“Estamos morrendo, e não há nada de errado nisso.”
Foi o que Ilia Delio disse num encontro com 150 religiosas da congregação de São José, em Brentwood, Nova York, no final de junho.
“Esta situação apenas quer dizer que algo novo está surgindo. Precisamos nos renovar”.
A reportagem é de Jamie Manson, publicada por National Catholic Reporter, 16-07-2014. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Foi uma afirmação ousada, que se fez ainda mais audaciosa pelo fato
de que a média de idade do grupo reunido estava provavelmente na casa
dos 72 anos.
Mas Ilia não estava preocupada com a idade
cronológica. Estava tendo em mente uma visão de muitos e muitos milhares
de anos: 13.8 bilhões de anos exatamente. A idade do universo. Deste
ponto de vista, o que pode parecer desordem e incerteza no futuro da
vida religiosa é apenas um estágio natural de um processo evolutivo que
se desdobra.
“Se atentarmos somente para este desfalecimento”, diz ela, “estaremos
pensando que chegou o nosso fim. Enxergaremos a morte. Mas esta é uma
maneira de pensar o sistema de forma fechada”.
Irmã franciscana, Ilia Delio vê o embate entre o Vaticano e a Conferência de Liderança das Religiosas (Leadership Conference of Women Religious – LCWR, em inglês) através das lentes da teoria dos sistemas, abordagem muitas vezes empregada nos estudos da evolução.
Os sistemas abertos, diz ela, continuam abertos para o ambiente que
os circunda e eles respondem a mudanças no ambiente reorganizando-se.
Depois do Concílio Vaticano II, a maioria das ordens
religiosas femininas passou por uma reorganização semelhante,
transformando estruturas conformistas rígidas em comunidades não
hierárquicas e colaborativas.
“Um sistema aberto tem a capacidade de gerar novidade. Bacias de
atração novas surgem dentro do sistema e, com o tempo, o conduzem a um
padrão novo de vida. Assim, o caos é realmente uma graça redentora”,
afirma Ilia, adaptando a noção da teoria física do caos.
Sinta-se bem-vindo ao pensamento da Irmã Ilia Delio, onde a maior parte das questões relacionadas à Igreja ou à teologia são respondidas por meio de analogias às ciências físicas.
Ilia Delio é uma teóloga rara, possuindo títulos de
doutor em ciências e em estudos religiosos. Mas, em seu coração, ela é
uma professora. Anseia que os demais enxergam aquilo o que ela vê: a
grande interconexão dos seres humanos, de Deus e do universo.
A sua personalidade envolvente a tornou uma oradora querida não só
entre as religiosas, mas também em círculos espirituais e acadêmicos. A
amplitude de seus conhecimentos pode fazer de eventos como estes
absolutamente épicos. Quando Ilia se dirigiu à assembleia da LCWR em 2013, falou por mais de duas horas e meia ao longo de duas sessões, e em seguida respondeu a perguntas por mais uma hora.
O intelecto da religiosa funciona como um pássaro beija-flor quando
voa. Enquanto fala, ela se reporta rápida e precisamente da física à
teologia medieval e daí aos místicos do século XX. Com entusiasmo, toca
levemente cada uma dessas fontes, polinizando ideias e gerando imagens
novas e complexas de Deus e do universo.
Por outro lado, a sua escrita é famosa por atormentar até mesmo
algumas das mentes sofisticadas da teologia. Mais de uma comunidade
religiosa da LCWR teve que desenvolver um guia de estudos para o seu livro publicado em 2013 – “The Unbearable Wholeness of Being”
– que serviu de preparação para a assembleia. Não é que a sua prosa
seja densa, e sim que sua imaginação teológica, bastante fértil, acaba
não resistindo e fazendo relações entre ideias religiosas e ideias
científicas. Os insights resultantes podem sobrecarregar os leitores não
familiares com tais conceitos.
Porém Ilia insiste que a sua mensagem é, na verdade, bastante simples.
“Quero que todas percebam que somos amadas por um Deus de amor
incondicional ao sermos, neste momento, exatamente como somos”, diz ela.
“Surgimos deste longo processo cósmico que chamamos evolução. Mas a
evolução diz respeito a uma profunda relacionalidade”, continua. “Somos
feitas para amar, e é isso o que nos mantém de pé”.
Talvez o que é mais intrigante em relação a Irmã Ilia Delio não seja a sua compreensão da evolução, mas sim o fato de que a evolução é a história de sua vida.
