JOÃO PEREIRA COUTINHO
Felizmente
Felizmente
para os leitores,
o novo livro de
Chico Buarque
não é panfleto ideológico
NUNCA FUI amante de Beckett. Literariamente falando. Tive os meus momentos, como qualquer adolescente intelectual e pretensioso: lia as peças, tão feitas de silêncio, repetição e absurdo, e depois rabiscava qualquer coisa em imitação amadora. Com os anos, só o experimentalismo do irlandês ficou como prova de vitalidade criativa e perene. O resto, precisamente, é silêncio, repetição e absurdo.
Mas um romance de Beckett, originalmente escrito em francês, ainda hoje continua a martelar os meus neurônios. O título é "Malone Meurt", qualquer coisa como "Malone está a morrer", e pretende ser a recordação palavrosa de um corpo moribundo que, nos momentos finais da vida, mergulha no passado, na conjectura e na efabulação. "Um mínimo de memória é indispensável para se viver deveras", diz o moribundo, como se o esforço de recordar fosse um gesto prometaico ante a iminência da morte.
Chico Buarque lembra Beckett no seu quarto romance, "Leite Derramado" (Companhia das Letras, R$ 36, 200 págs.). O personagem do livro, Eulálio d'Assumpção, está em cama de hospital, sofrendo agonias de uma queda provavelmente fatal. E esse purgatório hospitalar permite ao personagem de Chico Buarque recordar, conjecturar e efabular com igual "tedium vitae".
Eulálio, como o Malone de Beckett, não lamenta nada, não justifica nada, não defende nada: a sua biografia é como o seu corpo. Uma realidade envelhecida e decadente. Ele chegou ao fim da linha. O seu reino já não é deste mundo.
Mas qual será o reino de Eulálio?
Resposta: o reino da elite branca brasileira.
O trisavô desembarcou no Brasil. Foi confidente de dona Maria, a louca. E Eulálio, o centenário Eulálio, assume-se como o último representante genuíno desse clã. Filha, netos, bisnetos e tataranetos converteram-se ou perderam-se na vulgaridade dos tempos modernos. Um dos descendentes, aliás, chega mesmo a namorar uma mocinha que ostenta um "Jesus Cristo", em letras góticas, tatuado nas proximidades de uma "bela bunda". Haverá pior?
Seria fácil reduzir o personagem Eulálio a um mero clichê ideológico. Imagino até que Chico Buarque tenha sentido essa tentação: o autor nunca simpatizou com a elite branca brasileira, apesar de ser um dos seus mais genuínos produtos, e as nossas livrarias são pródigas em panfletos políticos travestidos de literatura.
Felizmente para os leitores, "Leite Derramado" não é panfleto: a complexidade psicológica de Eulálio permite introduzir zonas cinzentas que conferem uma certa grandeza dramática ao personagem.
Eulálio é esnobe, misógino, racista. Viver em edifício de apartamentos é, para ele, um pouco "promíscuo" (delicioso adjetivo). Ter um neto com feições negroides, um verdadeiro insulto aos Assumpção. Mas os valores de classe valem pouco quando outros se levantam.
Uma das passagens mais notáveis de "Leite Derramado" acontece quando Eulálio, casado com Matilde, observa a mulher em dança febril e detecta uma certa vulgaridade nela. Matilde não pertence à sua classe. E, no entanto, não existe outra mulher que Eulálio mais deseje. Essa mistura de atração e repulsa define a vida de Eulálio. E, mesmo quando a mulher desaparece sem deixar rastro, é ainda com atração e repulsa que ele vai fabricando explicações sucessivas para o inexplicável. Que o mesmo é dizer: amando e odiando, com igual intensidade, um mero fantasma.
"Leite Derramado" é a história de uma vida. Mas talvez seja mais correto afirmar que é a história de duas vidas, consumidas numa vida só: a vida de Eulálio, nascido em berço de ouro e condenado a fraldas e "camas rangedoras".
Todos os homens têm o seu destino. O destino da mortalidade, certamente. Mas também um destino marcado pelas escolhas inevitáveis do sexo e do desejo.
Por isso, não deixa de ser irônico que o último momento de saúde vivido por Eulálio seja também um momento com Matilde, ou apenas com a memória dela: uma memória que se materializa e personifica aos olhos de um velho pateticamente entumecido.
Alguém dizia que as paixões tardias são as mais intensas. Chico Buarque discorda. Em "Leite Derramado", o seu melhor livro até o momento, intensas são as paixões primevas. As paixões que nunca nos abandonam.
E que regressam sempre no final, como anjos da morte, prontas para nos levarem com elas.
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq0704200921.htm - Folha on-line, 07/04/2009
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