Entrevista
FILOSOFIA
Alain Badiou revisita "A República"
RESUMO Filósofo francês revisita "A República", de Platão, em
livro agora publicado no Brasil, no qual coloca o pensamento do grego em
diálogo com questões atuais. Nesta entrevista, Badiou comenta, além do
recente trabalho, temas como a ascensão da direita na França e a sua
visão da ecologia como um novo "ópio do povo".
RESPONSÁVEL POR uma obra baseada na centralidade do conceito de
"acontecimento" e em uma tentativa original de recuperação da ontologia a
partir de sua aproximação com as matemáticas, Alain Badiou é um dos
filósofos mais relevantes do cenário atual.
Professor emérito da Escola Normal Superior, o francês nascido no
Marrocos em 1937 sempre aliou seu interesse filosófico a um sólido
engajamento político, seja no interior das discussões sobre o destino
mundial da esquerda, através de debates sobre a recuperação possível do
comunismo, seja na luta contra políticas de discriminação de imigrantes,
entre tantos outros temas com os quais ele se envolveu nas últimas
décadas.
Entre as bases que sustentam tanto sua experiência filosófica quanto sua
atitude militante está o pensamento de Platão. Agora, sai no Brasil sua
"tradução" de "A República". Há que se colocar "tradução" entre aspas
porque se trata, na verdade, de uma reescrita na qual problemas
contemporâneos aparecem repostos no interior das estratégias textuais de
um escritor milenar. Como diz o título, é "A República de Platão
Recontada por Alain Badiou" [trad. André Telles, Zahar, R$ 59,90, 384
págs.; R$ 39,90, e-book].
"Platão é nosso contemporâneo", dirá Badiou. Assim, pelas suas mãos, o
grego aparece, por exemplo, como um defensor de um comunismo por vir que
muito teria ainda a dizer a respeito de nossa situação atual.
Hoje, porém, boa parte do pensamento vê em Platão seu antípoda. Badiou
procura inverter esta operação, transformando o filósofo grego naquele
capaz de pensar o que nosso tempo teima em não querer pensar. Nesta
entrevista, ele explica suas razões.
Folha - Sua versão de "A República" é o resultado do seminário "Para
hoje: Platão!", que o sr. apresentou por quatro anos (2006-10) na Escola
Normal Superior. Qual é, para o sr., a importância do seminário como
formato e de sua atividade no ensino, de forma geral?
Alan Badiou - Particularmente, esse seminário sobre Platão teve uma grande importância para mim. Mas, em geral, cada seminário é algo da ordem de um laboratório, no qual testo publicamente teses e lanço hipóteses. Faço isso há muito. Trata-se, a partir do público e das pessoas presentes, de se interrogar sobre as condições de um ensino, a saber, sobre a transmissibilidade das verdades. O seminário, como todo ensino, é o lugar da transmissão de verdades.
Alan Badiou - Particularmente, esse seminário sobre Platão teve uma grande importância para mim. Mas, em geral, cada seminário é algo da ordem de um laboratório, no qual testo publicamente teses e lanço hipóteses. Faço isso há muito. Trata-se, a partir do público e das pessoas presentes, de se interrogar sobre as condições de um ensino, a saber, sobre a transmissibilidade das verdades. O seminário, como todo ensino, é o lugar da transmissão de verdades.
Entrando diretamente em seu projeto de reconstruir "A República", por
que recuperar Platão no momento atual? Qual a função dessa operação
filosófica?
O século 20 foi radicalmente antiplatonista. A desqualificação de Platão esteve tanto na recuperação heideggeriana do ser quanto no neopositivismo anglo-saxão ou em um certo marxismo, que definia Platão como "ideólogo de proprietários de escravos".
O século 20 foi radicalmente antiplatonista. A desqualificação de Platão esteve tanto na recuperação heideggeriana do ser quanto no neopositivismo anglo-saxão ou em um certo marxismo, que definia Platão como "ideólogo de proprietários de escravos".
Nesse sentido, a razão positiva de minha empreitada consiste em mostrar como Platão nos permite combater aqueles que sempre foram os inimigos da filosofia, a saber, o sofismo, o ceticismo que não acredita na existência de verdades e que hoje está tão presente.
