Conceição Freitas
Escrito assim assusta. Mas esse é um sentimento coletivo, que está alojado sem disfarce em muito mais gente do que nenhuma pesquisa de opinião é capaz de estimar.
Mendigo de hoje merece bem menos compaixão do que os de antigamente. Os da minha infância eram, na grande maioria, os doidinhos do bairro ou os que chamamos hoje de portadores de necessidades especiais. Eram os aleijados. Paraplégicos, corcundas, leprosos, gente sem perna, sem braço, com feridas pútridas, com bócio, elefantíase. Uma legião de humanos deformados e desassistidos convocava a piedade dos não deformados e não desassistidos.
Homens e mulheres em situações de tão extrema devastidão humana, tão corroídos no corpo, tão despossuídos de humanidade, que nós, os humanos em perfeitas condições, nos curvávamos condoídos com tanto padecimento.
Mendigo de hoje tem cabeça, tronco e membros. Anda, ri, conversa, tem amigos, bebe, come, ocupa os espaços públicos, pratica atos libidinosos. E ganhou um novo nome, mais respeitoso: morador de rua.
Mas é um respeito de fachada.
Morador de rua sem nenhuma deficiência física ou mental claramente perceptível é, aos olhos dos moradores de casa e de apartamento, e de mansões e de aviões, um subumano. Não é nem um cão nem um cavalo ou um gatinho vira-lata. Não é bicho nem é gente. É da família do lixo.
Vou arriscar uma comparação terrível, mas o morador de rua é hoje, para o morador de casa, um ser tão execrável quanto os judeus foram para os antissemitas. Para a sorte do “de rua”, a possibilidade de genocídio é remotíssima, dado que o sentimento de rejeição a eles não é publicamente bem aceito.
Tudo isso pra dizer que o servidor do Banco Central José Cândido do Amaral Filho, 48 anos, casado, pai de três filhos, disparou os tiros que estavam engatilhados no tambor do .38 de muita gente que nem .38 tem.
Amaral Filho surtou? Tem transtorno bipolar? A psiquiatria vai dizer. Mas com certeza não era apenas ele que carregava — e carrega — ódio mortal de morador de rua, especialmente quando ele tem o acinte de empestear as cercanias de nossas vidas tão honradas e perfeitas.
Tem gente que investiga morador de rua pra saber se ele precisa mesmo pedir esmola. Como se ficar nos semáforos esperando uma moeda de 10 centavos cair de uma janela de carro fosse um divertimento, um esporte (ou um crime).
O que me faz lembrar o documentário Arquitetura da Destruição, de Peter Cohen, um dos mais certeiros e inquietantes estudos sobre o nazismo. Artista medíocre, Hitler era apreciador da arte clássica e perseguia a beleza absoluta. Rejeitava a arte impressionista e colecionava, à custa de saques inclusive, a arte grega e romana, com sua representação figurativa do belo. Hitler queria “aperfeiçoar” o mundo e os homens. Queria expurgar as impurezas, destruir a fealdade e as doenças. Teria destruído tudo o que tivesse a mácula da imperfeição, se tivesse vencido.
http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 23/04/2009
Nenhum comentário:
Postar um comentário