sábado, 15 de outubro de 2011

Martin Blaser: o amigo das bactérias

DEFENSOR O microbiologista Martin Blaser, em seu laboratório 
na Universidade Nova York, EUA. Para ele, os antibióticos matam 
bactérias que fazem bem   (Foto: Gilberto Tadday/ÉPOCA)

Quem é o cientista americano que tomou o partido de uma das principais inimigas da saúde humana

Cientistas costumam ser comedidos. Apoiam-se em estatísticas, sugerem probabilidades e raramente anunciam certezas. Mas o artigo publicado pelo microbiologista americano Martin Blaser em agosto, na revista científica Nature, fugiu à regra. Nele, Blaser pedia, já no título, o fim da “matança das bactérias”. O tom só causou menos surpresa do que o conteúdo. No artigo, Blaser transformou em mocinha a bactéria Helicobacter pylori, uma conhecida vilã. Ele afirma que a bactéria, que está por trás da maior parte dos casos de gastrite, úlcera e câncer gástrico, não é apenas causadora de doenças.
“A H. pylori também traz benefícios para os humanos”, afirma Blaser, professor da Universidade Nova York. “Meus estudos sugerem que a erradicação maciça dessa bactéria está por trás da epidemia de obesidade e do aumento de casos de asma e de refluxo.”
Defender as bactérias contra o uso indiscriminado de antibióticos não é novidade. Há anos os médicos estão preocupados com o surgimento das superbactérias, micro-organismos resistentes às drogas. Ao tomar antibióticos, muitas vezes sem prescrição médica e sem necessidade, matamos bactérias fracas e selecionamos as fortes. Um estudo publicado em 2007 constatou que, aos 18 anos, adolescentes americanos já tomaram entre dez e 20 ciclos de antibióticos. A medicação mata até mesmo parte das bactérias que vivem no corpo para ajudar em tarefas como a digestão. São 100 trilhões de micro-organismos do bem. O movimento em prol do uso consciente dos antibióticos é antigo. Mas Blaser é o primeiro a tomar a defesa de uma bactéria específica, causadora de doenças.
A descoberta em 1982 de que a H. pylori é uma das causas principais de gastrite, úlcera e câncer gástrico revolucionou o tratamento dessas doenças. Os médicos puderam evitar que alguém desenvolva um tumor matando a bactéria que irrita a mucosa do estômago, desencadeia a multiplicação desordenada das células e provoca úlceras. Essas feridas do estômago causam dor, azia e, em casos graves, hemorragias – sintomas que, antes das pesquisas sobre a H. pylori, eram tratados com drogas caras e paliativas. O tratamento com antibióticos custa um décimo do preço e é eficaz. A descoberta foi tão importante que rendeu o Prêmio Nobel de Medicina de 2005 a John Robin Warren e Barry James Marshall, os dois cientistas australianos que fizeram a associação entre a bactéria e as doenças na década de 1980. 
Vilã ou mocinha? (Foto: Science Photo Library/Latinstock)
Blaser nos últimos anos têm se dedicado a reabilitar a H. pylori. Ele sugere que a bactéria, que fica na mucosa do estômago, tem papel importante na regulação do suco ácido que digere os alimentos. Por isso, diz Blaser, atacá-la poderia trazer problemas. A pessoa pode ganhar peso porque a produção do hormônio da fome seria afetada pela mudança no nível de acidez do estômago. Ou desenvolver refluxo – transferência de suco gástrico para o esôfago, o canal que leva a comida ao estômago. As consequências imediatas são dor e ardência. A longo prazo, a irritação pode dar origem a um tumor. Até o sistema de defesa do corpo pode sofrer. Sem a bactéria, ele pode ficar mais sensível a outros micro-organismos e responder de maneira exagerada a esses inimigos, tornando a pessoa asmática. Para Blaser, ela controla também o nível de acidez do estômago. Ele não pode ser muito baixo (porque, nesse caso, bactérias que vivem no intestino subiriam para o estômago e tomariam o lugar da H. pylori) nem muito alto (porque prejudicaria o funcionamento do órgão, algo ruim também para a bactéria). “Quando se olha para a H. pylori sob essa perspectiva, é possível compreender que ela traz benefícios, não só prejuízos”, diz Blaser.
A tese dele é tão surpreendente quanto polêmica. “Não se pode falar que um micro-organismo causador de doenças é benéfico”, diz o gastroenterologista gaúcho Ismael Maguilnik, presidente do Núcleo Brasileiro para Estudo da Helicobacter pylori, um departamento da Federação Brasileira de Gastroenterologia. Hoje, grupos de pesquisadores espalhados pelo mundo buscam uma vacina para evitar que as pessoas sejam infectadas pela H. pylori. O vetor da contaminação são frutas e verduras mal lavadas, além de água contaminada. A reação médica tornou-se automática: ao menor sinal de azia ou queimação, pede-se uma endoscopia, exame em que o médico inspeciona o estômago com uma pequena câmera na ponta do cateter. Amostras colhidas da mucosa do órgão mostram se a bactéria está lá. Em alguns consultórios, com uma baforada dentro de um saquinho especial, já se descobre a hóspede indesejada. Com o diagnóstico, vem o tratamento: uma combinação de dois antibióticos e de uma droga que reduz a acidez. 
Blaser ainda não reuniu evidências suficientes para que a comunidade médica reavalie os atuais procedimentos. O que ele conseguiu foi mostrar associações estatísticas entre o tratamento com antibióticos e os resultados negativos. Por exemplo: o número de crianças com asma aumentou no mesmo período em que também aumentou a prescrição de antibióticos. Ou: o número de casos de refluxo cresceu entre pacientes que eliminaram a H. pylori. “Não consigo provar que ele está errado, mas acho que ele precisa provar ainda mais que está correto”, disse a ÉPOCA o médico australiano John Robin Warren, um dos ganhadores do Nobel pelo isolamento da H. pylori. A credibilidade de Blaser deriva de seu profundo conhecimento da bactéria. Ele e um grupo italiano descobriram que havia um tipo de H. pylori mais perigoso que os outros. Mesmo assim, não se pode excluir a possibilidade de que outras causas expliquem a relação estatística encontrada por ele. “Pacientes curados de úlcera podem passar a comer mais do que comiam, o que também pode levar ao aparecimento de refluxo”, diz o gastroenterologista Jaime Eisig, professor da Universidade de São Paulo.
Apesar de suas convicções, Blaser não propõe um retorno ao tratamento feito antes do isolamento da bactéria. Ele diz que pacientes que têm H. pylori e estão doentes devem eliminá-la. Mas ataca o uso de antibiótico nos casos em que a presença da bactéria não está associada a nenhuma patologia – algo que a comunidade médica tem debatido intensamente. Alguns médicos preferem exterminar a bactéria mesmo que não haja sintoma de doenças, para afastar a ameaça. Outros pesam os riscos de usar antibióticos, selecionar bactérias perigosas e matar aquelas úteis ao organismo. Muitas dessas bactérias são desconhecidas da ciência. A tese de Blaser vai reforçar os que defendem o procedimento mais cauteloso. “Provavelmente outras espécies de bactérias também estão desaparecendo, mas nós nem sabemos por que elas não recebem atenção”, diz Blaser. Se depender dele, a H. pylori ainda vira mártir.
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Reportagem por MARCELA BUSCATO
Fonte: Revista ÉPOCA on line, 15/10/2011

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