Nascida Denise Delio, no ano de 1955, foi criada em
Nova Jersey por imigrantes italianos de segunda geração. Sua mãe foi
enfermeira, e seu pai foi ferroviário. Desde cedo imaginava ser irmã
religiosa – um sonho que a sua mãe siciliana tentou durante anos
desencorajar após ter se desapontado pelas experiências negativas que
sua irmã tivera num convento.
Sua mãe conseguiu este objetivo até certo ponto. Aluna talentosa na
área de ciências que sonhava um dia ganhar o Prêmio Nobel, a jovem
formou-se e fez mestrado em biologia. Após, fez doutorado em
farmacologia na Universidade de Rutgers, em Nova Jersey, com
especialização em fisiologia da medula espinhal. Esta pesquisa lhe
rendeu uma bolsa de estudos, nível pós-doutorado, na Faculdade de
Medicina da Universidade Johns Hopkins para estudar a patologia da doença de Lou Gehrig.
No entanto, poucos meses antes de começar em seu novo projeto, a obra-prima espiritual de Thomas Merton – “A Montanha dos Sete Patamares” – reacendeu o seu desejo pela vida contemplativa.
“Eu enxerguei minha vida em sua vida”, disse Delio. “Ansiei por amar o mundo de longe e viver somente para Cristo”.
Ela declinou a bolsa de estudos. Seus colegas ficaram confusos. “Eles
se convenceram de que eu havia inalado algum produto químico tóxico no
laboratório ou de que eu teria sofrido um colapso nervoso”, diz a
religiosa rindo da situação.
Devota da missa latina, buscou por uma vida austera, de clausura. Em
1984, juntou-se à ordem carmelita. O hábito grande e tradicional destas
irmãs representava a santidade e o sacrifício que então ansiava. Numa
foto tirada no dia em que professou seus votos de vida religiosa, ela
apresenta uma semelhança com Teresa de Lisieux. Uma coroa de flores no alto de sua cabeça velada simboliza o seu status de uma noiva de Cristo.
Delio contempla a imagem por um instante. “Por 20 minutos eu fui feliz”, brinca de início, e então volta à seriedade. “As carmelitas me ensinaram como rezar de verdade”.
Elas também lhe deram o seu nome atual. “Ilia” é a tradução grega feminina de Elias, o profeta que, segundo as escrituras hebraicas, ascendeu ao Monte Carmelo para desafiar 450 profetas sobre o falso deus Baal.
Porém a sua visão romantizada da vida religiosa logo cedeu frente às
realidades rigidamente controladas, dia após dia, da vida monástica. “O
Deus por quem eu me sentia tão atraída começou a se transformar numa
escuridão”, escreveu Delio num ensaio em 2009. “Eu me perguntava por que teria escolhido uma vida de confinamento solitário”.
Após quatro anos de vida na clausura, a religiosa pediu licença,
tendo sido enviada para discernimento junto de irmãs franciscanas, em Allegheny,
na Pensilvânia. Embora também vestissem o hábito e seguissem uma vida,
de certo modo, regimentada, elas tinham uma abertura ao mundo que Ilia considerou libertadora.
“Enquanto escutava suas histórias de missão”, lembra, “comecei a perceber que Jesus se apresentava sob muitas formas”.
Ilia refez o noviciado e se juntou às franciscanas,
porém seus conhecimentos de teologia continuavam rudimentares. A
comunidade a enviou para estudar religião, em nível de pós-graduação, na Universidade de Fordham, em Nova York.
Durante o ano acadêmico, morou com as irmãs ursulinas no Bronx.
Quando o trabalho de completar seus estudos doutorais e o serviço de
orientação vocacional para a sua comunidade franciscana pesavam
demasiado, Ilia diz que foram o apoio e a atenção que as ursulinas lhe deram o que a ajudou “ver do que se trata a verdadeira Encarnação”.
“De repente vi Deus presente nestas freiras usando jeans e camisetas”, lembra ela.
Na Fordham, a doutoranda mergulhou na teologia histórica, encontrando inspiração entre os teólogos medievais, em particular São Boaventura, sobre quem ela escreveria a sua tese doutoral. O seu orientador, o renomado estudioso Ewert Cousins, também a apresentou à obra de Pierre Teilhard de Chardin,
paleontologista jesuíta cujos escritos místicos sobre o cristianismo e o
cosmos vêm inspirando gerações de teólogos católicos. Ela ficou atraída
pela forma como este autor sintetiza o seu profundo conhecimento
científico com a visão mística do mundo que tinha.