Platão nos permite compreender como é possível expor o pensamento à sua potência universal, como é possível para todo e qualquer um entrar no movimento das verdades. Mesmo se as verdades apareçam em um contexto ligado a um acontecimento, elas permanecem e têm um caráter universal.
Como o seu platonismo trata, por exemplo, a afirmação de Gilles
Deleuze, para quem as ideias platônicas estariam submetidas a uma lógica
da fundamentação profundamente normativa, ligada à noção de
representação e avessa à produção de diferença?
Creio que, no final das contas, Deleuze tem um leitura bastante clássica de Platão; suas críticas são as que sempre foram feitas. Não me parece que haja alguma inovação em, por exemplo, contrapor o caráter eterno da ideia à fluidez do movimento da vida, que podemos também encontrar em Bergson e mesmo em Nietzsche. Note que Deleuze foi, como Heidegger, uma espécie de pré-socrático, no sentido em que os gregos se referiam a eles, como físicos, como pensadores de uma totalidade que se desdobra na fluidez da vida. Neste sentido, Platão permitiu à filosofia referir-se a si, independente de toda contemplação acabada do universo.
Creio que, no final das contas, Deleuze tem um leitura bastante clássica de Platão; suas críticas são as que sempre foram feitas. Não me parece que haja alguma inovação em, por exemplo, contrapor o caráter eterno da ideia à fluidez do movimento da vida, que podemos também encontrar em Bergson e mesmo em Nietzsche. Note que Deleuze foi, como Heidegger, uma espécie de pré-socrático, no sentido em que os gregos se referiam a eles, como físicos, como pensadores de uma totalidade que se desdobra na fluidez da vida. Neste sentido, Platão permitiu à filosofia referir-se a si, independente de toda contemplação acabada do universo.
De que modo o sr. compreende interpretações como as dadas por Pierre
Hadot, que definem a filosofia grega como uma questão de exercício e de
ascese espiritual?
Creio que a concepção da filosofia como exercício espiritual continua profundamente ligada a uma figura religiosa do ato filosófico. A partir dessa orientação, trata-se de uma prática cotidiana que se aparenta, de certa forma, à oração.
Creio que a concepção da filosofia como exercício espiritual continua profundamente ligada a uma figura religiosa do ato filosófico. A partir dessa orientação, trata-se de uma prática cotidiana que se aparenta, de certa forma, à oração.
Eu insistiria, ao contrário, que a filosofia tem a ver diretamente com certo tipo de saber que reestrutura a experiência de todos e possui uma dimensão universal. Foucault retomou a orientação que você menciona, sublinhando como a filosofia era uma prática ligada ao cuidado de si.
De minha parte, estou de acordo quanto ao fato de que a filosofia possa ter isso como efeito, mas, por outro lado, é verdade que, em filosofia, trata-se inicialmente de verdade, em sua dimensão universal e não limitada à configuração atual dos sujeitos humanos.
O sr. atualiza a dimensão comunista do pensamento de Platão. Por
outro lado, no final de "A Hipótese Comunista" (Boitempo, 2012), o sr.
defende a recuperação do comunismo como ideia reguladora para o
direcionamento das lutas políticas atuais, mesmo admitindo que a ideia
do comunismo foi aplicada, no século 20, de "forma imprudente e
dogmática demais". Quais são, a seu ver, as razões do fracasso dessa
primeira vitória da ideia no século 20? O que ela teria de dogmático e
imprudente?
O comunismo do século 20 se deixou pautar completamente pelo problema do poder de Estado. Ele não foi sensível ao poder que se desenvolve fora da fusão produzida pelo Estado e fora da forma partido. Por isto, precisamos de uma fidelidade à hipótese comunista que seja capaz de se subtrair à forma partido e que esteja em excesso em relação ao Estado. Por isso, diria que, atualmente, a ideia do comunismo pressupõe a existência de novas formas políticas a serem experimentadas, que se referem a uma política sem partido.
O comunismo do século 20 se deixou pautar completamente pelo problema do poder de Estado. Ele não foi sensível ao poder que se desenvolve fora da fusão produzida pelo Estado e fora da forma partido. Por isto, precisamos de uma fidelidade à hipótese comunista que seja capaz de se subtrair à forma partido e que esteja em excesso em relação ao Estado. Por isso, diria que, atualmente, a ideia do comunismo pressupõe a existência de novas formas políticas a serem experimentadas, que se referem a uma política sem partido.
