quarta-feira, 15 de abril de 2009

O padrezinho nosso e do mundo

Candido Mendes*

A maior nação católica do mundo deve a dom Helder seu testemunho da presença ativa e consciente no nervo da opção pela justiça e pelo pobre. O padrezinho, nosso e do mundo, não falou apenas pelo Brasil, mas por todas as periferias do universo da fartura, sua boa consciência e sua anestesia ao imperativo evangélico. Devemos ao arcebispo de Recife a consolidação efetiva da Ação Católica de dr. Alceu e dom Sebastião Leme, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, a grande presença latino-americana desde o arranco do Vaticano II, a marca da solidariedade concreta, para além da mera retórica da caridade ou da espera do reino dos céus.

Realocou, pela Cruzada São Sebastião, as favelas do Rio de Janeiro, como enfrentou o Brasil nordestino da lama, da vala negra, da mortalidade infantil, tal como no governo militar denunciou a tortura e o desaparecimento das vítimas do governo militar. Fica a imagem do bege cru da batina do arcebispo, a corrente de metal em torno do crucifixo tosco, na mensagem pelo despertar do compromisso de mudança deste ocidente esfriado pelo conformismo da fé ou pela sua crescente irrelevância nos antigos países da cristandade.

A marca profética é a que cresce neste seu centenário, realçada pelo imaginário das celebrações, em que o arcebispo procurava reunir, tangivelmente, o povo de Deus. É o Dom Helder do preparo do Congresso Eucarístico do Rio, como da instalação do pobre, pela Cruzada São Sebastião, na orla nobre da Lagoa, nos edifícios erguidos na Praia do Pinto, até a visão apostólico-cenarística que concebeu para o fim do Concílio. Nela, o ecumenismo se remataria num congraçamento, previsto pelo padrezinho, do papa com os rabinos e os patriarcas ortodoxos, no cerimonial, à época, tão profundamente intuído como o outro caminho às desgraças do Oriente Médio do raiar do novo século.

Dom Helder, na ambição-limite do profeta, procurou acelerar a definitiva passagem de uma Igreja constantiniana, ligada ao poder, e, a seguir, à opulência renascentista e ao exercício das soberanias temporais dos Estados pontifícios, àquela destituição radical das recompensas do mundo frente à primeira comunidade, em que começou o anúncio. No caminho da encarnação, foi adiante na sua visão apostólica da consciência morna do assistencialismo como a face mais fácil da caridade, para a valorização, aqui e agora, deste "mais ser" do "homem todo" e de todos os homens, em que o arcebispo de Recife se identificava à palavra-chave de Paulo VI, o papa da angústia histórica, ao lado do anúncio da transcendência de João XXIII e João Paulo II.
O padrezinho viveria o embate exemplar com o conservadorismo pós-conciliar, tanto quanto com o governo militar, alçado "por Deus, pela família e pela liberdade". A revisão crítica das últimas décadas do arcebispo de Recife evidenciara o experimento audacioso da formação dos seminários e de tantas fórmulas da Igreja versus populo. Retirado na Capela das Fronteiras, só cresceu a alegoria de dom Helder, da feira, do lore que supera a mitologia do Padre Cícero neste Brasil de Deus e do Nordeste. Na lápide negra do túmulo, fica o recado do Profeta para além do Santo, a nos sacudir da crença que não se faz entrega, ou da esperança deseducada, do sofrimento, aqui e agora.
*Cientista político
Quarta-feira, 15 de Abril de 2009 - 00:00
http://jbonline.terra.com.br/leiajb/noticias/2009/04/15/sociedadeaberta/o_padrezinho_nosso_e_do_mundo.asp

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