Os leitores modernos parecem mais afeitos a histórias ditas
verdadeiras do que a obras de ficção. Realidade é a demanda do nosso
tempo, ainda que seja difícil de suportar. É ela que vem se impondo com
força na literatura, talvez por conta do esgotamento das formas
narrativas tradicionais. Ou pode ser por uma crise das histórias
inventadas. O leitor parece estar apurando o faro para os excessos de
"literatura", os enfeites, a pretensão e o consequente artificialismo
dos livros chatos e vazios, mesmo quando disfarçados de autoficção.
Diante de uma obra de ficção sem novidades, o leitor tende a
escolher, instintivamente, aquela "história verdadeira" com a qual, no
final das contas, irá despender algumas horas do seu tempo cada vez mais
escasso.
O escritor americano Francisco Goldman conseguiu a proeza de unir com
talento os dois polos, o da ficção e o da realidade. Fez isso num livro
único, que dificilmente poderá repetir: "Diga o Nome Dela" (Companhia
das Letras, tradução de Maria Luiza Newlands, 440 págs, R$ 49,50).
"Diga o Nome Dela" é uma memória que também é um romance, a história
da vida de Aura Estrada, a segunda mulher do escritor, uma estudante de
literatura com ambições literárias morta aos 30 anos num acidente numa
praia do México. Goldman escreveu o livro trabalhando o próprio luto. O
que surgiu desta imersão desesperada na memória é o que se pode chamar
de alta literatura repleta de realidade.
"É uma novela autobiográfica, não uma memória", ele diz. "Eu não
gosto das pretensões desse gênero chamado 'memória'. Não me interessa.
Afinal, quem julga a veracidade do livro? As verdades que interessam ao
escritor estão em sua alma e na sua literatura." Goldman publicou outros
romances e reportagens antes de encarar a necessidade de falar sobre
Aura.
Ele escreveu um bilhete que pretendia deixar no caixão da mulher,
cena que não aparece no romance, mas está descrita num artigo da revista
"The Believer". No bilhete, algumas promessas: publicar um livro com os
textos de Aura; criar um prêmio literário com o nome dela; viver cada
dia de um jeito que honrasse sua memória. Tempos depois, relendo o
bilhete que não pôde colocar no caixão lacrado, o escritor percebeu que
uma das principais promessas que havia feito quando da morte de Aura não
estava nele. Goldman prometera escrever um livro que contasse a
história dos dois, um livro escrito para ela.
"Diga o Nome Dela" é esse livro, construído sobre a dor da perda e
também na recordação dos dias felizes. Há um grande equilíbrio narrativo
nas suas mais de 400 páginas. O escritor consegue não passar do ponto
mesmo quando toca nos assuntos mais espinhosos, ou quando relembra as
bobagens cotidianas que cercam qualquer casal apaixonado. A forma
equilibrada do romance é muito importante. "Para mim, escrever um
romance significa buscar uma forma, a forma inesperada das coisas, que
você não vai encontrar outro jeito de dizer".
O que surgiu da imersão desesperada do autor na memória
é o que se pode chamar de alta literatura
repleta de realidade
Goldman viu-se frente a frente com a memória, e dela precisou extrair
as melhores e as piores lembranças, equilibrando-se no tênue fio de uma
forma complexa, uma receita que poderia desandar a cada linha. "Meu
livro é uma investigação, uma exploração e uma narração de tudo o que
Aura, nosso amor e a morte dela significam para mim. Eu não maquiei nada
", diz.
Mas o leitor percebe - e não se importa - quando a ficção aparece.
Para contar a vida de Aura, incluindo sua infância, o escritor foi beber
nas águas da imaginação. Aí entra a literatura: ela consegue manter o
leitor conectado com a história.
Goldman é filho de pai americano e mãe guatemalteca. Talvez por isso
tenha conseguido captar com naturalidade o universo latino em que se
movia Aura Estrada. É possível capturar aqui e ali uma certa tensão nas
entrelinhas, tanto do ponto de vista acadêmico (os esforços de Aura por
emplacar nesse meio) quanto do ponto de vista social, com o agravante de
que ela era bem mais jovem do que o escritor quando eles começaram a se
relacionar.
Tudo fica ainda mais tenso depois dos relatos de Goldman a respeito
da mãe e do tio de Aura, que culpam o escritor, inclusive do ponto de
vista judicial, pela morte da mulher. O narrador é esse ser acuado pela
dor e pela culpa. Afinal, ele estava lá, no mar, quando Aura, tentando
"pegar um jacaré" numa onda mais forte, acabou engolfada, e fraturou uma
das vértebras do pescoço. Um acidente banal, cujo desenlace trágico só
aparece com todas as tintas no final da história. Até nesse sentido
Goldman mostra o seu domínio da narrativa. Mas como terá sido escrever
sobre a morte da personagem que ele vai pintando com enorme
verossimilhança ao longo do livro, alguém que parece respirar dentro do
romance?
"Foi muito doloroso. Eu estava escrevendo o primeiro rascunho às 11
horas da noite, e o fazia desde as primeiras horas da manhã. Então,
disse pra mim mesmo: se eu for pra cama agora, nunca vou conseguir
terminar isso. Fiquei escrevendo até perto do amanhecer. Depois peguei
uma garrafa de mescal e saí na escuridão. Bebi metade da garrafa".
Fã de Clarice Lispector, Aura poderia ter tido uma carreira
literária. O prêmio criado por Goldman em nome dela é dedicado a
escritoras de até 35 anos. Aura, definitivamente, continua sendo parte
da vida de Francisco, para além do personagem. Assim como também não sai
da cabeça do leitor, com sua simplicidade, sua alegria de viver, seus
pequenos defeitos, suas características tão humanas e verdadeiras.
Graças aos méritos do escritor como romancista, ela é uma presença quase
viva, uma dessas criações literárias que vivem além dos livros.
Quanto ao escritor que soube purgar a perda de forma tão especial, a
ficção ainda é um esforço diário. Depois de ter escrito um novo livro,
"The Interior Circuit: A Mexico City Chronicle", que não é romance, mas
trata da relação pessoal do autor com a cidade que teve tudo a ver com a
história de Aura, ele tenta buscar espaço na imaginação. "Mas é muito
difícil voltar à ficção depois da morte de Aura. O peso da realidade é
duro de carregar. Ainda assim, estou de volta ao romance. Espero que
consiga terminá-lo dentro de um ano." Enquanto isso, "Diga o Nome Dela",
um dos romances mais pungentes dos últimos tempos, ainda estará em
nossas mãos.
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REPORTAGEM POR CADÃO VOLPATO / Para o Valor de São Paulo
Fonte: Valor Econômico online, 004/07/2014
Aprecio seus textos!
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