sábado, 25 de abril de 2009

Lygia Fagundes Telles revê sua obra completa

Juliana Krapp, JB Online

RIO - – Na minha infância descabelada ganhei no Natal uma lupa. Assim – à guisa de quem abre um conto – Lygia Fagundes Telles começa a narrar como se enamorou pela caça das miudezas.
– Então passei dias e dias examinando a vida dos bichos através daquela lupa – prossegue. – Não os gatos e cachorros, porque esses eu já conhecia bem, mas minha curiosidade concentrou-se no mundo dos insetos, formigas, aranhas, borboletas. As minúcias, ah! me apaixonei tanto. Essa memória distante está nos símbolos que talvez acabei por aproveitar nesse mistério da criação.
Com 86 anos recém-completados (o aniversário foi no último domingo), a grande dama da literatura brasileira mantém a lupa em riste. Passou os últimos meses com a atenção especialmente aguçada, a mira não nos insetos da infância, mas em páginas e páginas de literatura. A sua literatura, que o crítico Antonio Dimas chama de uma inclinação à “microscopia” (“ela enxerga miúdo e no escuro”), e cuja força o poeta Carlos Drummond de Andrade – seu grande amigo – disse estar no “psicologismo oculto sob a massa de elementos realistas assimiláveis por qualquer um”. Literatura que agora está sendo toda passada em revista, num trabalho de extrema consideração aos detalhes – como é do feitio da autora. Os primeiros resultados de tal esmero chegaram quarta-feira às livrarias: as reedições de As meninas (1973), Antes do baile verde (1970) e Invenção e memória (2000). Revistos por Lygia, marcam a sua estreia na Companhia das Letras, após longas estadas na Nova Fronteira e na Rocco, respectivamente; e marcam também a reedição de grande parte de sua obra (ficarão faltando seus primeiros livros, que a autora rejeita como “prematuros”, e ainda alguns títulos pertencentes à Rocco), em um projeto editorial de pompa.

– Confesso que me fez bem ficar ocupada nessa tarefa de rever os romances, os contos e as crônicas para as novas edições com as belas capas [que trazem ilustrações da prestigiada artista plástica Beatriz Milhazes] – diz Lygia. – Cortar aquela vírgula, mudar aquele adjetivo... Sim, detalhes, mas às vezes é no detalhe que está Deus.

Além da revisão feita pela autora, as reedições ganharam posfácios com textos inéditos de intelectuais e de outros escritores, além de depoimentos de Lygia e de trechos de sua fortuna crítica. Dessa forma, Invenção e memória nos chega com um posfácio de Ana Maria Machado e um depoimento de José Saramago, no qual o Prêmio Nobel português comenta a antiga amizade com a brasileira. As meninas traz alguns elogios que o romance recebeu, à época de sua publicação original (Otto Maria Carpeaux diz que Lygia “tem algo da delicadeza atmosférica de uma Katherine Mansfield”, enquanto Hélio Pólvora afirma se tratar de um romance “dos maiores da literatura brasileira”) e um texto de Cristóvão Tezza, entre outras adições; e Antes do baile verde apresenta um alentado posfácio de Antonio Dimas (que coordena o projeto editorial das reedições, ao lado de Alberto da Costa e Silva, Lilia M. Schwarcz e Luiz Schwarcz) e uma carta de Carlos Drummond de Andrade endereçada à autora, em 1966.

Reunidos, os posfácios vão ao encontro da inclinação de Lygia para manter sua lupa sempre a postos – embora essa posição estética, apontam, não dê conta apenas de miudezas. Estas, como afirma Dimas, não raro compõem uma “pista falsa”. Já Ana Maria Machado alerta: o que ocorre quando Lygia, que muitas vezes parece explorar a memória numa espécie de estado de entrega, a esmo, “faz com que neles [episódios supostamente autobiográficos] incida o relâmpago de uma ruptura evidentemente inventada”, num lampejo evidente? “Deixa de ser ficção ou apenas nos engana, a todos nós, seus leitores?” Pois quem nunca sentiu o bote certeiro de Lygia? Como bem lembra Dimas, a escritora é dona de malícia felina que, machadianamente, “disfarça, mostrando”. E assim, revela, a quem quer, “a verdade subterrânea das criaturas”, como lhe disse, em carta, Drummond.

As passadas de perna literárias, afinal, podem ser relacionadas a uma das máximas que a autora tem repetido ao longo da vida: escrever é uma luta. Para reiterá-la, cita o próprio Drummond:
– Os versos do poeta retratam com perfeição o escritor e o seu ofício:
“Lutar com palavras/
é a luta mais vã/
Contudo lutamos/
mal rompe a manhã.
E no final, os versos tentam explicar a luta inexplicável:
Luto corpo a corpo,/
luto todo o tempo,/
sem maior proveito/
que o da caça ao vento”.