Em "Le Réveil de l'Histoire" (o despertar da história, Lignes, 2011),
o sr. afirma que as revoltas recentes no mundo não são ainda a
revivescência da ideia, no sentido platônico do termo. Mais à frente em
seu livro, lemos que "a organização é o mesmo processo que o
acontecimento". A duas afirmações juntas dão a impressão de que a função
principal da ideia é fornecer um quadro capaz de normalizar a
multiplicidade. O sr. não teme que essa maneira de pensar a ideia possa
dar espaço ao retorno de formas dirigistas de política revolucionária?
Isso é não compreender o que entendo por ideia. A ideia é o que permite às singularidades se organizarem como poder coletivo. Por isso, ela é o que dá o sentido à noção de engajamento. Uma política sem ideia é uma política sem transcendência, por isso incapaz de colocar para si o problema da revolução. Nesse sentido, ela será sempre incapaz de transformar nossa compreensão do mundo. A ideia é o que nos permite ser um pouco mais capazes de verdades.
Isso é não compreender o que entendo por ideia. A ideia é o que permite às singularidades se organizarem como poder coletivo. Por isso, ela é o que dá o sentido à noção de engajamento. Uma política sem ideia é uma política sem transcendência, por isso incapaz de colocar para si o problema da revolução. Nesse sentido, ela será sempre incapaz de transformar nossa compreensão do mundo. A ideia é o que nos permite ser um pouco mais capazes de verdades.
Os resultados das eleições europeias na França foram catastróficos
para a esquerda, com a surpreendente vitória da Frente Nacional.
Retomando o título de um de seus livros, do seu ponto de vista "a que dá
nome Marine Le Pen?".
Não se trata de saber ao que Marine Le Pen dá nome, mas do que ela é efeito. Não estou de acordo com a maneira habitual de tratar tal resultado eleitoral. Para mim, não há nada de surpreendente em tais resultados. Se quisermos entendê-los, será necessário tomá-lo a partir de um quadro mais amplo.
Não se trata de saber ao que Marine Le Pen dá nome, mas do que ela é efeito. Não estou de acordo com a maneira habitual de tratar tal resultado eleitoral. Para mim, não há nada de surpreendente em tais resultados. Se quisermos entendê-los, será necessário tomá-lo a partir de um quadro mais amplo.
As políticas propostas pela direita nacionalista tanto em relação à situação nacional quanto em relação à política de imigração não estão em desacordo com o que foi feito pelos governos recentes. Pensemos na infame perseguição à população cigana, na perseguição aos jovens da periferia, na demonização dos imigrantes. Todas essas medidas imundas que denunciei mais de uma vez são, no fundo, uma verdadeira perseguição às classes populares, empreendida, inclusive, pelo governo socialista.
Tudo isso foi não apenas aceito nos últimos anos mas teorizado e praticado pela esquerda. Ela não fez nada durante anos contra isso e é a ela que devemos atribuir a responsabilidade pela situação atual. Ela foi completamente impotente.
Para terminar, gostaria de lembrar que o sr. já disse que a "ecologia
é o novo ópio do povo", uma espécie de contrapolítica. Poderia nos
explicar a razão desta afirmação?
A ecologia é hoje um misticismo que não teme assumir tonalidades catastrofistas e escatológicas. Com o declínio das religiões históricas, a ecologia, com o acento que ela coloca em questões como a "preservação da natureza", ou mesmo do restabelecimento de uma relação perdida com ela, parece-me uma nova forma de messianismo. Eu não me preocupo exatamente com o destino da natureza, preocupo-me com o destino dos homens. É essa preocupação que deveria pautar nossas ações atuais.
A ecologia é hoje um misticismo que não teme assumir tonalidades catastrofistas e escatológicas. Com o declínio das religiões históricas, a ecologia, com o acento que ela coloca em questões como a "preservação da natureza", ou mesmo do restabelecimento de uma relação perdida com ela, parece-me uma nova forma de messianismo. Eu não me preocupo exatamente com o destino da natureza, preocupo-me com o destino dos homens. É essa preocupação que deveria pautar nossas ações atuais.
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REPORTAGEM POR GIUSEPPE BIANCO e VLADIMIR SAFATLE
Fonte: Folha online, 06/07/2014
imagem da Internet
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