domingo, 12 de abril de 2009

Vi um velho pulando...

Rubem Alves*
Bashô (1644-1694), poeta japonês,
foi o mestre supremo dos
haikais.
Este é um dos seus mais famosos:
“Casca vazia:
a cigarra
cantou-se toda.”
Bashô não era nome.
Era apelido.
A palavra “bashô” quer dizer “bananeira”.
Era a árvore favorita do poeta.
Bananeiras são árvores estranhas, diferentes das outras. Cada bananeira dá um cacho de bananas somente. Seu caule extremamente macio deve então ser cortado — o que pode ser feito com um único golpe de facão. Cortado o caule, o tempo passa e tudo indica que a bananeira vai morrer. Aí acontece inesperado. De dentro do cepo velho nasce um broto que cresce e vira outra bananeira que dará outro cacho de bananas e assim sucessivamente... Ao comerem banais bananas compradas em feiras lembrem-se do mistério das bananeiras... Essa lembrança fará com que as bananas fiquem mais perfumadas e mais doces....
Eu havia cortado várias bananeiras que impediam o acesso à uma cachoeira, em Pocinhos do Rio Verde. Algumas semanas depois voltei ao lugar, e esse hai-kai apareceu-me instantaneamente:
“Bananeira cortada:
no cepo velho
um broto criança.”
Aí as bananeiras cortadas me fizeram pensar na Adélia. Que associação mais louca... Mas, como psicanalista aposentado, sei que todas as associações, por loucas que pareçam, têm razões. Por que pulei do Bachô para a Adélia? Porque os dois fizeram poesia sobre cigarras.
As cigarras são seres subterrâneos e silenciosos — algumas chegam a ficar 17 anos habitando a terra escura, movimentando-se entre as raízes das árvores. De repente saem da terra, arrebentam as cascas duras que as continham (eram ataúdes) e se tornam seres alados, cantantes.
Muitos anos atrás, antes mesmo de ter lido o haikai de Bashô colhi, no bosque onde caminho, algumas cascas vazias de cigarra e as coloquei numa bonsai, no meu consultório: tinha esperança de que as pessoas entendessem aquele haikai sem palavras. E a mensagem era “seres subterrâneos podem se tornar seres alados!”
Sobre as cigarras a Adélia escreveu: “Nem um pouco delicadas as cigarras são.” Tão brutas que seu canto é “vidro moído que elas esguicham dos seus peitos.” Tão bruto é o canto que, terminada a cantoria só resta uma casca vazia, cadáver. Mas aí ela termina o poema dizendo: “O que ela fica gritando eu não entendo, sei que é pura esperança...”
A casca vazia da cigarra, o cepo cortado da bananeira são sarcófagos onde a vida espera. Eu nunca havia percebido isso! Que os sarcófagos são lugares onde a vida espera...
“Nunca nada está morto. Eu sempre sonho que uma coisa gera, o que não parece vivo, aduba. O que parece estático, espera.” “A ressurreição já está sendo urdida, os tubérculos da alegria estão inchados e úmidos, vão brotar sinos...”
As lagartas, cuja vida se resume em devorar as folhas sobre que se arrastam, após esgotarem essa fase rastejante e gastronômica entram num sarcófago que elas mesmas tecem, mergulham num sono profundo, e quando acordam não mais se reconhecem: tornaram-se uma outra coisa: seres coloridos, voantes de flor e flor, borboletas.
Metamorfoses... Acontecem sempre de repente — e embora não pareça, somos nós, seres humanos, aqueles que com mais facilidade passam por elas. Nossos corpos são mais leves que os corpos dos animais. É que nossas cascas, diferentes das cascas dos animais que são feitas só de carne, são feitas com uma mistura de carne e palavras. Por isso que Jesus ensinou ao Diabo que nós, humanos, não vivemos só de pão. Na nossa dieta há de haver palavras...
Somos como uma receita culinária: basta mudar as palavras-ingredientes para que os corpos dos que comem sejam metamorfoseados.
Os especialistas nessa magia eram os teólogos católicos medievais que acreditavam que as palavras eram potências mágicas que tinham poder para transformar tudo aquilo que fosse por elas tocado. O pão e o vinho, tocados pelas palavras sagradas, deixavam de ser pão e vinho e se transformavam em carne e sangue. Literalmente não acontecia nada. Na linguagem teológica, os “acidentes” permaneciam os mesmos. Mas a “substância” escondida sob os acidentes se transformava numa outra. Acontecia a “transubstanciação”...Que bom seria se os educadores soubessem disso, que eles são feiticeiros que falam para “transubstanciar os alunos...”
Nietzsche, aquele mesmo que disse que “Deus morreu”, era um feiticeiro. Falava para invocar uma metamorfose universal: queria ressuscitar os mortos, transformar ovelhas em pássaros e camelos em crianças... Mas ele sabia que as metamorfoses acontecem somente se se morre antes. Coisa que ele certamente havia lido em Goethe que escreveu: “Morre e transforma-te. Não satisfeito ele acrescentou: “Somente onde há sepulturas há também ressurreições...”
Na Páscoa se celebra as cascas ocas das cigarras, os cepos cortados das bananeiras, os ataúdes vazios das borboletas.
Minha esperança particular, minha oração, é que os velhos se metamorfoseiem em crianças. E assim escrevo o meu hai-kai:
“Bengala jogada fora...
O velho vai pulando corda como criança...”

*Rubem Alves é escritor, teólogo e educador.
http://www.cpopular.com.br/mostra_noticia.asp?noticia=1628899&area=2220&authent=B199DE7C6CEA92B1BBDE5E6CC89293 -12/04/2009

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