quarta-feira, 15 de abril de 2009

O espírito animal

Antonio Delfim Netto*

Em umas poucas linhas é possível resumir a intuição keynesiana que rejeitou a teoria clássica que, deixada a si mesma a organização da produção através dos mecanismos de mercado levaria, sempre, ao pleno emprego. O raciocínio que fundamentava esta conclusão era o seguinte: o nível de poupança é o principal determinante da taxa de juros e ela se fixará, pelas forças do mercado, no nível necessário para financiar o investimento que garante o pleno emprego. Keynes destruiu os dois lados da equação. Primeiro, com a possibilidade de existência de um paradoxo da poupança: a tentativa de poupar mais "ex-ante" pode levar a uma menor poupança "ex-post". Segundo, com a possibilidade de existência de uma armadilha da liquidez: quando a redução da taxa de juro real não tem mais condições de induzir o nível de investimento necessário para sustentar o pleno emprego. E, terceiro, com a fundamental ideia que a opacidade do futuro faz o investimento depender do "espírito animal" dos empresários, isto é, não apenas do cálculo racional das taxas de retorno e das taxas de juros que são impossíveis de serem conhecidas pela incerteza (incerteza mesmo, não probabilística). Infelizmente, essas ideias que enfatizam o papel fundamental das expectativas e da incerteza nas limitações do comportamento puramente racional dos indivíduos foram ignoradas no desenvolvimento posterior da teoria econômica.
Decidir qual dessas duas construções teóricas permite um entendimento mais adequado da realidade da economia capitalista (e uma eventual intervenção para modificá-la) não é uma questão retórica. É um problema empírico. Com relação a esse último aspecto podemos dizer hoje, sem risco de contestação, que a teoria corrente entre a maioria dos economistas (o chamado "mainstream") que acreditava no mercado financeiro "perfeito" não passava de um "conto de fadas malvadas". Isso não significa que a teoria keynesiana seja, necessariamente, a mais adequada para entender a confusão em que o "mainstream" meteu o mundo. De qualquer forma, pedaços de pesquisas empíricas catados aqui e ali sugerem: 1º ) que há grande probabilidade que o investimento preceda mesmo à poupança (o paradoxo da poupança); 2º ) que algumas economias parecem comportar-se como se estivessem mesmo prisioneiras de uma armadilha da liquidez; e 3º ) que a "trouvaille" do "animal spirit" (que Keynes parece ter encontrado em Hume), explica melhor o comportamento do empresário diante de um futuro opaco, incerto e aberto à intuição para além da pura racionalidade econômica.

O "mainstream" no que diz respeito ao mercado financeiro "perfeito" está morto, mas nada garante que Keynes esteja vivo. Alguns sinais vitais do seu pensamento apontam para a necessidade de uma reencarnação. Não é possível saber de onde ela virá, mas é possível afirmar de onde não virá. Não virá daqueles que pretendem a "reconstrução da arquitetura do capitalismo". Estes confundem a forma de organização social extremamente adaptativa apoiada nos "mercados" à qual se chegou por uma seleção histórica que compatibiliza eficácia produtiva com liberdade individual (razoavelmente bem explicada pela teoria econômica) com o fracasso da teoria da economia financeira. Esta, com seus brinquedos econofísicos, ajudou a aplicar com sucesso um "estelionato científico" sob o olhar míope e complacente das autoridades que deveriam tê-lo coibi-lo. Isso sugere que não precisamos de um Estado "maior" como querem os novos arquitetos, mas de um Estado "melhor"!

A origem da crise atual foi o mau uso de alguns modelos de cálculo de risco (para os quais, aliás, chamavam a atenção - sem serem ouvidos - alguns dos seus criadores). Tentar atribuí-la aos desequilíbrios dos balanços em conta corrente entre EUA e China produzidos pelos "mercados" é outra mistificação.

Felizmente começa a fazer-se alguma claridade sobre as verdadeiras razões que levaram à atual crise financeira internacional. Acaba de ser publicado um livro extraordinário que precisa ser urgente e competentemente traduzido. Deve transformar-se em leitura obrigatória de todos os que desejam um esclarecimento cuidadoso e sofisticado, mas sem complicações, sobre o assunto. Trata-se do volume "Animal Spirits", escrito por dois extraordinários economistas George A. Akerlof e Robert J. Shiller (Princeton University Press, 2009), cujo subtítulo é "Como a psicologia humana comanda a economia e porque ela é importante para o capitalismo global". Apenas um aperitivo (em tradução livre) para estimular o leitor. "Nossa visão de como a economia funciona deve ser adotada não apenas porque ela explica a história macroeconômica. Deve sê-lo porque explica, também, os detalhes operacionais da economia capitalista. Há abundantes evidências do espírito animal discutido nos primeiros cinco capítulos: confiança, equidade, corrupção, ilusão monetária e histórica. Essas são as motivações reais das pessoas reais. E são ubíquas. A presunção da macroeconomia do 'mainstream' de que elas não têm importância choca-nos pelo absurdo. O absurdo é ainda maior porque o espírito animal joga um papel crucial nas respostas às oito questões relativas à economia capitalista que levantamos neste livro:
1) Por que as depressões acontecem?
2) Por que os Bancos Centrais têm poder real?
3) Por que existe o desemprego involuntário?
4) Por que existe uma troca entre inflação e desemprego no longo prazo?
5) Por que a poupança é tão instável?
6) Por que o mercado de ações varia tão selvagemente?
7) Por que há ciclos? e, finalmente,
8) Por que continua a existir uma minoria na pobreza?"

Bom apetite!

*Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras.
E-mail contatodelfimnetto@terra.com.br/14/04/2009
http://www.valoronline.com.br/ValorImpresso/MateriaImpresso.aspx?codmateria=5516407&dtmateria=2009-4-14&codcategoria=89

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