terça-feira, 5 de julho de 2011

A agenda progrediu, mas falta fazer mais

Desenvolvimento:
Atendidas necessidades essenciais, é hora de passar
a uma requalificação das políticas sociais.

Aline Massuca/Valor

Simon Schwartzman e Edmar Bacha:
ideias para dar novos focos a políticas de saúde, educação, previdência,
renda e enfrentamento da violência urbana

"Brasil - A Nova Agenda Social"
Edmar Bacha e Simon Schwartzman (org.).
LTC 380 págs., R$ 65,00
-----------------------
O Brasil já ultrapassou a etapa de atendimento das necessidades básicas da população e agora, sem descuidar dos mais pobres, precisa avançar na agenda das políticas sociais, buscando um salto de qualidade nos serviços prestados. Em essência, essa é a tese que está contida no livro que o economista Edmar Bacha e o sociólogo Simon Schwartzman, ambos ex-presidentes do IBGE, organizaram, reunindo textos de 18 autores sobre os temas saúde, educação, previdência, políticas de renda e violência urbana. O trabalho resulta de seminários organizados pelo Instituto de Política Econômica Casa das Garças, dirigido por Bacha, e pelo Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IETS), presidido por Schwartzman.
Em entrevista ao Valor, Bacha e Schwartzman dizem que a universalização da saúde prevista na Constituição relegou o princípio da equidade e criou uma "focalização perversa", que acaba desfavorecendo os mais pobres. Pregam o ensino pago nas universidades públicas e, indo além do livro que será lançado hoje em São Paulo (Livraria da Vila), propõem o uso das Forças Armadas no combate à violência urbana.

Valor: O que juntou um economista e um sociólogo para fazer esse trabalho?
Bacha: A Faculdade de Ciências Econômicas de Belo Horizonte. Nós dois nos formamos no mesmo ano, na mesma faculdade, em 1963. A Faculdade de Ciências Econômicas tinha três cursos: economia, ciências sociais e administração... Na verdade a preocupação com a questão social não é exclusiva, nem de sociólogos nem de economistas.

Valor: O senhor um dia (década de 1970) comparou o Brasil a um misto de Bélgica no econômico e Índia no social (Belíndia). E agora, qual a relação entre o quadro macroeconômico e o social?
Bacha: Obviamente que a gente veio de uma condição miserável. Lá nos anos 1970 e 1980, os índices sociais do Brasil eram vergonhosos, dado o nível de renda que o país tinha. O Simon também participou do seminário e do livro que a gente fez, nos anos 80, junto com um historiador americano chamado Herbert Klein ("Transição Incompleta") no qual, justamente, a temática era essa: o país tinha feito a transição de uma economia agrária para uma economia industrial urbana, mas tinha deixado para trás boa parte da população que tinha se transferido do campo para a cidade e que estava vivendo em condições miseráveis, sem educação, sem saúde. De lá para cá, a partir da redemocratização (1985) e da estabilização (1994), o Brasil fez enormes progressos. Eu acho que, nas necessidades básicas da população, demos conta do recado. É isso que a gente quer dizer quando está discutindo uma "Nova Agenda Social": a gente precisa ir além do básico.

Valor: O Brasil realmente deu conta do básico?
Schwartzman: Não totalmente. O que acontece hoje é que tem problemas que atingem não os 16 milhões [número oficial de pessoas que ainda vivem na miséria no Brasil], mas grande parte dos 170 milhões [o restante da população]. São pessoas que não estão entre os extremamente pobres, mas que vivem em situação complicada na periferia das grandes áreas urbanas, não têm acesso a esgoto, têm problema sério de falta de acesso à saúde... Ainda se pensa muito da forma antiga. Problema no Brasil? Pobreza extrema! Problema do Brasil? Grande desigualdade! Tudo isso ainda existe, mas a pobreza extrema diminuiu, a desigualdade diminuiu. Os problemas são de outro tipo, questões muito complicadas e que estão sendo muito pouco consideradas.
Bacha: Está faltando foco.

Valor: A política de combate à pobreza recém-lançada pela presidente Dilma está errando no foco?
Schwartzman: Não estou entrando no mérito da política especificamente. O fato de focalizar em um segmento da população que ainda vive uma pobreza muito grande não está errado. O problema não é esse. O problema é: cadê o foco em outras coisas?
Bacha: Vou por os números no que ele está falando. Nessas cinco áreas que a gente considera no livro, o governo gasta 24% do PIB. Quanto disso é para a pobreza extrema? É 0,5% do Bolsa Família, 0,6% do Loas [benefício pago a idosos e deficientes físicos] e 1,5% da aposentadoria rural. Nós estamos falando aí de 2,6% do PIB. Ou seja, do que chamamos de políticas sociais no Brasil, só 10% de fato são focados no pobre. Os outros 90% são para outra gente. Então, não é só que a natureza do problema mudou. É que a maneira como a gente gasta não parece ser adequadamente focada. Paulo Renato [ministro da Educação do governo Fernando Henrique Cardoso, morto há dez dias] pôs todo mundo na escola. Agora, vamos ensinar a eles alguma coisa.

