vez mais popular como recurso narrativo. O resultado é essa curiosa coexistência entre um interesse renovado pelas infinitas possibilidades estéticas da não ficção (ensaios confessionais, memórias, documentários do gênero testemunhal, híbridos de gêneros) e a saturação do eu banalizado, vulgar, que apenas parece gritar: “Eu existo! Olha pra mim!”.

Por que algumas confissões íntimas soam banais e vazias, e outras profundas e transcendentes? O que separa a arte do mero narcisismo? A resposta talvez não esteja no “o que” se diz nem mesmo no “como” se diz (embora isso faça muita diferença). A chave para entender a capacidade de transcendência de um relato pessoal talvez esteja no “por que” se diz. É preciso que a confissão venha acompanhada do esforço de dar algum sentido à experiência passada para que ela possa ultrapassar a si mesma e tocar aos outros de forma profunda. No fim, não importa tanto saber o quanto Proust e Knausgard revelaram sobre suas próprias vidas em seus livros, mas o quanto encontramos de nós mesmos naquilo que eles escreveram.
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* Escritora. Colunista da ZH
Fonte: ZH online, 19/07/2014
imagem da Interenet

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