Teilhard de Chardin
desenvolveu o conceito de cristianismo evolutivo, teorizando que a
criação inteira progredia em direção à realização em Cristo. O objetivo
do universo, chamado por ele de o Ponto Ômega, era a consciência plena
em Deus.
“Ele acreditava que a energia do amor estava no coração do Big Bang”,
diz a irmã. “Assim como o amor surge na evolução, há também um aumento
de consciência”.
Da mesma forma que Teilhard de Chardin, Ilia
é tão familiar com as ciências quanto é devota a Deus. Ela não é apenas
uma conhecedora da obra do autor jesuíta. Compartilha de seu espírito
também.
“Ele foi um alguém profundamente encarnado, profundamente espiritual.
Acho que podemos dizer: eu e ele compartilhamos uma ressonância
encarnada”.
O mais recente livro da Irmã Ilia, intitulado “From Teilhard to Omega: Co-creating an Unfinished Universe”
[De Teilhard a Ômega: a cocriação de um universo inacabado], é um
volume editado com ensaios escritos por grandes estudiosos da ciência e
religião. Delio desafiou cada um dos escritores a aplicar os insights de Teilhard de Chardin às necessidades da época atual.
A sede contemporânea por sentido é uma preocupação que estimula grande parte da própria obra da Irmã Ilia. Ainda que atualmente trabalhe como professora visitante e diretora no departamento de estudos católicos da Universidade de Georgetown, ela se mostra menos inclinada a fazer teologia acadêmica tradicional.
“Eu gostaria de fazer teologia junto das pessoas dentro dos
shoppings, nos parques, no Facebook”, diz. “Eu fico sentida com o fato
de que nos tornamos os mais antinaturais das espécies. Estamos morrendo
para a vida, ao mesmo tempo tentando controlar a natureza e rejeitando
uns aos outros. É um mundo belo que, muitas vezes, nós transformamos num
mundo assustador”.
Ilia acredita que Deus fala de seu amor em toda a
criação, mesmo nas criaturas pequenas e temíveis como uma água-viva ou
uma cobra venenosa. “Em seus ambientes naturais, estas possuem beleza e
bondade”, afirma. “Eu as chamo: ‘Pequenas palavras de Deus’”.
“Custa-nos caro aceitar esta ideia porque somos malucos para ter o
controle sobre as coisas”, continua. “Achamos que tudo precisa se
enquadrar em nossa maneira de pensar, naquilo que é bom e bonito. Mas,
ao assim procedermos, rejeitamos o convite divino ao amor”.
“Parte do que me motiva, creio eu, é que Deus apenas quer ser Deus:
de uma forma boa, de uma forma amorosa. Não de uma forma controladora,
mas sendo uma fonte de compaixão, unidade e justiça”.
O desafio, acrescenta a irmã, é que “a única maneira de Deus poder
ser Deus como coração deste mundo é através de nós como voz consciente
deste universo evolutivo”.
A nossa incapacidade de enxergar a presença amorosa de Deus em toda a
criação nos conduziu à degradação em curso do meio ambiente e à
violência crescente uns para com os outros. “Não é de se maravilhar que
programas de TV como ‘Law and Order’ ou ‘Mentes Criminosas’ sejam tão populares”, diz. “Eles reforçam esta ideia de que somos totalmente depravados e que Deus é separado deste mundo”.
“Penso que nos tornamos sistemas fechados, antinaturais e afastados.
Portanto, não nos sentimos em casa dentro deste cosmos”, afirma. “Na
natureza nós não estamos mais em casa, e nem nos sentimos assim uns com
os outros. Estamos literalmente perdidos no espaço”.
Ilia Delio acredita que a religião frequentemente
perpetua a desconexão entre Deus a criação. “A Igreja não está levando
as pessoas em direção a um novo nível de consciência, mas, pelo
contrário, a uma divisão”.
“A religião deveria estar nos fazendo cientes de sermos parte do
todo”, acrescenta, “porém não estamos ensinando isso. Não praticamos
este ensinamento. Não o temos em nossos rituais. Não criamos uma
comunidade em que uma pessoa é valorizada em sua rica diversidade”.
A própria identidade religiosa da Irmã Ilia
continuou a evoluir com o aprofundamento de sua consciência da presença
divina nas particularidades da vida. Quando teve o seu primeiro emprego
como professora na Washington Theological Union, em 1997, ela ainda estava, diz, “vinculada ao véu”.
