domingo, 9 de outubro de 2011

Teologia política do Poder

 Antonio Ozaí da Silva*
AGAMBEN, Giorgio

AGAMBEN, Giorgio. O Reino e a Glória:
uma genealogia teológica da economia e do governo:
 homo sacer, II. São Paulo: Boitempo, 2011
(Coleção Estado de Sítio, 326p.)

*O poder político, legitimado pelo consentimento e fundamentado na possibilidade da coação física, ou seja, no exercício da violência pretensamente legítima, é um tipo de poder auto-suficiente. A face mais visível deste poder é o governo. Não é mero acaso que muitos não diferenciem Governo e Estado, sendo o primeiro um dos componentes do conjunto de instituições e papéis políticos que configuram o segundo.
A palavra grega Oikonomia significa administração da casa. Na pólis, a esfera da política, portanto, do poder político, dissocia-se da casa (oikia) e o político e o governante distinguem-se qualitativamente do oikonomos e do despotés, que se referem à esfera da administração doméstica e da família. Com o tempo, o poder político no Ocidente assumiu a forma de uma Oikonomia, ou seja, de um governo dos homens Governar, portanto, está relacionado à economia, à administração dos homens e das coisas. Como se deu esta passagem, quais os modos e motivos pelos quais o poder passou a adquirir este caráter? Esta é uma questão central na investigação de Giorgio Agamben, na obra “O Reino e a Glória”.[1]
O autor investiga a relação entre Oikonomia e Glória, isto é, “entre o poder como governo e gestão eficaz e o poder como realeza cerimonial e litúrgica”. Este aspecto leva Agamben a levantar questões negligenciadas em outros estudiosos das insígnias e liturgias do poder. Assim, o autor objetiva responder a interrogações como: “Por que o poder precisa de glória? Se é essencialmente força e capacidade de ação e governo, por que assume a forma rígida, embaraçosa e “gloriosa” das cerimônias, da aclamações e dos protocolos? Qual é a relação entre economia e Glória? (AGAMBEN, 2011, p.10).
Seu ponto de partida é a reconstrução genealógica dos paradigmas políticos derivados da teologia cristã, paradigmas que são contraditórios, porém, ponto de vista funcional, conexos:

“a teologia política, que fundamenta no único Deus a transcendência do poder soberano, e a teologia econômica, que substitui aquela pela ideia de uma oikonomia, concebida como uma ordem imanente – doméstica e não política em sentido restrito – tanto da vida divina como da vida humana. Do primeiro paradigma derivam a filosofia política e a teoria moderna da soberania; do segundo, a biopolítica moderna até o atual triunfo da economia e do governo sobre qualquer outro aspecto da vida humana” (id., p.13).

O paradigma teológico transmuta-se em paradigmas de significados políticos. Se observarmos bem, muito do que consideramos essencialmente pertinente à esfera da política na atualidade mostrar-se-á de origem teológica. Ainda que laicizada, a política bebe em fontes teológicas medievais. Torna-se necessário, portanto, estudar a evolução do significado semântico – e influência – da oikonomia. Isto pressupõe o estudo das fontes originais que produziram os paradigmas que norteiam a política moderna. O autor analisa os fundamentos teológicos da política, desvendar o “mistério da economia” e encontrar respostas para os problemas teóricos que dizem respeito à natureza do poder político.
Ao identificar na Glória o segredo central do poder e interrogar-se sobre o nexo indissolúvel que o vincula ao governo e à oikonomia, Agamben chama a atenção para o significado moderno da opinião pública e do consenso enquanto formas modernas de aclamação e glorificação do poder. Eis um aspecto que revela o significado e a importância dos meios de comunicação nas sociedades contemporâneas. Como salienta o autor:

“Se os meios de comunicação são tão importantes nas sociedades modernas, isso não se deve apenas ao fato de permitirem o controle e o governo da opinião da opinião pública, mas também e sobretudo porque administram e dispensam a Glória, aquele aspecto aclamativo e doxológico do poder que na modernidade parecia ter desaparecido. A sociedade do espetáculo – se denominarmos assim democracias contemporâneas – é, desse ponto de vista, uma sociedade em que o poder em seu aspecto “glorioso” se trona indiscernível com relação à oikonomia e ao governo” (id., p. 10).

