Jaime Pinsky*
Não há tantos judeus quanto se imagina, mas como eles aparecem! Na minha adolescência, eu já conseguia distinguir os judeus gastronômicos (aqueles que adoram de guefilte fish e hering) dos ufanistas (que contam o número de prêmios Nobel conquistados pelos judeus e os comparam com os recebidos por outros povos), assim como, pelo sotaque, os os poilishers (oriundos da Polônia) dos litvishers (oriundos da Lituânia).
Mais tarde soube que havia os sefaradim e os ashkenazim, os esquerdistas e os direitistas, os moradores do tradicional bairro do Bom Retiro e os do supostamente aristocrático Higienópolis, e assim por diante. A história do náufrago que vivia sozinho numa ilha e que construiu duas sinagogas (pois precisava ter uma em que nunca pisaria) parece piada, mas não é: o judeu pode não saber com clareza a favor do que ele é, mas não tem dificuldade em saber contra o que deve se colocar.
Não é absurdo imaginar que isso decorra do fato de as leis judaicas falarem mais de proibições do que de ações recomendadas, mais de punições do que de elogios. Curioso que Deus, quando se manifesta aos judeus, geralmente reprime, embora para terceiros tenha por hábito elogiar aquele povo, chamando-o de eleito e tudo o mais. Vá entender.
Pensando bem, dá para entender. Afinal, não é assim também que faz a mãe judaica, nos endeusando para os outros (particularmente para outras mães judaicas) e lembrando, quando fala conosco, de como não sabemos fazer as coisas direito e somos fracos, incompletos e dependentes (dela, com toda certeza)?
Tudo isso deve ter desenvolvido nossa capacidade de responder à altura, desenvolver argumentos, exercer a dialética. Quem já frequentou uma escola rabínica sabe a balbúrdia que é aquele bando de jovens debatendo cada passagem bíblica, buscando um sentido novo em cada frase, desvendando cada palavra, interpretando incessantemente e em voz alta o conteúdo que a um leigo pareceria simples e evidente. Seria a enorme presença de advogados judeus nos EUA uma outra extensão dessa habilidade desenvolvida desde criança como instinto de sobrevivência diante da esmagadora e onisciente ídishe mame?
Tudo isso para dizer que o Pessach, a Páscoa judaica, é uma comemoração única. Aparentemente, ela registra “a saída dos judeus do Egito”. Mas como apreciamos argumentar começamos: que judeus?
Historiadores, mesmo os mais tendenciosos, não conseguiram encontrar nenhuma evidência da ida, ou mesmo da presença de judeus no Egito, daí ser difícil falar de sua saída. Consideramos a Travessia um mito de criação, desses que todos os povos, nações, religiões e etnias têm (quase todos os grandes fundadores nasceram de forma diferenciada — vejam os casos de Moisés, Jesus, Rômulo e Remo, por exemplo —, tiveram, ainda jovens, sua vida ameaçada e não viveram o suficiente para ver sua obra frutificar). O que parece aceitável é que grupos saídos do Egito tenham se constituído como povo no deserto e se organizado em clãs, ou tribos, como era usual na época. Posteriormente, por volta do ano 1000 a.C. as tribos se unificaram formando um ou dois reinos, geralmente frágeis, porque estabelecidos entre os dois grandes impérios do Médio Oriente, Egito e Mesopotâmia.
Ainda há os que pensam que o judaísmo de hoje deveria ser o mesmo que o do Templo de Jerusalém. Para esses deve-se chorar para sempre as destruições do Templo de Jerusalém, tanto a de 586 a.C., perpetrada por Nabucodonossor, quanto a do ano 70 E.C, pelas mãos do romano Tito, suposto início da Diáspora. Pessach, para a classe sacerdotal, deve ser um tributo doméstico à hierarquia religiosa. Difícil, hoje em dia, a volta de um templo, como braço religioso do poder político, fazendo sacrifícios de animais, restaurando o poder sacerdotal e tendo funções arrecadadoras, como o antigo. Sua reinstauração é uma idéia tão anacrônica que nem sequer fundamentalistas judeus a defendem seriamente.
Gosto da definição segundo a qual um povo é um grupo com a consciência de um passado comum. Quando eu digo consciência não quero dizer que esse passado comum tenha de fato existido. Ao optar por me sentir herdeiro das melhores tradições judaicas — e, sim, eu tenho o direito de escolhe-las — eu passo a ser herdeiro delas. Não interessa se há 3 mil anos meus ancestrais já eram judeus, não importa se sou fruto da conversão de cázaros na Idade Média, ou de ucranianos após 1648, não vem ao caso se optei por meu judaísmo há um ano ou uma semana. O importante é a consciência que tenho de ser herdeiro dos profetas sociais e de tantos judeus que sonharam com uma humanidade melhor. Sim, Pessach é uma travessia.
*Historiador, doutor pela USP, professor titular da Unicamp, diretor editorial da Editora Contexto.
http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 12/04/2009
*Historiador, doutor pela USP, professor titular da Unicamp, diretor editorial da Editora Contexto.
http://www.correiobraziliense.com.br/impresso/ 12/04/2009
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