sexta-feira, 4 de julho de 2014

A VERDADE DA FICÇÃO

 Sipa/Newsom / Sipa/Newsom
Francisco Goldman, em seu escritório de Paris:
 "Quem julga a veracidade do livro? 
As verdades que interessam ao escritor 
estão em sua alma e 
em sua literatura"
 
Os leitores modernos parecem mais afeitos a histórias ditas verdadeiras do que a obras de ficção. Realidade é a demanda do nosso tempo, ainda que seja difícil de suportar. É ela que vem se impondo com força na literatura, talvez por conta do esgotamento das formas narrativas tradicionais. Ou pode ser por uma crise das histórias inventadas. O leitor parece estar apurando o faro para os excessos de "literatura", os enfeites, a pretensão e o consequente artificialismo dos livros chatos e vazios, mesmo quando disfarçados de autoficção.

Diante de uma obra de ficção sem novidades, o leitor tende a escolher, instintivamente, aquela "história verdadeira" com a qual, no final das contas, irá despender algumas horas do seu tempo cada vez mais escasso.

O escritor americano Francisco Goldman conseguiu a proeza de unir com talento os dois polos, o da ficção e o da realidade. Fez isso num livro único, que dificilmente poderá repetir: "Diga o Nome Dela" (Companhia das Letras, tradução de Maria Luiza Newlands, 440 págs, R$ 49,50).

"Diga o Nome Dela" é uma memória que também é um romance, a história da vida de Aura Estrada, a segunda mulher do escritor, uma estudante de literatura com ambições literárias morta aos 30 anos num acidente numa praia do México. Goldman escreveu o livro trabalhando o próprio luto. O que surgiu desta imersão desesperada na memória é o que se pode chamar de alta literatura repleta de realidade.

"É uma novela autobiográfica, não uma memória", ele diz. "Eu não gosto das pretensões desse gênero chamado 'memória'. Não me interessa. Afinal, quem julga a veracidade do livro? As verdades que interessam ao escritor estão em sua alma e na sua literatura." Goldman publicou outros romances e reportagens antes de encarar a necessidade de falar sobre Aura.

Ele escreveu um bilhete que pretendia deixar no caixão da mulher, cena que não aparece no romance, mas está descrita num artigo da revista "The Believer". No bilhete, algumas promessas: publicar um livro com os textos de Aura; criar um prêmio literário com o nome dela; viver cada dia de um jeito que honrasse sua memória. Tempos depois, relendo o bilhete que não pôde colocar no caixão lacrado, o escritor percebeu que uma das principais promessas que havia feito quando da morte de Aura não estava nele. Goldman prometera escrever um livro que contasse a história dos dois, um livro escrito para ela.

"Diga o Nome Dela" é esse livro, construído sobre a dor da perda e também na recordação dos dias felizes. Há um grande equilíbrio narrativo nas suas mais de 400 páginas. O escritor consegue não passar do ponto mesmo quando toca nos assuntos mais espinhosos, ou quando relembra as bobagens cotidianas que cercam qualquer casal apaixonado. A forma equilibrada do romance é muito importante. "Para mim, escrever um romance significa buscar uma forma, a forma inesperada das coisas, que você não vai encontrar outro jeito de dizer".

O que surgiu da imersão desesperada do autor na memória 
é o que se pode chamar de alta literatura 
repleta de realidade

Goldman viu-se frente a frente com a memória, e dela precisou extrair as melhores e as piores lembranças, equilibrando-se no tênue fio de uma forma complexa, uma receita que poderia desandar a cada linha. "Meu livro é uma investigação, uma exploração e uma narração de tudo o que Aura, nosso amor e a morte dela significam para mim. Eu não maquiei nada ", diz.
Mas o leitor percebe - e não se importa - quando a ficção aparece. Para contar a vida de Aura, incluindo sua infância, o escritor foi beber nas águas da imaginação. Aí entra a literatura: ela consegue manter o leitor conectado com a história.

Goldman é filho de pai americano e mãe guatemalteca. Talvez por isso tenha conseguido captar com naturalidade o universo latino em que se movia Aura Estrada. É possível capturar aqui e ali uma certa tensão nas entrelinhas, tanto do ponto de vista acadêmico (os esforços de Aura por emplacar nesse meio) quanto do ponto de vista social, com o agravante de que ela era bem mais jovem do que o escritor quando eles começaram a se relacionar.

Tudo fica ainda mais tenso depois dos relatos de Goldman a respeito da mãe e do tio de Aura, que culpam o escritor, inclusive do ponto de vista judicial, pela morte da mulher. O narrador é esse ser acuado pela dor e pela culpa. Afinal, ele estava lá, no mar, quando Aura, tentando "pegar um jacaré" numa onda mais forte, acabou engolfada, e fraturou uma das vértebras do pescoço. Um acidente banal, cujo desenlace trágico só aparece com todas as tintas no final da história. Até nesse sentido Goldman mostra o seu domínio da narrativa. Mas como terá sido escrever sobre a morte da personagem que ele vai pintando com enorme verossimilhança ao longo do livro, alguém que parece respirar dentro do romance?

"Foi muito doloroso. Eu estava escrevendo o primeiro rascunho às 11 horas da noite, e o fazia desde as primeiras horas da manhã. Então, disse pra mim mesmo: se eu for pra cama agora, nunca vou conseguir terminar isso. Fiquei escrevendo até perto do amanhecer. Depois peguei uma garrafa de mescal e saí na escuridão. Bebi metade da garrafa".

Fã de Clarice Lispector, Aura poderia ter tido uma carreira literária. O prêmio criado por Goldman em nome dela é dedicado a escritoras de até 35 anos. Aura, definitivamente, continua sendo parte da vida de Francisco, para além do personagem. Assim como também não sai da cabeça do leitor, com sua simplicidade, sua alegria de viver, seus pequenos defeitos, suas características tão humanas e verdadeiras. Graças aos méritos do escritor como romancista, ela é uma presença quase viva, uma dessas criações literárias que vivem além dos livros.

Quanto ao escritor que soube purgar a perda de forma tão especial, a ficção ainda é um esforço diário. Depois de ter escrito um novo livro, "The Interior Circuit: A Mexico City Chronicle", que não é romance, mas trata da relação pessoal do autor com a cidade que teve tudo a ver com a história de Aura, ele tenta buscar espaço na imaginação. "Mas é muito difícil voltar à ficção depois da morte de Aura. O peso da realidade é duro de carregar. Ainda assim, estou de volta ao romance. Espero que consiga terminá-lo dentro de um ano." Enquanto isso, "Diga o Nome Dela", um dos romances mais pungentes dos últimos tempos, ainda estará em nossas mãos.
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REPORTAGEM POR CADÃO VOLPATO / Para o Valor de São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 004/07/2014

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