"A Constituição fala que a saúde é universal,
mas não diz em nenhum lugar que
ela é equitativa. A equidade não
foi assumida como o valor principal
desse processo."
Valor: O SUS, teoricamente, universalizou a saúde...
Bacha: Universalizou, mas o que a população quer é plano de saúde. É essa ideia de que o SUS é para os pobres, exceto quando eu preciso dele para emergências e para os gastos extraordinários. Foi concebido como universal, e de fato é muito desigual. E é desigual porque foi concebido como universal. Criou o espaço necessário para que os grupos de interesse com real poder político no país se aproveitassem da chamada universalidade para poder beneficiar a si próprios. A Constituição fala que a saúde é universal, mas não diz em nenhum lugar que ela é equitativa. A equidade não foi assumida como o valor principal desse processo.

Valor: Como se transpõe essa análise para a educação?
Schwartzman: O que se gasta com ensino superior público é sete vezes mais do que se gasta com ensino básico. Há alguma distorção aí, não é? E tem outra ordem de questão. Será que as escolas estão funcionando como deveriam? As universidades estão produzindo competência, pesquisa e conhecimento correspondentes aos seus custos? O mesmo se pergunta na saúde.

Valor: É possível, politicamente, o Brasil ter um ensino público universitário cobrado?
Bacha: A Colômbia cobra, o Chile cobra...
Schwartzman: Até o México está começando a cobrar, a Inglaterra cobra, a China cobra, todos os países da Europa Oriental cobram, a Ásia inteira cobra... Por que o Brasil não pode cobrar?

Valor: Hoje, todos concordam que é necessário reformar a Previdência. Qual é a reforma possível?
Bacha: Hoje, já gastamos mais do que 11% do PIB com previdência. É 7,2% com o INSS, 2% com o sistema público federal e 2% com o estadual e municipal. Isso, com 10% da população com mais de 60 anos. Em 2050, vamos ter 30% da população com mais de 60 anos. Hoje, as aposentadorias estão atreladas ao salário mínimo. O salário mínimo está atrelado ao PIB... Essa conta não vai fechar, logo, logo.

Valor: Vai ser preciso mexer na Constituição para fechar as contas?
Bacha: Seguramente. Acho que hoje o Brasil não faria essa Constituição. Você estava saindo da ditadura, com uma enorme dívida política e social a ser paga... e com a inflação comendo. E sem criar nenhuma percepção de restrição orçamentária. Existe uma concepção segundo a qual o princípio da solidariedade social, com o qual todos nós concordamos, exige a universalização dos serviços. E a Constituição proclama isso e instituiu isso. De fato, o que ela criou foi uma focalização perversa. Queremos fazer uma focalização correta. E é assim que a gente vai produzir a solidariedade.

Valor: As políticas da inclusão produtiva dos mais pobres estão caminhando de maneira correta?
Schwartzman: O que a gente tem sobre isso [no livro] é a parte das políticas de renda, Bolsa Família... O que você pode dizer do Bolsa Família é que, basicamente, deu um pequeno ganho monetário para populações de muito baixa renda. Além disso, você não vê efeito sobre educação, sobre saúde... O programa que o governo lançou agora, tenho a impressão que não acrescenta muito. Em parte, é uma extensão do Bolsa Família.

Valor: Como tratar o problema da segurança pública e como a experiência das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) do Rio de Janeiro pode contribuir?
Bacha: O que parece que é peculiar do Rio, por causa da geografia, é o domínio territorial [pelo tráfico armado] dos morros que são vizinhos aos locais onde os ricos moram. Normalmente, a pobreza está no subúrbio. Não sei se o formato específico das UPPs é extensivo a outras experiências. Fora isso, tem diversas experiências aqui no Brasil de sucesso no combate ao crime violento e que o Rio está adotando, indo além da UPP. São Paulo, Belo Horizonte, Diadema... E tem outro aspecto [não está no livro] que é o papel das Forças Armadas. Acho que é um tema importante e emergente: qual o papel que as Forças Armadas podem ter para lidar com a violência, especialmente no Norte e no Nordeste do país, onde as estruturas administrativas dos governos locais parecem ser insuficientes?

Valor: A macroeconomia pode ser um obstáculo para que se dê esse salto de qualidade que os senhores propõem nas políticas sociais?
Bacha: Com a macroeconomia de 1980, não dava nem para começar a pensar. Só estamos considerando esses problemas da forma como estamos porque a macroeconomia permite.

Valor: Mesmo com os escorregões fiscais?
Bacha: São questões de conjuntura. Não existe risco de uma hiperinflação, risco de crise do balanço de pagamentos... Estamos discutindo qual é o grau de aperto ideal da política monetária. Aqui e no resto do mundo. Nesse ponto de vista, estamos normais. Nossas políticas sociais é que não são normais.
Schwartzman: O que a gente pergunta é como usar melhor o que a gente tem. Estamos dizendo que, no tamanho que a gente está, temos que fazer melhor.
--------------------
Reportagem por Chico Santos Do Rio
Fonte: Valor Econômico online, 04/07/2011

Um comentário:

  1. Guiotto ,
    Parabéns pela seleção de textos.

    Passe para um chá e um dedo de prosa uma hora qualquer lá no meu blog.

    Um abraço!

    Carlos kurare

    "Foi por ter sido pisado por muitos pés que me tornei um bom vinho!"
    Carlos Kurare

    ResponderExcluir