Moacyr Scliar*
“O papel de Cristo foi desempenhado
por um magro e melancólico estudante espanhol,
Enrique Irazoqui”
Ao menos em Porto Alegre, a tradição se manteve durante muito tempo: na sexta-feira santa as emissoras só irradiavam música erudita e os cinemas obrigatoriamente mostravam algum filme relacionado a Cristo, em geral produzido por Hollywood. O mais antigo desses era, creio, O rei dos reis (1927) dirigido por Cecil B. de Mille. O mesmo título tinha uma produção 1961, dirigida por Nicholas Ray, com trilha sonora de Miklós Rózsa e narração de Orson Welles. O papel de Jesus era desempenhado por Jeffrey Hunter, que, loiro e de olhos azuis (aliás, hoje isso seria politicamente incorreto...), não tinha nada a ver com a provável aparência do Jesus histórico.
Já em O evangelho segundo São Mateus (1964), de Pier Paolo Pasolini, os atores, italianos, provavelmente eram mais parecidos com os personagens judeus da época de Cristo, também eles habitantes da bacia do Mediterrâneo. Surpreendente é que Pasolini, ateu, marxista e homossexual, diretor de filmes ousados como Decameron e Salò, 120 dias de Sodoma, tenha abordado o tema. Mas era a época do Papa João XXIII, de uma Igreja aberta ao diálogo, e Pasolini foi convidado para um seminário num mosteiro franciscano. Ali encontrou um exemplar dos evangelhos, que leu, fascinado, decidindo de imediato fazer o filme.
Dentro do conceito do neorrealismo italiano, segundo o qual pessoas comuns (no caso, camponeses, operários) podiam se sair melhor na tela do que atores profissionais, o papel de Cristo foi desempenhado por um magro e melancólico estudante espanhol, Enrique Irazoqui; às vezes é um Jesus terno, amável, como na cena do sermão da montanha, às vezes um líder irado, revolucionário. O enfoque realista é acentuado pelo sombrio branco e preto do filme.
Já o colorido Jesus Cristo superstar (1973), de Norman Jewinson, baseia-se no musical de Andrew Lloyd Webber, com texto de Tim Rice. Realismo ali não importa; trata-se claramente de uma paródia, como se nota pelas letras das canções irônicas e recheadas de gíria. Judas é um personagem central; retratado como um homem realista e atormentado, descontente com a atuação aparentemente anárquica de Jesus. Há cenas curiosas: levado a Caifás, Jesus é cercado por um bando de repórteres, que lhe perguntam o que fará, obtendo em resposta apenas o silêncio.
Tanto o show da Broadway como o filme foram reprovados por grupos religiosos, inclusive porque Tim Rice teria dito algo como “não vejo Cristo como Deus, mas simplesmente como o homem certo, no lugar certo, na hora certa”. Além disso, a visão até certo ponto simpática de Judas reforçou as críticas.
Controversa também é a obra que deu origem a A última tentação de Cristo (1988) filme de Martin Scorsese, com Willem Dafoe no papel de Jesus, Harvey Keitel como Judas, Barbara Hershey fazendo Maria Madalena e David Bowie (!) posando de Pôncio Pilatos. O livro de Nikos Kazantzakis fala de um Cristo que, embora livre de pecado, é sujeito às emoções humanas, medo, dúvida, depressão e às tentações do sexo (pensa inclusive em viver com Maria Madalena), o que, de novo, incomodou muitas pessoas religiosas. Na cruz, Cristo tem uma espécie de alucinação (causada por Satã), em que se vê casado com Maria Madalena (que depois morre) e pai de família.
Os protestos de grupos religiosos, que tinham começado já durante a filmagem, explodiram depois da estreia; inclusive coquetéis molotov foram lançados contra um cinema parisiense que mostrava a película, proibida no México, Chile, Filipinas, Cingapura e África do Sul.
Em 1989 estreou Jesus de Montreal, filme canadense dirigido por Denys Arcand. De novo, um enfoque pouco convencional: um grupo de atores que vai encenar a Paixão em Montreal começa a misturar os acontecimentos dos evangelhos com suas vidas. Assim, o ator que faz o papel de Cristo identifica-se com Jesus a ponto de sofrer atrozmente com a Paixão.
E finalmente temos o polêmico Paixão de Cristo, de Mel Gibson. Foi filmado na mesma localidade em que Pasolini produziu o seu Evangelho segundo São Mateus, e Gibson tentou dar à sua realização um clima de autenticidade, fazendo os atores falarem em aramaico, o idioma da época; mas terminam aí todas as semelhanças. O filme foi acusado de antissemita, mas talvez nem isso seja; na verdade, é apenas um pretexto para mostrar cenas de uma violência nauseante, piores que as de Mad Max estrelado pelo mesmo Gibson. Como disse à época o crítico da Newsweek, David Ansen: “Em lugar de me comover pelo sofrimento e pelo sacrifício de Cristo, senti-me ultrajado pela intenção do cineasta em castigar o público, sabe-se lá por qual razão”. O (bom) ator James Caviezel, que tinha 33 anos, a mesma idade de Cristo ao morrer, foi, durante as filmagens, atingido por um raio na cabeça. Nada de grave lhe aconteceu, mas será que aquilo não era um protesto vindo das alturas?
*Moacyr Scliar escritor e colunista quinzenal do Correio Braziliense.
http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 10/04/2009
*Moacyr Scliar escritor e colunista quinzenal do Correio Braziliense.
http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 10/04/2009
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