Roberto Romano
No catolicismo ninguém está acima da norma, sequer o papa. A história eclesiástica mostra pontífices depostos por entendimento ou aplicação incorretos da lei sagrada. Sem falar dos antipapas (em torno de 37 bispos), escolhidos por soberanos para efetuar políticas indignas da ordem magistral. Além das Escrituras, a tradição serve como diretriz para o pensamento e as ações católicas, tanto para os fiéis quanto para a hierarquia. Bíblia e tradição exibem as raízes judaicas da fé, o que torna o antissemitismo uma aberração na vida cristã. Infelizmente, o mundo vive de aberrações e a Igreja seguiu descaminhos em tempos e espaços diversos.
As verdades da Bíblia e da tradição orientam a forma do ensino ministrado pelo Pontífice e pelos Concílios. Vejamos o que diz o Vaticano 2 sobre os judeus na Declaração Nostra Aetate: “Ao perscrutar o Mistério da Igreja, o Sagrado Concílio recorda o vínculo pelo qual o povo do Novo Testamento está espiritualmente (spiritualiter) unido à estirpe de Abraão”. Os conciliares proclamam que “do povo judeu nasceram os apóstolos, fundamentos e colunas da Igreja, como igualmente muitos daqueles primeiros discípulos que anunciaram ao mundo o Evangelho de Cristo”. Adiantam os pastores: “Cum igitur adeo magnum sit patrimonium spirituale Christianis et Iudaeis commune, Sacra haec Synodus mutuam utriusque cognitionem et aestimationem, quae praesertim studiis biblicis et theologicis atque fraternis colloquiis obtinetur, fovere vult et commendare”. O texto latino deve ser apreciado pelos que se recusam a seguir o ensinamento conciliar. A nossa língua assim traduz o trecho: “Sendo pois tão grande o patrimônio espiritual comum aos cristãos e judeus, este sacrossanto concílio quer fomentar e recomendar a ambas as partes mútuo conhecimento e apreço, que poderão ser obtidos principalmente pelos estudos bíblicos e teológicos e ainda por diálogos fraternos”.
Comparemos o mandamento dos padres conciliares com endosso do Sumo Pontífice, e as falas do atual arcebispo de Porto Alegre. Anuncia, em tom solene Dom Dadeus Grings: “morreram mais católicos do que judeus no holocausto, mas isso não aparece porque os judeus têm a propaganda do mundo”. (Revista Press, retomada em entrevista do jornal Zero Hora, 26/3/2009). Retornemos ao texto do Concílio. Qual ser humano que pensa, com prudência, assimilaria a sentença do bispo ao “mútuo conhecimento e apreço”? Se, como afirma o pastor de Porto Alegre, os judeus são os donos da propaganda mundial (na era nazista, eles eram acusados, além daquele defeito, de serem os monopolistas das finanças planetárias) sua fala e seus atos entrariam no terreno da mentira, da plena dissimulação tendo em vista o engodo. Apreço? A frase do antístite, além de caluniosa retoma litanias que finalizaram em Auschwitz e outros campos do inferno, anunciados na dantesca Noite de Cristal.
Mas o sofisma, subjacente à calúnia, é ainda mais cruel: “morreram mais católicos do que judeus no holocausto”. Dom Grings aprendeu, no seminário, parece, as lições da lógica tomista. A definição deve conter o definido, e apenas o definido. Ela deve ser precisa, evitar a generalização, ser própria e não confundir o definido com uma de suas espécies, ela deve positiva. A “morte”, na sentença episcopal inclui, ao mesmo tempo, as ocorridas na guerra e no genocídio. Os soldados, no açougue das potências européias, foram dirigidos para o morticínio porque defendiam ou atacavam interesses de governos. Civis assassinados entram nos cálculos monstruosos dos dirigentes. Dado importante: dos soldados de Hitler, apenas sete católicos se declararam contra as batalhas, por motivo de consciência (Voegelin, Hitler e os Alemães). Tiveram os católicos a oportunidade de mostrar pacifismo. Instruídos pelos bispos germânicos em 1933, eles seguiram o Füher e se colocaram “à sua disposição de todas as formas”.
Morte em guerra e morte em genocídio são realidades distintas, que devem ser definidas de modo rigoroso. Unir as duas coisas é fruto de pouca maestria na definição, ou de maestria demasiada no sofisma.
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