Após reconstruir minuciosamente a história do paradigma teológico-econômico, isto é, da tensão entre gloria e gubernatio, Giorgio Agamben analisa a articulação entre Reino e Governo. Neste ponto, ele destaca a relevância das aclamações, cerimoniais, liturgias e insígnias na antiguidade, como se manifestam na era cristã-medieval e os modos como são incorporados à política. Trata-se, sobretudo, de uma análise da liturgia do poder, ou seja, de como o aspecto laico e secular da política é sacralizado. Rompe-se, assim, a dicotomia entre teologia e política, entre poder espiritual e poder profano. A Glória aproxima e faz coincidir estes aspectos geralmente apresentados como contraditórios e opostos.
A relação entre o teológico e o político não é unívoca. Em outras palavras, “a teologia da glória constitui o ponto de contato secreto pelo qual teologia e política se comunicam e trocam papéis entre si”. Thomas Mann, no romance José e seus irmãos[2], nota que “religião e política não são duas coisas fundamentalmente diferentes, mas, ao contrário, “na verdade, trocam as vestes entre si” (id., p.214).
Ao analisar as obras dos autores que se dedicaram ao estudo dos aspectos cerimoniais que configuram a liturgia do poder, Agamben retoma as questões que orientam sua investigação. Por que hesitar em formular a pergunta sobre a relação íntima entre poder e glória? Pois,

“Se o poder é essencialmente força e ação eficaz, por que necessita receber aclamações rituais e cantos de louvor, vestir coroas e tiaras incômodas, submeter-se a um impraticável cerimonial e a um protocolo imutável, em suma, imobilizar-se hieraticamente na glória, ele que é essencialmente operatividade e oikonomia? (id., p.215).

É preciso analisar como se dá a conexão entre o poder e a glória. Trata-se de indagar-se sobre as formas de glorificação do poder. Para tanto, o autor se detém sobre a arqueologia da glória. Ele observa que a função essencial da glória parece superada – ou simplificada e reduzida ao mínimo. Dessa forma, os fatores de glorificação do poder, tão evidentes em outras épocas históricas, parecem objetos e manifestações de um passado superado: “as coroas, os tronos e os cetros são conservados nas vitrines dos museus ou dos tesouros, e as aclamações, que tiveram tanta importância para a função gloriosa do poder, parecem ter quase desaparecido”. Mesmo os gritos fervorosos Heil Hitler na Alemanha nazista, ou Duce duce na Itália fascista, “parecem hoje fazer parte de um passado longínquo irrevogável”. Não obstante, a exemplo do autor, devemos nos perguntar: “é realmente assim?” (id., p.276).
O poder permanece vinculado a cerimoniais, rituais, símbolos, etc. Por sua vez, a glorificação pelos gestos unânimes das aclamações, característica dos regimes políticos autoritários, assumiu novos significados nas democracias modernas. Ou seja, a esfera da glória deslocou-se para o âmbito da opinião pública. Para Giorgio Agamben:

“O que está em questão é nada menos que uma nova e inaudita concentração, multiplicação e disseminação da função da glória como centro do sistema político. O que ficava confinado às esferas da liturgia e dos cerimoniais concentra-se agora na mídia e, por meio dela, difunde-se e penetra em cada instante e em cada âmbito, tanto público quanto privado, da sociedade. A democracia contemporânea é uma democracia inteiramente fundada na glória, ou seja, na eficácia da aclamação, multiplicada e disseminada pela mídia além do que se possa imaginar (que o termo grego para glória – doxa – seja o mesmo que designa hoje a opinião é, desse ponto de vista, mais que mera coincidência)” (id., p.278).

A democracia moderna, democracia consensual – government by consent – ou, como denominou Guy Debord, “sociedade do espetáculo”, pressupõe e exige a construção do consentimento. O consenso repousa e nos remete às aclamações, isto é, às formas midiáticas de glorificar o poder.
A leitura de “O Reino e a Glória”, é instigante e importante para a reflexão e compreensão desta dinâmica, suas fontes e fundamentos teológicos, o nexo entre glória e poder, entre teologia e política, a sacralização da política, a função da mídia nas democracias contemporâneas, etc. Entretanto, não é uma obra de fácil leitura. Aos não iniciados na temática, a linguagem poderá se mostrar árida e, provavelmente, exigirá maior esforço de concentração e persistência. Não obstante, vale a pena perseverar.
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*Professor do Departamento de Ciências Sociais na Universidade Estadual de Maringá (DCS/UEM), editor da Revista Espaço Acadêmico, Revista Urutágua e Acta Scientiarum. Human and Social Sciences e autor de Maurício Tragtenberg: Militância e Pedagogia Libertária (Ijuí: Editora Unijuí, 2008).

*Resenha originalmente publicada na REA, nº 125, outubro de 2011, disponível em http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/EspacoAcademico/article/view/14985/7995
[1] AGAMBEN, Giorgio. O Reino e a Glória: uma genealogia teológica da economia e do governo: homo sacer, II. São Paulo: Boitempo, 2011 (Coleção Estado de Sítio, 326p.)
[2] 2. ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, 3 v.

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