domingo, 10 de julho de 2011

SANTOS ENTRE TAÇAS DE VINHO

LUIZ FELIPE PONDÉ


O filósofo ataca o esnobismo hipócrita
dos “jantares inteligentes”
e explica por que considera
o cristianismo moralmente superior
à pregação materialista.

Luiz Felipe Pondé, de 52 anos, é um raro exemplo de filósofo brasileiro que consegue conversar com o mundo para além dos muros da academia. Seja na sua coluna semanal na folha de São Paulo, seja livros como o recém-lançado O Catolicismo Hoje ( Benvirá), ele sabe se comunicar com o grande público sem baratear suas ideias. (...)

Entrevista na VEJA

Em seus ensaios, o senhor delineou um cenário exemplar do mundo atual: o jantar inteligente. O que vem a ser isso?
É uma reunião na qual há uma adesão geral a pacotes de ideias e comportamentos. Pode ser visto como a versão contemporânea das festas luteranas na Dinamarca do século XIX, que o filósofo Soren Kierkegaard criticava por ser hipocrisia para uma falsa espiritualidade de esquerda. Como a esquerda não tem a tensão do pecado, ela é pior do que o cristianismo.

Como assim?
A esquerda é menos completa como ferramenta cultural para produzir uma visão de si mesma. A espiritualidade da esquerda é rasa. Aloca toda a responsabilidade do mal fora de você: o mal está na classe social, no capital, no estado, na elite. Isso infantiliza o ser humano. Ninguém saí de um jantar inteligente para se olhar no espelho e ver um demônio. Não: todos se veem como heróis que estão salvando o mundo por andar de bicicleta.

Qual são os temas mais comuns da conversa em um jantar desses?
Filhos são um tema recorrente. Todos falam de como seus filhos são diferentes dos outros porque frequentam uma escola que cobra 2000 reais por mês ma é de esquerda e estuda a sério o inviável modelo econômico cubano. Ou dizem que a filha já tem consciência ambiental e trabalha numa ONG que ajuda as crianças da África. Também se fala sempre de algum filme chatíssimo de que todos fingem ter gostado para mostrar como têm repertório. Mais timidamente, há certa preocupação com a saúde e o corpo. Reciclar lixo e, mais recentemente, andar de bicicleta também são temas valorizados. Sempre se fala mal dos Estados Unidos, mas Barack Obama é um deus. Fala-se mal de Israel, sem conhecer patavina da história do conflito Israel-palestino. Mas, claro, é obrigatório enfatizar que você é antissionista mas não antissemita, pois um jantar inteligente muito provavelmente haverá um judeu – apesar de serem muitas vezes judeus em crise consigo mesmos, o que é bem típico dos judeus.

Que assuntos são tabu?
Imagine dizer em uma reunião na Dinamarca luterana de Kierkegaard que algumas mulheres são infelizes porque não chegam ao orgasmo. Seria um escândalo. Simetricamente, hoje é um escândalo dizer que as mulheres emancipadas e donas de seu nariz estão mesmo é loucas de solidão. No jantar inteligente, você tem sempre de dizer que a emancipação feminina não criou problemas para as mulheres, que os homens aprenderam a ser sensíveis e que uma mulher nunca vai dar um pé no homem que se mostre sensível demais. Os jantares inteligentes misturam cardápios interessantes – pratos peruanos ou, sei lá, vietnamitas – co papo-cabeça, mas servem à mesma função que os jantares dos pais dessas pessoas cumpriam: passar o tempo. Os problemas amorosos, sexuais e profissionais são os mesmos, mas todos se acham bem resolvidos. Costumo provocar dizendo que há 100 anos se fazia sexo melhor. Tinha mais culpa e pecado, o que deve dar uma excitação tremenda. Hoje, todo mundo diz que tem um desempenho maravilhoso, e que vive uma relação de troca plena com seu parceiro ou parceria. Eu considero a revolução sexual um dos maiores engodos da história recente. Criou uma dimensão de indústria, no sentido da quantidade, das relações sexuais – mas na maioria elas são muito ruins, porque as pessoas são complicadas.