Imersa na revisão de sua obra, Lygia confirma: ainda luta um bocado. Está escrevendo um novo romance, que irá integrar a coleção da Companhia das Letras (ela não revela detalhes do livro). E defende com unhas e dentes o seu direito a fazer as tais pequenas alterações em seus livros (“Todo escritor tem o direito de fazê-lo enquanto vivo, porque depois é o silêncio”).

O mesmo direito Lygia se assegura diante da difícil questão: dentre seus textos, quais são os preferidos?

– Penso que sou volúvel nas minhas preferências, mudo assim como a lua – explica. – Vamos lá: uma jovem estudante quis saber qual era o meu conto preferido e respondi, sem hesitação, “O moço do saxofone”. Ao jovem que desceu de uma moto abordando-me na rua respondi, acho que gosto mais do “Anão de jardim”. Na entrevista numa universidade veio o estudante com o microfone e respondi: o preferido é “A caçada”...

Se a lupa revelou a Lygia um outro mundo – o microscópico – a descoberta da literatura aconteceu algum tempo antes. Longe do papel, mas próxima de um universo de assombrações e enigmas.

– Tive uma pajem que sempre me contava histórias. Eram em geral histórias de fantasmas, eu tremia de medo, me escondia debaixo da cama, mas era uma ouvinte tão apavorada e deslumbrada – narra. – Quando a contadora de histórias faltou certa noite, tomei o seu lugar e inventei aquela procissão de caveiras andando à meia-noite pelas ruas, as velas acesas e cantando. Com que prazer imitei na perfeição a voz fanhosa das caveiras! Agora não era eu quem tremia, mas os que me ouviam. Fiquei poderosa, hein? Transferia para o próximo o medo e o resto.

De uma forma ou de outra, o fantástico permaneceu rondando a sua criação (vejamos, por exemplo, os contornos sobrenaturais de alguns de seus contos). Familiarizada desde a infância com a “procissão de caveiras” e outros elementos aterrorizantes, a escritora descreve assim, em um depoimento sobre As meninas, sua relação com as criaturas que inventa: “As personagens são como vampiros, cravam os caninos na nossa jugular e quando amanhece, voltam aos seus sepulcros até que anoiteça de novo. O fim do livro seria a pedra que ponho sobre esses visitantes. Definitivamente? Não. Um dia, de repente, com outro nome e outras feições e em outro tempo volta mascarada a mesma personagem, elas gostam da vida. Como nós”.

Lygia aceitou então resignadamente, num exercício permanente de paciência e disciplina, a sede de sangue de seus personagens. Assim como sua vocação para a literatura: pertencente a uma família de classe média, não pôde mergulhar exclusivamente na criação. Paulistana, filha de um advogado e de uma pianista, escolheu seguir a carreira do pai.

– Fui uma jovem pobre, tive que trabalhar como funcionária pública para fazer o curso na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo. Bacharel, fui procuradora. Desconfio que não fui uma funcionária brilhante, mas cumpria as obrigações, afinal a minha vocação era escrever.

Vocação esta que, pode-se dizer, teve seu reconhecimento máximo com a conquista do Prêmio Camões, em 2005. Antes dele, já havia recebido diversos prêmios importantes, como alguns Jabutis, o Golfinho de Ouro, da Associação Paulista dos Críticos de Arte, e o Coelho Neto, da Academia Brasileira de Letras (onde, aliás, ocupa a cadeira 28). Hoje, Lygia não acredita que seja mais fácil a vida dos jovens escritores (“Em plena crise e com os leitores em processo de extinção, viver da literatura? Deixa-me rir”).

– Vivendo a realidade de uma escritora do Terceiro Mundo, considero minha obra de natureza engajada, ou seja, comprometida com a difícil condição do ser humano neste país de tão frágil educação e saúde. Uma profissional engajada e não alienada.

E, também, bem-humorada. Se foi difícil conciliar a profissão de advogada e a literatura? Ela não titubeia:

– Conciliar todo esse trabalho foi duro, sem dúvida, mas não estamos aqui neste mundo para passear.

A partir desta semana até meados de maio, Lygia faz uma pequena pausa na literatura. Não será exatamente de descanso: ela recebe homenagens pela reedição de sua obra, com debates e leituras dramatizadas. Depois retoma o ritmo de escrita e a revisão dos textos: em outubro, chegam às livrarias as novas edições de Ciranda de pedra, A noite escura e mais eu e Seminário dos ratos.

Para se referir ao momento que vive, recorre, mais uma vez, à poesia:

– Sobre a importância do sonho neste ofício é oportuno lembrar aqui o poema de um escritor português, Sebastião da Gama:
“É pelo Sonho que vamos/
comovidos e mudos./
Chegamos? Não chegamos?/
Haja ou não frutos/
é pelo Sonho que vamos”.

Reportagem de Juliana Krapp /JB Online - 16:56 - 24/04/2009
http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/04/24/e240423112.asp

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