quinta-feira, 17 de julho de 2014

Ilia Delio, uma teóloga e sua evolução

 
“Estamos morrendo, e não há nada de errado nisso.” 

Foi o que Ilia Delio disse num encontro com 150 religiosas da congregação de São José, em Brentwood, Nova York, no final de junho.

“Esta situação apenas quer dizer que algo novo está surgindo. Precisamos nos renovar”.

A reportagem é de Jamie Manson, publicada por National Catholic Reporter, 16-07-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.

Foi uma afirmação ousada, que se fez ainda mais audaciosa pelo fato de que a média de idade do grupo reunido estava provavelmente na casa dos 72 anos.

Mas Ilia não estava preocupada com a idade cronológica. Estava tendo em mente uma visão de muitos e muitos milhares de anos: 13.8 bilhões de anos exatamente. A idade do universo. Deste ponto de vista, o que pode parecer desordem e incerteza no futuro da vida religiosa é apenas um estágio natural de um processo evolutivo que se desdobra.

“Se atentarmos somente para este desfalecimento”, diz ela, “estaremos pensando que chegou o nosso fim. Enxergaremos a morte. Mas esta é uma maneira de pensar o sistema de forma fechada”.

Irmã franciscana, Ilia Delio vê o embate entre o Vaticano e a Conferência de Liderança das Religiosas (Leadership Conference of Women Religious – LCWR, em inglês) através das lentes da teoria dos sistemas, abordagem muitas vezes empregada nos estudos da evolução.

Os sistemas abertos, diz ela, continuam abertos para o ambiente que os circunda e eles respondem a mudanças no ambiente reorganizando-se. Depois do Concílio Vaticano II, a maioria das ordens religiosas femininas passou por uma reorganização semelhante, transformando estruturas conformistas rígidas em comunidades não hierárquicas e colaborativas.

“Um sistema aberto tem a capacidade de gerar novidade. Bacias de atração novas surgem dentro do sistema e, com o tempo, o conduzem a um padrão novo de vida. Assim, o caos é realmente uma graça redentora”, afirma Ilia, adaptando a noção da teoria física do caos.

Sinta-se bem-vindo ao pensamento da Irmã Ilia Delio, onde a maior parte das questões relacionadas à Igreja ou à teologia são respondidas por meio de analogias às ciências físicas.

Ilia Delio é uma teóloga rara, possuindo títulos de doutor em ciências e em estudos religiosos. Mas, em seu coração, ela é uma professora. Anseia que os demais enxergam aquilo o que ela vê: a grande interconexão dos seres humanos, de Deus e do universo.

A sua personalidade envolvente a tornou uma oradora querida não só entre as religiosas, mas também em círculos espirituais e acadêmicos. A amplitude de seus conhecimentos pode fazer de eventos como estes absolutamente épicos. Quando Ilia se dirigiu à assembleia da LCWR em 2013, falou por mais de duas horas e meia ao longo de duas sessões, e em seguida respondeu a perguntas por mais uma hora.

O intelecto da religiosa funciona como um pássaro beija-flor quando voa. Enquanto fala, ela se reporta rápida e precisamente da física à teologia medieval e daí aos místicos do século XX. Com entusiasmo, toca levemente cada uma dessas fontes, polinizando ideias e gerando imagens novas e complexas de Deus e do universo.

Por outro lado, a sua escrita é famosa por atormentar até mesmo algumas das mentes sofisticadas da teologia. Mais de uma comunidade religiosa da LCWR teve que desenvolver um guia de estudos para o seu livro publicado em 2013 – “The Unbearable Wholeness of Being” – que serviu de preparação para a assembleia. Não é que a sua prosa seja densa, e sim que sua imaginação teológica, bastante fértil, acaba não resistindo e fazendo relações entre ideias religiosas e ideias científicas. Os insights resultantes podem sobrecarregar os leitores não familiares com tais conceitos.
Porém Ilia insiste que a sua mensagem é, na verdade, bastante simples.

“Quero que todas percebam que somos amadas por um Deus de amor incondicional ao sermos, neste momento, exatamente como somos”, diz ela.

“Surgimos deste longo processo cósmico que chamamos evolução. Mas a evolução diz respeito a uma profunda relacionalidade”, continua. “Somos feitas para amar, e é isso o que nos mantém de pé”.

Talvez o que é mais intrigante em relação a Irmã Ilia Delio não seja a sua compreensão da evolução, mas sim o fato de que a evolução é a história de sua vida.

Nascida Denise Delio, no ano de 1955, foi criada em Nova Jersey por imigrantes italianos de segunda geração. Sua mãe foi enfermeira, e seu pai foi ferroviário. Desde cedo imaginava ser irmã religiosa – um sonho que a sua mãe siciliana tentou durante anos desencorajar após ter se desapontado pelas experiências negativas que sua irmã tivera num convento.

Sua mãe conseguiu este objetivo até certo ponto. Aluna talentosa na área de ciências que sonhava um dia ganhar o Prêmio Nobel, a jovem formou-se e fez mestrado em biologia. Após, fez doutorado em farmacologia na Universidade de Rutgers, em Nova Jersey, com especialização em fisiologia da medula espinhal. Esta pesquisa lhe rendeu uma bolsa de estudos, nível pós-doutorado, na Faculdade de Medicina da Universidade Johns Hopkins para estudar a patologia da doença de Lou Gehrig.

No entanto, poucos meses antes de começar em seu novo projeto, a obra-prima espiritual de Thomas Merton – “A Montanha dos Sete Patamares” – reacendeu o seu desejo pela vida contemplativa.

“Eu enxerguei minha vida em sua vida”, disse Delio. “Ansiei por amar o mundo de longe e viver somente para Cristo”.

Ela declinou a bolsa de estudos. Seus colegas ficaram confusos. “Eles se convenceram de que eu havia inalado algum produto químico tóxico no laboratório ou de que eu teria sofrido um colapso nervoso”, diz a religiosa rindo da situação.

Devota da missa latina, buscou por uma vida austera, de clausura. Em 1984, juntou-se à ordem carmelita. O hábito grande e tradicional destas irmãs representava a santidade e o sacrifício que então ansiava. Numa foto tirada no dia em que professou seus votos de vida religiosa, ela apresenta uma semelhança com Teresa de Lisieux. Uma coroa de flores no alto de sua cabeça velada simboliza o seu status de uma noiva de Cristo.

Delio contempla a imagem por um instante. “Por 20 minutos eu fui feliz”, brinca de início, e então volta à seriedade. “As carmelitas me ensinaram como rezar de verdade”.

Elas também lhe deram o seu nome atual. “Ilia” é a tradução grega feminina de Elias, o profeta que, segundo as escrituras hebraicas, ascendeu ao Monte Carmelo para desafiar 450 profetas sobre o falso deus Baal.

Porém a sua visão romantizada da vida religiosa logo cedeu frente às realidades rigidamente controladas, dia após dia, da vida monástica. “O Deus por quem eu me sentia tão atraída começou a se transformar numa escuridão”, escreveu Delio num ensaio em 2009. “Eu me perguntava por que teria escolhido uma vida de confinamento solitário”.

Após quatro anos de vida na clausura, a religiosa pediu licença, tendo sido enviada para discernimento junto de irmãs franciscanas, em Allegheny, na Pensilvânia. Embora também vestissem o hábito e seguissem uma vida, de certo modo, regimentada, elas tinham uma abertura ao mundo que Ilia considerou libertadora.

“Enquanto escutava suas histórias de missão”, lembra, “comecei a perceber que Jesus se apresentava sob muitas formas”.

Ilia refez o noviciado e se juntou às franciscanas, porém seus conhecimentos de teologia continuavam rudimentares. A comunidade a enviou para estudar religião, em nível de pós-graduação, na Universidade de Fordham, em Nova York.

Durante o ano acadêmico, morou com as irmãs ursulinas no Bronx. Quando o trabalho de completar seus estudos doutorais e o serviço de orientação vocacional para a sua comunidade franciscana pesavam demasiado, Ilia diz que foram o apoio e a atenção que as ursulinas lhe deram o que a ajudou “ver do que se trata a verdadeira Encarnação”.

“De repente vi Deus presente nestas freiras usando jeans e camisetas”, lembra ela.

Na Fordham, a doutoranda mergulhou na teologia histórica, encontrando inspiração entre os teólogos medievais, em particular São Boaventura, sobre quem ela escreveria a sua tese doutoral. O seu orientador, o renomado estudioso Ewert Cousins, também a apresentou à obra de Pierre Teilhard de Chardin, paleontologista jesuíta cujos escritos místicos sobre o cristianismo e o cosmos vêm inspirando gerações de teólogos católicos. Ela ficou atraída pela forma como este autor sintetiza o seu profundo conhecimento científico com a visão mística do mundo que tinha.