Quando começaram os jantares inteligentes?
A matriz histórica são os filósofos da França pré-revolucionária. Os saraus, os jantares em casas de condessas e marquesas eram então uma atividade da burguesia, ou de uma aristocracia falida, aburguesada. Eram uma das formas que a burguesia usava para constituir sua identidade, para mostrar que tinha cultura e opiniões. Mas era um grupo de vanguarda, que discutia as fraturas e crises do pensamento. Nos jantares de hoje, a inteligência tem a mesma função do vinho chileno.

Não há lugar para um pensamento alternativo nem na hora da sobremesa?
Não. A gente teve nove anos de ditadura no Brasil. Mas, quando ela acabou, a esquerda estava em sua plenitude. Tomou conta das universidades, dois institutos culturais, das redações de jornal. Você pode ver nas universidades, por exemplo, cartazes de um ciclo de palestras sobre o pensamento de Trotsky e sua atualidade, mas não se veem cartazes anunciando conferências sobre a crítica à Revolução Francesa de Edmund Burke, filósofo irlandês fundamental para entender as origens do conservadorismo. Não há um pensamento alternativo à tradição de Rousseau, de Hegel e de Marx. Tenho um amigo que é dono de uma grande indústria e cuja filha estuda em um colégio de São Paulo que nem é desses chiques de esquerda. É uma escola bastante tradicional. Um dia, uma professora falava da Revolução Cubana, como se fosse um grande tema. Ela citou Che Guevara, e a menina perguntou: “Ele matou muita gente?”. A professora se vira para a menina e responde: “O seu pai também mata muita gente de fome”. O que autoriza um professor a usar esse tipo de argumento é o status quo que se instalou também nas escolas, e não só na universidade. O infantilismo político dá vazão e legitima esse tipo de julgamento moral sumário.

Como essa tendência se manifesta na universidade?
O mundo das ciências humanas, em que há pouco dinheiro e se faz pouca coisa, é dominado pela esquerda aguada. Há muito corporativismo e a tendência geral de excluir, por manobras institucionais, aqueles que não se identificam com a esquerda. Existe ainda a nova esquerda, para qual não é mais o proletariado que carrega o sentido da história, como queria Marx. Os novos esquerdistas acreditam que esse papel hoje cabe às mulheres oprimidas, aos índios, aos aborígines, aos imigrantes ilegais. Esses segmentos formariam a nova classe sobre a qual estaria depositada a graça redentora. Eu detesto política como redenção.

"Os problemas amorosos de hoje
são os mesmos, mas, no jantar inteligente,
todo mundo diz que vive uma
relação de troca plena com seu parceiro.
A revolução sexual foi um dos maiores
engodos da história recente"

Por que a política não pode ser redentora?
O cristianismo, que é a religião hegemônica no Ocidente, falta do pecador, de sua busca e de seu conflito interior. É uma espiritualidade riquíssima, pouco conhecida por causa do estrago feito pelo secularismo extremado. Ao lado de sua vocação repressora institucional, o cristianismo reconhece que o homem é fraco, é frágil. As redenções políticas não têm isso. Esse é um aspecto do pensamento de esquerda que eu acho brega. Essa visão do homem sem responsabilidade moral. O mal está sempre na classe social, na relação econômica, na opressão do poder. Na visão medieval, é a graça de Deus que redime o mundo. É um conceito complexo e fugidio. Não se sabe se alguém é capaz de ganhar a graça por seus próprios méritos, ou se é Deus na sua perfeição que concede a graça. Em qualquer hipótese, a graça não depende de um movimento positivo de um grupo. Na redenção política, é sempre o coletivo, o grupo, que assume o papel de redentor. O grupo, como a história do século XX nos mostrou, é sempre opressivo.

