Kiko Nogueira*
"O país tem um enorme banco de
talentos, mas acidentes não podem mais acontecer no esporte. Vencer
nesse nível hoje significa não apenas talento, mas dinheiro,
treinamento
e uma estratégia coerente."
A derrota do Brasil para a Alemanha levou os suspeitos de sempre a
pintar um cenário tenebroso no país. Ok, foi uma vergonha, mas houve um
certo regozijo sádico. A capa do Globo com um David Luiz de quatro no
gramado e a manchete “Vergonha, Vexame, Humilhação” é um exemplo
rematado de histeria sensacionalista.
Por incrível que pareça, a vida seguiu adiante no dia seguinte. O jornalista Matthew Futterman, do Wall Street Journal, escreveu um bom artigo contando o que viu no país sob uma perspectiva estranhíssima: o mundo não acabou.
Eis a matéria:
Adivinhe o que aconteceu no Brasil na quarta-feira?
O sol apareceu. As pessoas foram para o trabalho. Elas dirigiram
táxis, abriram supermercados, clicaram em seus computadores para tratar
de assuntos jurídicos e financeiros. Médicos curaram os doentes.
Assistentes sociais enfrentaram os problemas da grande pobreza neste
país de cerca de 200 milhões. A vida continuou.
Adivinha o que não aconteceu? Cidades não queimaram. Rebeliões em
massa não aconteceram. Tanto quanto sabemos, torcedores não se jogaram
de edifícios porque sua amada Seleção foi destruída pela Alemanha, por
7-1, na semifinal da Copa.
À luz cruel do dia, ainda é estranho escrever “Alemanha 7, Brasil
1.” Esse tipo de resultado não acontece neste nível de futebol. O
último jogo oficial que o Brasil perdeu em casa foi em 1975. Se eu fosse
um nativo, estaria abalado, tentando descrever a debacle que aconteceu
em Belo Horizonte.
Não se engane: a derrota para a Alemanha, para usar a frase
favorita do técnico dos EUA, Jurgen Klinsmann, foi uma lástima. As
pessoas aqui amam o futebol. O governo declara feriados nos dias de
partidas da equipe nacional. Ruas vazias, e eu quero dizer vazias – como
se você pudesse montar uma barraca no meio de uma delas e não acontecer
nada.
Ainda assim, não compre a história de que esta perda vai deixar
alguma cicatriz indelével em um país tentando desesperadamente prosperar
em uma série de áreas que não têm nada a ver com futebol. Essa idéia é
um pouco humilhante para os brasileiros, que são a coleção de almas mais
acolhedoras com que eu me deparei.
Houve a mulher na loja de óculos aqui em São Paulo que se recusou
a aceitar dinheiro pelo estojo de óculos que ela me deu depois que eu
perdi o meu. Houve os estudantes universitários em Natal que me
ofereceram um tour pela cidade e uma carona de volta para meu hotel no
meio da noite, quando não havia transporte à vista após a vitóriq dos
EUA sobre Gana.
Lá estava o rabino que, 30 segundos depois de me conhecer,
insistiu para que eu fosse jantar no sábado em sua casa (eu fui, e a
sopa de matzo ball estava incrível). Houve as inúmeras almas pacientes
comigo na rua, esperando enquanto eu tateava meu dicionário de bolso de
português, procurando a palavra certa para completar uma pergunta
idiota, quando certamente eles tinham algo melhor para fazer.
Estive aqui por um mês. Isso dificilmente me qualifica como um
especialista na cultura brasileira. Minha amostragem é pequena e
limitada a hotéis, restaurantes, estádios de futebol e pistas de corrida
ao lado de praias do Rio, Natal, Recife e algumas outras cidades-sedes.
Eu sei do crime e da pobreza.
Mas eu também sei que este é um país incrível, diverso. Encare
quatro horas de voo rumo à Amazônia a partir de São Paulo e as pessoas
parecem completamente diferentes daquelas em qualquer shopping do país.
Em Salvador, você pode muito bem achar que está na África Ocidental. Em
cada cidade, pessoas de todos os tons de pele — preto, marrom e branco —
preenchem áreas de ricos e pobres. É um país de beleza física
impressionante e vastos recursos naturais. O tráfego da hora do rush faz
as avenidas de Los Angeles parecerem estradas do interior, um sinal
claro de que o lugar precisa de alguns melhoramentos de infra-estrutura,
mas também que há um grande número pessoas trabalhadoras que querem
tornar o amanhã melhor do que hoje.
Em outras palavras, o Brasil é muito mais do que uma camisa canarinho e uma obsessão com o futebol.
O colapso contra a Alemanha certamente vai despertar algum exame
de consciência nacional sobre como o Brasil cultiva e desenvolve a sua
próxima geração de estrelas do futebol. O país tem um enorme banco de
talentos, mas acidentes não podem mais acontecer no esporte. Vencer
nesse nível hoje significa não apenas talento, mas dinheiro, treinamento
e uma estratégia coerente.
“Quando você pensa sobre isso”, disse uma brasileira de 20 e
poucos em um bar na noite passada, “é meio engraçado. Quer dizer, sete
gols. É engraçado, né?”
Eu vou apostar que o Brasil como um todo vai se sair muito bem
depois disso. Chateado um pouco, claro, mas em última análise, tudo vai
dar certo. De muitas maneiras, já deu.
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* Diretor-adjunto do Diário do Centro do Mundo. Jornalista e músico. Foi
fundador e diretor de redação da Revista Alfa; editor da Veja São Paulo;
diretor de redação da Viagem e Turismo e do Guia Quatro Rodas.
Fonte: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/11/07/2014
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