Teilhard de Chardin desenvolveu o conceito de cristianismo evolutivo, teorizando que a criação inteira progredia em direção à realização em Cristo. O objetivo do universo, chamado por ele de o Ponto Ômega, era a consciência plena em Deus.

“Ele acreditava que a energia do amor estava no coração do Big Bang”, diz a irmã. “Assim como o amor surge na evolução, há também um aumento de consciência”.

Da mesma forma que Teilhard de Chardin, Ilia é tão familiar com as ciências quanto é devota a Deus. Ela não é apenas uma conhecedora da obra do autor jesuíta. Compartilha de seu espírito também.

“Ele foi um alguém profundamente encarnado, profundamente espiritual. Acho que podemos dizer: eu e ele compartilhamos uma ressonância encarnada”.

O mais recente livro da Irmã Ilia, intitulado “From Teilhard to Omega: Co-creating an Unfinished Universe” [De Teilhard a Ômega: a cocriação de um universo inacabado], é um volume editado com ensaios escritos por grandes estudiosos da ciência e religião. Delio desafiou cada um dos escritores a aplicar os insights de Teilhard de Chardin às necessidades da época atual.

A sede contemporânea por sentido é uma preocupação que estimula grande parte da própria obra da Irmã Ilia. Ainda que atualmente trabalhe como professora visitante e diretora no departamento de estudos católicos da Universidade de Georgetown, ela se mostra menos inclinada a fazer teologia acadêmica tradicional.

“Eu gostaria de fazer teologia junto das pessoas dentro dos shoppings, nos parques, no Facebook”, diz. “Eu fico sentida com o fato de que nos tornamos os mais antinaturais das espécies. Estamos morrendo para a vida, ao mesmo tempo tentando controlar a natureza e rejeitando uns aos outros. É um mundo belo que, muitas vezes, nós transformamos num mundo assustador”.

Ilia acredita que Deus fala de seu amor em toda a criação, mesmo nas criaturas pequenas e temíveis como uma água-viva ou uma cobra venenosa. “Em seus ambientes naturais, estas possuem beleza e bondade”, afirma. “Eu as chamo: ‘Pequenas palavras de Deus’”.

“Custa-nos caro aceitar esta ideia porque somos malucos para ter o controle sobre as coisas”, continua. “Achamos que tudo precisa se enquadrar em nossa maneira de pensar, naquilo que é bom e bonito. Mas, ao assim procedermos, rejeitamos o convite divino ao amor”.

“Parte do que me motiva, creio eu, é que Deus apenas quer ser Deus: de uma forma boa, de uma forma amorosa. Não de uma forma controladora, mas sendo uma fonte de compaixão, unidade e justiça”.

O desafio, acrescenta a irmã, é que “a única maneira de Deus poder ser Deus como coração deste mundo é através de nós como voz consciente deste universo evolutivo”.

A nossa incapacidade de enxergar a presença amorosa de Deus em toda a criação nos conduziu à degradação em curso do meio ambiente e à violência crescente uns para com os outros. “Não é de se maravilhar que programas de TV como ‘Law and Order’ ou ‘Mentes Criminosas’ sejam tão populares”, diz. “Eles reforçam esta ideia de que somos totalmente depravados e que Deus é separado deste mundo”.

“Penso que nos tornamos sistemas fechados, antinaturais e afastados. Portanto, não nos sentimos em casa dentro deste cosmos”, afirma. “Na natureza nós não estamos mais em casa, e nem nos sentimos assim uns com os outros. Estamos literalmente perdidos no espaço”.

Ilia Delio acredita que a religião frequentemente perpetua a desconexão entre Deus a criação. “A Igreja não está levando as pessoas em direção a um novo nível de consciência, mas, pelo contrário, a uma divisão”.

“A religião deveria estar nos fazendo cientes de sermos parte do todo”, acrescenta, “porém não estamos ensinando isso. Não praticamos este ensinamento. Não o temos em nossos rituais. Não criamos uma comunidade em que uma pessoa é valorizada em sua rica diversidade”.

A própria identidade religiosa da Irmã Ilia continuou a evoluir com o aprofundamento de sua consciência da presença divina nas particularidades da vida. Quando teve o seu primeiro emprego como professora na Washington Theological Union, em 1997, ela ainda estava, diz, “vinculada ao véu”.

“Ao não mais usar o véu, me desfiz do último dos sinais exteriores da vida religiosa”, lembra-se. “Percebi que o todo da vida é religioso, pois este todo busca uma profunda conexão”.
Hoje, Ilia pertence a uma comunidade religiosa que tenta viver a vida religiosa como um sistema aberto. Conhecida como as Franciscanas de Washington, D.C., vive numa pequena comunidade de mulheres que fizeram votos religiosos e que buscam revitalizar o carisma franciscano no século XXI.
Estas irmãs têm tentado se afastar das divisões econômicas e eclesiásticas, tais como a distinção que divide leigos e religiosos. “Nos tempos medievais, ‘religioso’ significava que se possuía uma graça especial. ‘Leigo’ significava que se era analfabeto; literalmente, duro como uma rocha’. Ora, não é assim que funciona o corpo de Cristo. Somos um único batismo, temos uma única fé, uma única esperança”, explica.

Ilia está também trabalhando na ampliação de nossa compreensão do catolicismo. O seu próximo livro – “Making All Things New” [Fazer nova todas as coisas] – será o primeiro de uma série chamada “Catholicity and the Evolving Universe” [O catolicismo e o universo evolutivo]. Os volumes serão escritos por múltiplos autores, e Ilia trabalhará como editora geral.

“Nós todos aprendemos que a palavra ‘católico’ significa ‘universal’, porém isso se baseia na tradução da Igreja primitiva feita do grego ‘katholikos’ para o latim ‘universalis’”, explica.

A palavra universal não captura de forma adequada o significado rico que tem o termo “katholikos” no grego antigo. Este termo significa “através do todo” ou “do começo ao fim do todo”, diz. “Esta palavra denota uma consciência ativa do todo ou uma busca de fazer o todo”.

Não obstante, no século III “católico” passou a significar menos um processo integral e mais uma ortodoxia. Por fim, foi empregado para se distinguir a ortodoxia da heresia.

“Sabemos que Jesus foi judeu, mas também foi ‘católico’ no sentido de que se preocupou com o todo”, diz a irmã. “Ele veio para trazer a vida e para trazê-la de forma plena”.

“Jesus nos ensinou que a salvação diz respeito à construção de um todo e à cura”, continua a religiosa. “Não se trata da graça de ser salvo deste mundo depravado e caído. Trata-se, isso sim, daquela graça de amor que nos cura. Eu penso que isto é o que quer dizer ser salvo: sermos curados, sermos um todo e sermos enviados ao mundo para nós mesmos nos tornarmos construtores do todo”.
Se o catolicismo se retraiu na época atual, é porque ele caiu num conjunto legalista de proposições e regras. A crença religiosa, segundo Ilia, perde o seu poder de transformar todas as coisas quando ela não mais se relaciona com o concreto, com a realidade vivida.

“O catolicismo diz respeito à forma como pensamos sobre qualquer coisa que estivermos pensando. Esperemos que esta série de livros venha explorar as dimensões do catolicismo em um universo evolutivo, com destaque especial às áreas da teologia, espiritualidade, artes, economia e meio ambiente”, diz ela.

Após um início de vida adulta tentando transcender o mundo, a Irmã Ilia Delio agora quer se ver imersa nele. “A maneira franciscana é a do fazer em concreto”, diz, “enxergando o amor de Deus no leproso, entre as flores e os pássaros, na lua. [São] Francisco nos ensinou sobre a consciência de Deus em concreto”.

Mas, assim como aconteceu com o seu homônimo Elias, Delio se encontra, por vezes, sozinha na montanha. Como uma profeta, praticamente não mantém vínculos com as instituições. Não apenas vive uma forma renovada de vida religiosa, mas também o seu posto na Universidade de Georgetown não é de titular.

E o que não deve ser surpresa: ela se sente à vontade no caos. Insiste que ele é, na verdade, uma graça. “Para mim, é uma dádiva não estar demasiada estável naquilo que faço. Creio que isso me permite ser mais livre em minha criatividade”.

“Acho que é assim que Deus trabalha”, acrescenta. “Ele desamarra algumas pessoas na história de forma que estejam livres para se dedicarem, radicalmente, a criar o novo e a participar dele”.
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Fonte: IHU online, 17/07/2014

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