Em que o cristianismo é superior ao pensamento da esquerda?
Pegue a ideia de santidade. Ninguém, em nenhuma teologia da tradição cristã – nem da judaica ou islâmica – , pode dizer-se santo. Nunca. Isso na verdade vem desde de Aristóteles: ninguém pode enunciar a própria virtude. A virtude de um homem é enunciada pelo outros homens. Na tradição católica – o protestantismo não tem santos –, o santo é sempre alguém que, o tempo todo, reconhece o mal em si mesmo. O clero da esquerda, ao contrário, é movido por um sentimento de pureza. Considera sempre o outro como o porco capitalista, o burguês. Ele próprio não. Ele está salvo, porque recicla lixo, porque vota no PT, ou em algum partido que se acha mais puro ainda, como o PSOL, até porque o PT já está meio melado. Não contradição interior na moral esquerdista. As pessoas se autointitulam santas e ficam indignadas com o mal do outro.

"O clero da esquerda, ao contrário,
é movido por um sentimento de pureza:
porco é sempre o outro,
o capitalista,
o burguês"
Quando o cristianismo cruza o pensamento de esquerda, como no caso da Teologia da Libertação, a humildade se perde?
Sim. Eu vejo isso empiricamente em colegas da Teologia da Libertação. Eles se acham puros. Tecnicamente, a Teologia da Libertação é, por um lado, uma fiel herdeira da tradição cristã. Ela vem da crítica social que está nos profetas de Israel, no Antigo Testamento. Esses profetas falavam mal do rei, mas sem idealizar o povo. O cristianismo é descendente principalmente desse viés do judaísmo. Também o cristianismo nasceu questionando a estrutura social. Até aqui, isso não me parece um erro teológico. Só que a Teologia da Libertação toma como ferramenta o marxismo, e isso sim é um erro. Um cristão que recorre a Marx, ou a Nietzsche – a quem admiro –, é como uma criança que entra numa jaula de leão e faz bilu-bilu na cara dele. É natural que a Teologia da Libertação, no Brasil, tenha evoluído para Leonardo Boff, que já não tem nada de cristão. Boff evoluiu para um certo paganismo Nova Era – e já nem é marxista tampouco. A Teologia da Libertação é ruim de marketing. É como já se disse: enquanto a Teologia de Libertação fez a opção pelo pobre, o pobre fez a opção pelo pentecostalismo.

O senhor acredita em Deus?
Sim. Mas já fui ateu por muito tempo. Quando digo que acredito em Deus, é porque acho essa uma das hipóteses mais elegantes em relação, por exemplo, à origem do universo. Não que eu rejeite o acaso ou a violência implícitos no darwinismo – pelo contrário. Mas considero que o conceito de Deus na tradição ocidental é, em termos filosóficos, muito sofisticado. Lembro-me sempre de algo que o escritor Chesterton dizia: não há problema em não acreditar em Deus; o problema é que quem deixa de acreditar em Deus começa a acreditar em qualquer outra bobagem, seja na história, na ciência ou em si mesmo, que é a coisa mais brega de todas. Só alguém muito alienado pode acreditar em si mesmo. Minha posição teológica não é óbvia e confunde muito as pessoas. Opero no debate público assumindo os riscos do niilismo, e sou muitas vezes acusado de niilista. Quase nunca lanço a hipótese de Deus no debate moral, filosófico ou político. Do ponto de vista político, a importância que vejo na religião é outra. Para mim, ela é uma fonte de hábitos morais, e historicamente oferece resistência à tendência do estado moderno de querer fazer a cura das almas, como se dizia na Idade Média – querer se meter na vida moral das pessoas.

Por que o senhor deixou de ser ateu?
Comecei a achar o ateísmo aborrecido, do ponto de vista filosófico. A hipótese do Deus bíblico, na qual estamos ligados a um enredo e um drama moral muito maiores do que o átomo, me atraiu. Sou basicamente pessimista, cético, descrente, quase na fronteira da melancolia. Mas tenho sorte sem merecê-la. Percebo uma certa beleza, uma certa misericórdia no mundo, que não consigo deduzir a partir dos seres humanos, tampouco de mim mesmo. Tenho a clara sensação de que às vezes acontecem milagres. Só encontro isso na tradição teológica.

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Fonte: REVISTA VEJA IMPRESSA, folha amarelas, Ed.2225, 13 de julho de 2011.
Reportagem por JERÔNIMO TEIXEIRA.

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