Edson Luiz André de Sousa*
Professores, estudantes e funcionários da Universidade de Paris 8
se revezam em ininterruptas caminhadas de protesto
contra os novos e polêmicos projetos de lei do governo Nicolas Sarkozy.
“O elemento milagroso
que nos alegra,
pode ser simplesmente o raio do sol que,
numa manhã de primavera,
transfigura
uma rua miserável”
Georges Bataille
Capturados que estamos em uma lógica utilitarista, somos tentados a abandonar rapidamente tudo aquilo cujo sentido nos escapa, anestesiando, em nós e no mundo, os atos que tentam recuperar a força milagrosa daquilo que nos surpreende como promessa de futuro. Sem esta possibilidade de sonhar com outras configurações de mundo, a vida se reduziria a uma repetição sombria. A passividade que nos aprisiona faz a alegria daqueles que usufruem soberanamente de nossa paralisia. Portanto, um dos grandes desafios de nossos tempos é manter viva a esperança de mudanças estruturais em nosso laço social, uma vez que o ar do novo liberalismo (que veio para ficar) não tolera nenhuma crítica. Como poderíamos nos opor a um estilo de viver que se outorga a qualidade de ser um prolongamento de nossa natureza? Ressoa ainda a apocalíptica afirmação de Margareth Thatcher “there is no alternative”, defendendo assim uma economia que, sob a bandeira de uma liberdade de mercado, tenta solapar nosso potencial crítico. Este panorama é assustador e o descrédito do próprio fazer político é uma das consequências trágicas deste cenário. Noam Chomsky, em seu ensaio “Sobre o controle de nossas vidas”, aponta com precisão este horizonte quando mostra o quanto o povo é considerado como “estrangeiros ao sistema, ignorantes e inoportunos” e que deveria se contentar com o lugar de espectadores e não de participantes. Ironicamente, ele mostra que sempre que aumenta a participação popular o poder sabe bem como nomear tal perturbação: trata-se de uma “crise da democracia”. Contudo, ainda encontramos alguns que se recusam a andar nesta direção e buscam algum desvio na contramão das pequenas ruas miseráveis.
Diante de um dos símbolos do poder político de Paris, o monumental prédio da prefeitura às margens do Sena, centenas de pessoas de revezam em uma caminhada ininterrupta em um grande círculo. Este movimento começou no dia 23 de março ao meio-dia e não tem data para acabar, razão pela qual se autodenominou como “ronda infinita dos obstinados”. Esta iniciativa partiu de um coletivo de professores, estudantes e funcionários da Universidade de Paris 8, em protesto aos novos projetos de lei para o ensino superior propostos pelo governo de Nicolas Sarkozy. Muitas outras universidades aderiram à proposta e a ronda tomou uma proporção inesperada, já se espalhando por muitas cidades francesas: Amiens, Lyon, Toulouse, Montpellier, Fort-de-France entre outras. Estas medidas, uma vez implantadas, vão mudar drasticamente o perfil da universidade francesa com substanciais cortes de orçamento, diminuição de vagas, proposta de uma “autonomia” que abrirá ainda mais as portas da universidade à iniciativa privada e o fim do estatuto de professor-pesquisador. Não é preciso ter muito conhecimento de economia para saber o custo que tais políticas provocarão na pesquisa e no ensino. Por isto, um dos slogans que podemos ler na praça do “hotel de ville” é : “Não, a universidade não é uma empresa nem o saber uma mercadoria”.
O grande relógio da prefeitura também gira em seu pulsar contínuo e testemunha o tempo que ali se escreve. Cada hora é escrita em giz branco em um pequeno quadro-negro no centro do círculo. O relógio desenhado no tempo do caminhar tem dezenas de ponteiros e não há hierarquia entre eles. Já são mais de 400 horas de caminhada dia e noite, energia anônima em movimento, como uma maré que invade o espaço da cidade. A imagem de obstinação deste caminhar sem principio, nem fim, faz corte nos círculos viciosos do poder que insiste em dizer que nada está acontecendo. Lâmina fulminante no olho do governo como a cena inicial do clássico filme de Bunuel O Cão Andaluz. Portanto , uma luz que anda mesmo no escuro. Quando chove, a ronda desenha no chão o traço vivo do círculo como uma escritura efêmera de um olho imenso que insiste em querer ver. O movimento surgiu a partir de uma ideia do professor Denis Guedj como forma de reagir à indiferença do governo às reivindicações dos professores e estudantes universitários em greve há mais de dois meses. Em recente artigo no jornal Libération (8 de abril) ele justifica o sentido da proposta : “Como dizia Deleuze, nós giramos por aqueles que não giram. Não em seu lugar mas por sua intenção”. Assim, esta ronda interpela por sua abertura à estagnação de outras circularidades que nos capturam.
Ronda utópica, pois insiste na criação de novos espaços e, sobretudo, uma obstinação pela esperança. O caminhar incessante desenha uma outra relação de forças entre manifestantes e o poder. Foi o que aconteceu com a ronda das mães da Praça de Maio em Buenos Aires, fundamental na história de resistência à ditadura na Argentina , que deixou como saldo macabro mais de 30 mil desaparecidos.
Muitas pessoas que passam pela prefeitura buscam informações sobre o que está acontecendo. Desta forma, os passos anônimos adquirem voz e ampliam a participação popular no movimento. Circunferência inquieta e solidária que nos faz pensar na responsabilidade de cada um para com seu tempo e sua história. A praça da prefeitura tem sido nomeada como praça da greve. A língua francesa permite uma derivação precisa do que ali está se escrevendo: uma praça do sonho (rêve). Como lembra Ernst Bloch, o grande pensador das utopias do século 20, aquele que sonha não fica jamais no mesmo lugar.
* Psicanalista. Professor da UFRGS em pós-doutorado em Paris na Universidade de Paris 7 e na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales.
http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a2479476.xml&template=3898.dwt&edition=12131§ion=1029 ZH/Cultura, 18/04/2009
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