quinta-feira, 2 de abril de 2009

Mesmo que não exista, é possível ver Deus

Ermanno Bencivegna*

"A fé, segundo Kierkegaard,
coloca a razão
em xeque,
a contradiz
e a humilha.
É até inacessível
ao pensameto".

Uma pessoa religiosa está ligada ao Deus da fé, que muitas vezes constitui o fundamento existencial e emotivo da sua vida. Na admirável meditação sobre a fé feita em "Temor e tremor", Søren Kierkegaard descreve o ato do crer como um total abandono a um Outro, do qual esperamos receber a salvação. De modo análogo, um amante se abandona à pessoa amada confiando na sua compreensão e no seu cuidado. E, em ambos os casos, a expectativa é irracional, absurda – quem desejar convencer-se de que essa é a medida justa a ser feita pensando e avaliando com prudência a plausibilidade que seja eficaz encontrará milhares de argumentos que convidam á conclusão oposta, e mesmo quando a sua arriscada decisão leve verdadeiramente à felicidade esperada não virá nenhum ensinamento disso, nenhuma compreensão do que, na sua situação, "funcionou", portanto, de como ele ou outros podem eventualmente enfrentar com sucesso situações semelhantes no futuro. A fé, segundo Kierkegaard, coloca a razão em xeque, a contradiz e a humilha. É até inacessível ao pensamento.
É uma análise iluminadora, que, porém, não deve ser mal compreendida. Se a razão nunca encontrasse a fé, não poderia ser por ela derrotada. Se houvesse entre as duas uma pacífica divisão de tarefas, não teria sentido falar de contradição e de colocar em xeque. Apesar de não se declarar um filósofo, Johannes de Silentio, pseudônimo sob o qual Kierkegaard escreve a sua "dialética lírica", persegue inexaurivelmente o projeto de compreender Abraão, o mais sublime herói da fé, e é essa tentativa de entender, esse retorno insistente (e perenemente frustrado) às mesmas perplexidades, em ângulos e terminologias diversas, esse obsessivo desejo de se unir a Abraão na viagem rumo a Moriá, adentrar nela e compartilhar seu estado de ânimo, que dá ao texto a sua prodigiosa tensão. Se é verdade (como lemos na mesma obra) que um herói é tão grande quanto mais importante é o que combate, Johannes é um herói de extraordinária grandeza, porque não retrocede nunca diante do desesperado desafio a que se propõe: porque, enquanto continua a persuadir-se de que a fé não pode ser dita, que não existem palavras para dizê-la, continua procurando essas inexistentes, impossíveis palavras.
O homem é um animal racional, cujo destino é o de tentar dar uma razão a toda sua experiência. Se algo se lhe apresenta como incompreensível, isso não terá outro êxito que envolvê-lo ainda mais apaixonadamente na pesquisa de seu significado. Os fracassos, as provas em contrário, as diagnoses e sentenças definitivas não interromperão o seu esforço: enobrecerão o objetivo, o tornarão mais notável, mais solene, mais digno. Os fiéis sabem que o seu Deus é transcendente, além das capacidades humanas e, geralmente, das capacidades de toda criatura. Mas nem por isso abdicarão ao seu impulso de eviscerar os mistérios, de reconciliar a sua mente com o que o seu coração já aprova. Em tal esforço, está em jogo a sua própria humanidade.
As provas racionais da existência e dos atributos divinos dão uma amostra conspícua e constante de si no pensamento ocidental. A sua existência é impressionante. A prova ontológica, por exemplo, foi refutada mais vezes. O representante máximo da nossa tradição filosófica, Immanuel Kant, fez uma minuciosa autópsia dela. Porém, continua renascendo das suas cinzas, nos contextos mais variados.
Uma das últimas encíclicas de João Paulo II, oportunamente intitulada "Fides et ratio", cita-a como modelo de um encontro fecundo entre teologia e filosofia. Kurt Gödel dedicou-lhe o mais sugestivo dos seus escritos inéditos. Filósofos totalmente respeitáveis como Alvin Plantinga publicam livros em que são anunciadas versões (finalmente!) válidas. E (last but not least) não faltam estudantes que, impávidos frente à oposição de tantos críticos ilustres, nos entregam outras versões sobre ela com um pouquinho de audácia. Um motivo pelo qual os estudantes são um sinal importante é que eles expõem o húmus do qual nasce esse fervor: a indestrutível confiança em que, apesar da transcendência, apesar dos fracassos, deve haver um caminho, pelo qual o incompreensível será, enfim, compreendido.
Não se trata apenas de fervor: ao tomar contato com uma tarefa tão árdua, os defensores de uma ou de outra prova deram vida a tesouros de criatividade e de engenho. Mesmo que falaciosas, suas provas são construções admiráveis. Falar de Deus, além disso, levou-os com naturalidade a se interrogar sobre o infinito, sobre a estrutura do universo, sobre as relações entre pensamento e ser, sobre o fundamento da moral, isto é, sobre todos os temas cruciais da filosofia. Uma discussão de tais provas, portanto, enquanto nos fascina evidenciando toda a sua profundidade e complexidade e nos envolve em um jogo intelectual sutil e refinado, nos oferece também um ponto de partida ideal para atravessar juntos a história da "pesquisa da sabedoria" – com um interesse específico e preciso, certamente, mas dotado de muitas ramificações e ligado a tantos outros discursos que nossa relação com isso significa ter a ver com toda a "rede" da reflexão conceitual.
*Filósofo italiano. Artigo para o jornal La Stampa, 31/03/2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Publicado no IHU/Unisinos, 02/04/2009.
http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=21077

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