“Ao não mais usar o véu, me desfiz do último dos sinais exteriores da
vida religiosa”, lembra-se. “Percebi que o todo da vida é religioso,
pois este todo busca uma profunda conexão”.
Hoje, Ilia pertence a uma comunidade religiosa que tenta viver a vida religiosa como um sistema aberto. Conhecida como as Franciscanas de Washington, D.C.,
vive numa pequena comunidade de mulheres que fizeram votos religiosos e
que buscam revitalizar o carisma franciscano no século XXI.
Estas irmãs têm tentado se afastar das divisões econômicas e
eclesiásticas, tais como a distinção que divide leigos e religiosos.
“Nos tempos medievais, ‘religioso’ significava que se possuía uma graça
especial. ‘Leigo’ significava que se era analfabeto; literalmente, duro
como uma rocha’. Ora, não é assim que funciona o corpo de Cristo. Somos
um único batismo, temos uma única fé, uma única esperança”, explica.
Ilia está também trabalhando na ampliação de nossa compreensão do catolicismo. O seu próximo livro – “Making All Things New” [Fazer nova todas as coisas] – será o primeiro de uma série chamada “Catholicity and the Evolving Universe” [O catolicismo e o universo evolutivo]. Os volumes serão escritos por múltiplos autores, e Ilia trabalhará como editora geral.
“Nós todos aprendemos que a palavra ‘católico’ significa ‘universal’,
porém isso se baseia na tradução da Igreja primitiva feita do grego
‘katholikos’ para o latim ‘universalis’”, explica.
A palavra universal não captura de forma adequada o significado rico que tem o termo “katholikos”
no grego antigo. Este termo significa “através do todo” ou “do começo
ao fim do todo”, diz. “Esta palavra denota uma consciência ativa do todo
ou uma busca de fazer o todo”.
Não obstante, no século III “católico” passou a significar menos um
processo integral e mais uma ortodoxia. Por fim, foi empregado para se
distinguir a ortodoxia da heresia.
“Sabemos que Jesus foi judeu, mas também foi ‘católico’ no sentido de
que se preocupou com o todo”, diz a irmã. “Ele veio para trazer a vida e
para trazê-la de forma plena”.
“Jesus nos ensinou que a salvação diz respeito à construção de um
todo e à cura”, continua a religiosa. “Não se trata da graça de ser
salvo deste mundo depravado e caído. Trata-se, isso sim, daquela graça
de amor que nos cura. Eu penso que isto é o que quer dizer ser salvo:
sermos curados, sermos um todo e sermos enviados ao mundo para nós
mesmos nos tornarmos construtores do todo”.
Se o catolicismo se retraiu na época atual, é porque ele caiu num
conjunto legalista de proposições e regras. A crença religiosa, segundo Ilia, perde o seu poder de transformar todas as coisas quando ela não mais se relaciona com o concreto, com a realidade vivida.
“O catolicismo diz respeito à forma como pensamos sobre qualquer
coisa que estivermos pensando. Esperemos que esta série de livros venha
explorar as dimensões do catolicismo em um universo evolutivo, com
destaque especial às áreas da teologia, espiritualidade, artes, economia
e meio ambiente”, diz ela.
Após um início de vida adulta tentando transcender o mundo, a Irmã Ilia Delio
agora quer se ver imersa nele. “A maneira franciscana é a do fazer em
concreto”, diz, “enxergando o amor de Deus no leproso, entre as flores e
os pássaros, na lua. [São] Francisco nos ensinou sobre a consciência de Deus em concreto”.
Mas, assim como aconteceu com o seu homônimo Elias, Delio
se encontra, por vezes, sozinha na montanha. Como uma profeta,
praticamente não mantém vínculos com as instituições. Não apenas vive
uma forma renovada de vida religiosa, mas também o seu posto na Universidade de Georgetown não é de titular.
E o que não deve ser surpresa: ela se sente à vontade no caos.
Insiste que ele é, na verdade, uma graça. “Para mim, é uma dádiva não
estar demasiada estável naquilo que faço. Creio que isso me permite ser
mais livre em minha criatividade”.
“Acho que é assim que Deus trabalha”, acrescenta. “Ele desamarra
algumas pessoas na história de forma que estejam livres para se
dedicarem, radicalmente, a criar o novo e a participar dele”.
-------------
Fonte: IHU online, 17/07/2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário