segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Uma longa história de notícias falsas

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Uma longa história de notícias falsas 
Foto: Gage Skidmore

As notícias falsas sempre existiram. Elas só não tinham um nome em inglês capaz de ser universal: fake news. Quem batiza, cria. Na história das teorias da comunicação é famoso o caso dos “cadáveres alemães a caminho da fábrica de sabão”. Essa história é relembrada por Melvin DeFleur e Sandra Ball-Rokeach em Teorias da comunicação de massa. Em 1917, durante a Primeira Guerra Mundial, o general britânico J. V. Charteris, do Departamento de Informação, recebeu duas fotos obtidas com o campo adversário. Vê-se numa delas “cadáveres de soldados alemães sendo arrastados para serem enterrados atrás da linha de frente”. Na outra, “cavalos mortos a caminho da fábrica onde a engenhosidade alemã extraía sabão das carcaças deles”. Perceberam?

Charteris fez a mágica em minutos com as tecnologias da época, tesoura e cola. Inverteu as legendas e criou o fato mobilizador. A foto com os soldados mortos ganhou a descrição devastadora sintetizada nas palavras já citadas: “cadáveres alemães a caminho da fábrica de sabão”. A foto foi enviada para a China, onde o respeito a corpos humanos mortos era sagrado. Resultado em favor do poder da propaganda: “A profanação de mortos atribuídas aos alemães foi um dos fatores responsáveis pela declaração chinesa de guerra contra as potências centrais”. Notícias falsas podem mover o mundo. Na guerra tudo vale. Não por acaso há quem defenda que vivemos num estado de “guerra civil permanente” mundial. Donald Trump é discípulo do general Charteris.

As mentiras mais recentes de Trump dizem respeito a um suposto alistamento de imigrantes irregulares, pelos democratas, para votar na eleição presidencial dos Estados Unidos, o que é contra a lei. Essa mentira já foi contada por Trump na sua derrota para Joe Biden. Trata-se de preparar o eleitorado de direita para uma derrota denunciando uma nova e indemonstrável fraude. A taxa de tentativas de inscrição de estrangeiros irregulares atestada na última eleição americana foi estatisticamente insignificante. Trump não se preocupa com a prova. Quer apenas o efeito. A dificuldade em aceitar resultados das urnas não respeita ideologia. O socialista Nicolas Maduro manteve-se no cargo de presidente da Venezuela sem mostrar as atas eleitorais que provassem a sua vitória. Na França, o presidente Emmanuel Macron nomeou um primeiro-ministro de direita apesar da vitória, sem maioria absoluta, da esquerda nas recentes eleições legislativas antecipadas.

No Brasil, o decadente Jair Bolsonaro, incapaz de impor seus candidatos nas eleições municipais deste ano, tentou um golpe de Estado por não aceitar o triunfo de Lula. Quando a verdade dos votos se revela amarga os inimigos da democracia e os maus perdedores apelam para dois tipos de mentira: a antecipada e a posterior. De certo modo, todos trocam as legendas das fotos para induzir ao erro. Em São Paulo, Pablo Marçal recorreu ao tradicional truque de confundir homônimos para acusar Guilherme Boulos de condenação por uso de drogas. Ele sabia que se tratava de outro Guilherme Boulos. O país não sabia. O golpe funcionou por alguns dias. A diferença entre a época de Charteris e hoje é que se a mentira voa mais rápido, o desmascaramento tende a ser tão ou mais veloz. Essa é a guerra das mentiras totais.

*Jornalista. Escritor. Prof. Universitário

Fonte:  https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/colunistas-matinal/juremir-machado/uma-longa-historia-de-noticias-falsas/?utm_source=Matinal&utm_campaign=670c71e455-EMAIL_CAMPAIGN_2024_09_13_10_33&utm_medium=email&utm_term=0_-670c71e455-%5BLIST_EMAIL_ID%5D

CELEBRIDADES



 

 

 

 

 

 

 

Por Paulo Maciel (UFOP)

De Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) à Davi Brito (vencedor do BBB 24), a celebridade pode ser vista como um dos signos de distinção social que emerge com a formação burguesa e, sendo assim, pode ser encarada como parte da modernidade e de suas transformações ao longo do tempo. Nesse sentido, as duas encarnações da celebridade informadas acima servem como balizas históricas de seu percurso desde meados do século XVIII até a terceira década do século XXI. A aproximação entre Jean-Jacques Rousseau e Davi Brito, de saída, nos mostra como a celebridade opera socialmente nivelando e hierarquizando, elevando e rebaixando, as qualidades pessoais ou individuais em razão de seu alcance público. 

A definição do que é a celebridade é uma tarefa complexa e, por esse motivo, nos propomos aqui pensar a noção do ponto de vista da sua performance, ou seja, estou mais interessado no que ela faz com os indivíduos e as sociedades. Afinal de contas, ela pode ser descrita como uma formação cultural que faz ver e falar de si. Um olhar panorâmico na bibliografia disponível em língua portuguesa revela a dificuldade dos autores e das autoras em estabelecer um sentido para essa coisa. Em linhas gerais, os textos tratam mais dos limites conceituais e formais do objeto, conforme salientou Renato Ortiz em “As celebridades como emblema sociológico” (2016). Para o autor, as celebridades são fruto da modernidade e se distinguem de outras formas de distinção social mais tradicionais e ou localizadas como, por exemplo, o “renome” ou a “reputação”, que operariam dentro de um grupo limitado de pessoas, e a “fama”, que remeteria a “um campo com fronteiras bem delineadas”. Ao contrário delas, a celebridade pode ser caracterizada pelo fato de sua publicidade transcender o horizonte dos grupos particulares e, para que isso aconteça, ela sempre foi dependente do desenvolvimento dos meios de comunicação. Meios que contribuíram, desde meados do século XVIII, para a constituição de um espaço público renovado e ampliado (Ortiz, 2016: 675). 

Tendo a concordar com a perspectiva de Antoine Lilti (2018) de que a invenção da celebridade não é uma novidade de nosso mundo contemporâneo encarada, muitas vezes pela bibliografia, como signo ou marca distintiva da corrosão do caráter, da espetacularização da sociedade e/ou do encolhimento da “esfera pública”. A favor de sua tese, Antoine elencou alguns motivos que teriam contribuído para a sua formação entre os anos de 1750 e 1850: a ampliação do alcance público da impressa, especialmente dos jornais que se tornam veículos de grande circulação, o aparecimento do ideal oitocentista da autenticidade do eu, que atingiu seu auge com o romantismo, e a multiplicação na Europa e nos Estados Unidos de instituições artísticos-culturais libertas do patrocínio aristocrático e da proteção real, devido à constituição de um mercado livre de bens simbólicos, mudanças que transformaram “de modo profundo a maneira como um indivíduo podia ser conhecido por seus contemporâneos” (Antoine, 2018: 23).        

Ao mesmo tempo, partilho da distinção elaborada por Renato Ortiz entre a invenção da celebridade e a instituição de uma cultura da celebridade. O autor salientou que celebridade faz parte de um conjunto de termos recentes cujos traços podem ser rastreados no passado. Porém, mesmo desfrutando de prestígio no mundo burguês em gestação, sua instituição no Ocidente se concretizou com a entrada em cena da cultura de massas (Ortiz, 2016: 674). Portanto, aos elementos formadores da cultura da celebridade elencados anteriormente precisamos acrescentar mais esse, afinal de contas, para o autor, a sua formação se deve à ascensão do homem médio ao espaço público e a democratização da fama nas sociedades contemporâneas. 

Essa relação da cultura da celebridade com a cultura de massa do século XX costuma ser traduzida pelos críticos como um sinal de seu pertencimento ao processo crescente de democratização promovido pelas mídias. Nesse processo, os veículos de imprensa e cultura (jornais, revistas, rádio, televisão e internet) se distanciaram cada vez mais da “grande personalidade” ao ampliarem o campo de sua visibilidade para além de alguns “membros de uma elite de sangue, de beleza, de destreza e competência”, para abarcar o “sonho de milhares” (França, 2014: 2). Desta maneira, a cultura da celebridade pode ser compreendida como uma resposta política à invisibilidade dos estratos baixos e do cidadão ordinário nas sociedades hierárquica ou, então, como um signo da sua alienação em grande escala. 

Mais recentemente, a cultura da celebridade tem sido relacionada ao desejo abstrato da visibilidade por ela mesma, uma vez desligada dos “feitos e das obras” (França, 2014: 31). Boorstin define a cultura contemporânea da celebridade da seguinte maneira: “a celebridade é uma pessoa conhecida pelo fato de ser bastante conhecida” (Boorstin, 1971: 57 apud Ortiz, 2016: 684). A tautologia do conceito aponta para a crítica contemporânea da cultura da celebridade enquanto uma forma de vida caracterizada pela “ausência de qualidades”. Nesse sentido, ante ao “homem sem qualidades” é como se a mídia fosse o agente responsável por transferir para os indivíduos seu próprio carisma. Entretanto, sabemos que nem todas as personagens e pessoas que aparecem na mídia se tornam celebridades. Uma parte da bibliografia argumenta que não basta a ampla exposição. É preciso existir algo próprio de um determinado indivíduo que seja objeto do reconhecimento público; é preciso ter carisma. Carisma que é a qualidade de uma relação antes que emanando meramente de um indivíduo, pois ela é fruto do reconhecimento popular midiático que só pode ser aferido quantitativamente por meio do número de likes e de seguidores nas redes sociais, bem como dos vários intermediários entre as celebridades e a vida pública, desde os seus patrocinadores até a equipe de gerenciamento de seu nome e de sua imagem. 

Um dos primeiros autores célebres a refletir sobre o “paradoxo das celebridades” ou a respeito da sua ambivalência estrutural foi Jean-Jacques Rousseau, que procurou através dos jornais e de suas falas públicas associar seu nome de autor a sua pessoa, como se os textos publicados pelo escritor “fossem emanações imediatas de sua subjetividade” (Lilt, 2018: 238). Essa associação direta entre autor e obra esbarra mais uma vez na presença de vários intermediários (editores, corretores, livreiros, críticos etc.) do mundo do livro e na mistura das estratégias comerciais com as questões intelectuais. A sua defesa da interseção entre vida e obra se torna um elemento fundamental para caracterizar o rosto público do autor genebrino e, ao mesmo tempo, a sua suspeita sobre a autenticidade do eu moldado segundo o desejo da opinião pública. Sendo assim, Rousseau não escapou “do desenvolvimento da cultura visual da celebridade”, pois sua imagem circulava amplamente com as gravuras alimentando o sonho de seus fãs. A sua busca pelo reconhecimento público da interseção entre sua obra e sua vida acabou se virando contra ele, que lamentou, mais tarde, a perda do controle sobre seu nome e sua imagem tornando a autenticidade impossível (Lilt, 2018: 238-239). 

De um lado, a celebridade individualiza e autentica o ser retirado do anonimato, e de outro lado, acaba se interpondo entre ele e os seus contemporâneos. Perante a ameaça da cultura de massa no século XX e, sobretudo, das mídias digitais no começo do século XXI, os estudiosos da cultura das celebridades desenvolveram tipologias destinadas a discriminar diferentes formas de ser ou se tornar celebre traçando as particularidades de sua manifestação como, por exemplo: “celebridade conferida” (se deve a ocupação de um lugar de destaque por determinados indivíduos como, por exemplo, nascer na família real britânica), “celebridade adquirida” (em função de um desempenho tomado como exemplar ou de uma qualidade excepcional) e “celebridade atribuída” (a visibilidade ou exposição midiática) (Rojek, 2008). 

Em contraponto a “celebridade adquirida” de J. J. Rousseau, que estaria baseada na sua obra e nas suas realizações como escritor e intelectual, temos a “celebridade atribuída” de Davi Brito. Não penso que esses diferentes tipos de cultura da celebridade se excluam, afinal de contas o rosto público de Rousseau provavelmente era recebido de modo diverso pelo público que podia se interessar por sua obra, por sua pessoa, ou, simplesmente, pelo fato de aparecer constantemente nos veículos de impressa. Neste sentido, a distinção elaborada em função da “natureza” da celebridade deixa de lado, geralmente, a operação em comum. Mas, com a internet, que se tornou o principal meio de produção, reprodução e circulação da cultura da celebridade hoje, a sua manifestação se renovou com a globalização do espaço midiático, com a possibilidade da interação pela mídia muito superior ao que existia antes, com uma mudança significativa dos conceitos/conteúdos de público e privado – estamos diante da redefinição das próprias esferas – e com uma visibilidade sem precedentes. Ela se tornou a Hidra de Lerna. 

Lendo as notícias publicadas na internet a respeito de Davi Brito, vencedor do BBB 24, podemos perceber como a “celebridade atribuída” está diretamente relacionada aos milhões de espectadores do programa e a ampliação do número de seus seguidores no Instagram (O globo online, 17/04/2024). Por outro lado, as notícias destacam as qualidades que teriam feito dele vencedor: sinceridade, humildade, autenticidade e tenacidade. Os valores positivos se repetem instituindo seu rosto público à imagem do eu neoliberal e, ao mesmo tempo, do “povo brasileiro”. Tal qual o povo brasileiro, Davi não teria desistido diante dos inúmeros obstáculos que enfrentou ao longo de sua estadia na casa (Estadão online, 17/04/2024). 

O próprio arranjo do BBB 24 reforça a distinção entre famosos (as) e anônimos (as), pois os (as) participantes foram divididos em dois grupos: os vips e os anônimos. Davi, ao alcançar a celebridade, pode mudar de lado. O “reality show” reafirma a visão de mundo de interesse da mídia em consonância com o desejo do público. Davi fazia parte dos anônimos. Ao longo de sua estadia na casa, enfrentou diversas vezes os “participantes vips” do programa e acabou vencendo diversos paredões para os quais foi indicado. Vale citar a confissão de Davi a Tadeu Schmidt: “Foi uma trajetória muito dificultosa, que apresentou muitos espinhos.  Eu pensei em desistir” (…) (Estadão online, 17/04/2024). 

Penso que não podemos menosprezar os diferentes usos culturais e sentidos sociais atribuídos às celebridades. No caso de Davi, por exemplo, significava em seu discurso o acesso à casa própria, a possibilidade de ascensão social e cursar uma universidade, conforme relatou: “o menino que vendia picolé no ônibus agora está lutando por um sonho que parecia inalcançável” (Estadão online, 17/04/2024). 

Davi é um jovem negro e sua vitória, para uma grande parte do público, representou um modelo positivo em contraponto com as estatísticas. De fato, nos últimos tempos, a celebridade se tornou mais plural e diversa, porém, seu modo de operação não mudou muito. Morador da periferia de Salvador, entrou na casa com os votos do público que o escolheu entre os demais candidatos e candidatas. Não podemos esquecer que o eu vencedor vai sendo construído pela mídia de acordo com a notícia. As notícias destacam as qualidades de Davi e, ao mesmo tempo, as pesam segundo o índice de audiência e sua torcida nas redes sociais. O reconhecimento público de seu nome é mediado pelo noticiário, de acordo com a forma do desejo impulsionado pela cultura neoliberal, que os torna numa forma de capital individual que vale milhões – mais de 5,1 milhões de lares viram o programa diariamente (Negócios SC online, 18/04/2024), Davi saltou de 50 seguidores no Instagram para 8,6 milhões (O globo online, 17/04/2024). O seu rosto público tem a forma da notícia e, nele, reúne qualidades convertidas na posse de milhões adquiridos com os prêmios e na crescente quantidade de fãs.   

A celebridade faz parte da mitologia burguesa, pois, segundo comentou Roland Barthes, ela contribui para fixar de uma vez por todas a hierarquia das posses (Barthes, 1985: 175). Nesse sentido, ela naturaliza a desigualdade de acordo com os parâmetros contemporâneos da ideologia neoliberal, como nos informa o discurso midiático de Davi a respeito das peripécias e das características exigidas do eu vencedor. Ele diz que ganhou com a ajuda do Senhor, logo, teria sido o escolhido entre os demais para ter garantida essa benção. Dessa forma, a ascensão social conquistada com os prêmios é justificada transcendentalmente. Foi Deus que lhe deu força para vencer os obstáculos apresentados ao longo do programa e sua pessoa pública se torna uma forma de encarnação da “justiça social”, segundo O Globo online (17/04/2024).

De acordo com Chris Rojek (2008), a celebridade adquirida surgiu com a ampliação da esfera pública, o relaxamento de padrões centralizados e coercitivos de sua encarnação pela mídia, impulsionando fatores que contribuíram para o aumento da competitividade por esse tipo de capital sociocultural. A trajetória midiática de Davi faz parte desse aumento da competitividade por esse capital na sociedade contemporânea. O rosto público estampado no noticiário deve se mostrar realizado e ser transparent, revelando, em sua aparição pública, a suposta natureza do (caráter) vencedor. 

Vale observar que, no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1983), Rousseau nos oferece algumas pistas para pensar na interdependência sugerida aqui entre a cultura da celebridade e a da desigualdade. Na sua fabulação da “festa primitiva” que institui um espaço-tempo coletivo, o autor nos conta que do corpo coletivo “primitivo” que canta e dança reunido em torno da grande árvore se destacam alguns indivíduos dos demais em função de suas maiores aptidões para o canto e ou para dança. Por esse motivo, acabariam sendo transformados em objeto de estima pública. A estima pública convertida em espetáculo cinde o corpo coletivo entre “atores” e “espectadores” revelando assim a desigualdade nascente entre os homens. 

Neste sentido, a celebridade pode ser encarada como um signo que serve para justificar a hierarquia, naturalizando, no mesmo movimento, a desigualdade no interior de um dispositivo organizado segundo a distinção entre vips e não vips. Desde meados do século XVIII, a função social, política e econômica da celebridade é justificar uma espécie de desigualdade como sendo um fato inalterável, pois a distinção aqui depende da distribuição natural das qualidades individuais na sociedade. Portanto, ela não representa uma ameaça real à forma desigual do jogo, muito pelo contrário, reforça o modelo vigente de distribuição das posses, abrindo espaço para a inclusão do “povo” no mundo dos famosos, mesmo que temporariamente. A cultura da celebridade, nos jornais, na televisão, na internet em geral hoje, revela a ambivalência de sua face de Jano, formada tanto do impulso democrático quanto da força concentradora do capitalismo, que resiste a sua ampliação. Na mídia atual costuma servir à encenação da vitória do “povo”, segundo os termos da ideologia neoliberal. O rosto midiático da celebridade é um caro vazio para que, assim, possa transparecer, em sua superfície refletora, o sonho de milhões.   


Referências

BARTHES, Roland. (1985). Mitologias. São Paulo: DIFEL. 

FRANÇA, Vera et al. (2014). Celebridades do século XXI: transformações no estatuto da fama. Porto Alegre: Sulina.

LILT, Antoine. (2018). A invenção da celebridade (1750-1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 

ORTIZ, Renato. (2016). As celebridades como emblema sociológico. Sociol. Antropologia, v. 06, n. 03, p. 669-697. 

ROJEK, Chris. (2008). Celebridade. Rio de Janeiro: Rocco. 

ROUSSEAU, Jean-Jacques. (1983). Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural. 

Sobre o autor

Paulo Maciel (Paulo Marcos Cardoso Maciel) é professor do Departamento de Artes Cênicas (DEART) e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Atualmente preside a Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (ABRACE).

Fonte:  https://blogbvps.com/2024/09/16/serie-mitomanias-mitologias-celebridades-por-paulo-maciel/

Hipercapitalismo e semiocapital.

Artigo de Franco “Bifo” Berardi  

https://www.ihu.unisinos.br/images/ihu/2024/09_gifs/16_09_inteligencia_artificial_un.gifArte: Marcelo Zanotti | IHU

 16 Setembro 2024

A formação de plataformas digitais lançou sujeitos produtivos que não existiam antes da década de 1980.

O artigo é de Franco “Bifo” Berardi, filósofo, escritor e ativista italiano, publicado por CRXT, 14-09-2024.

Eis o artigo.

“Caliban: Você me ensinou a língua e meu benefício
é que eu sei amaldiçoar. 'A peste vermelha leva você
por me ensinar sua língua.'”

Shakespeare: A Tempestade

Colonialismo histórico: extrativismo de recursos físicos

A história do colonialismo é uma história de depredação sistemática do território. O objeto da colonização são os locais físicos ricos em recursos de que o Ocidente colonialista necessitava para a sua acumulação. O outro objeto da colonização são as vidas de milhões de homens e mulheres explorados em condições de escravatura no território sujeito ao domínio colonial, ou deportados para o território da potência colonizadora.

Não é possível descrever a formação do sistema capitalista industrial na Europa sem ter em conta o fato de que este processo foi precedido e acompanhado pela subjugação violenta de territórios não europeus e pela exploração em condições de escravatura da força de trabalho subjugada em os países colonizados ou deportados para países dominantes. O modo de produção capitalista nunca poderia ter sido estabelecido sem extermínio, deportação e escravidão.

Não teria havido desenvolvimento capitalista na Inglaterra da era industrial se a Companhia das Índias Orientais não tivesse explorado os recursos e o trabalho dos povos do continente indiano e do Sul da Ásia, como relata William Dalrymple em The Anarchy, The relentless rise of the East India Company (2019).

Não teria havido desenvolvimento industrial em França sem a exploração violenta da África Ocidental e do Magrebe, para não mencionar os outros territórios sujeitos ao colonialismo francês entre os séculos XIX e XX. Não teria havido desenvolvimento industrial do capitalismo americano sem o genocídio dos povos nativos e sem a exploração escravista de dez milhões de africanos deportados entre os séculos XVII e XIX.

A Bélgica também construiu o seu desenvolvimento na colonização do território congolês, acompanhada por um genocídio de brutalidade inimaginável. Martin Meredith escreve a esse respeito:

“A fortuna de Leopoldo veio da borracha bruta. Com a invenção dos pneus, para bicicletas e depois para automóveis, por volta de 1890, a procura pela borracha cresceu enormemente. Utilizando um sistema de trabalho escravo, as empresas que detinham concessões e partilhavam os seus lucros com Leopoldo saquearam das florestas equatoriais do Congo toda a borracha que puderam encontrar, impondo quotas de produção aos aldeões e fazendo reféns quando necessário. Aqueles que não cumpriram as suas quotas foram chicoteados, presos e até mutilados, cortando-lhes as mãos. Milhares de pessoas morreram resistindo ao regime da borracha de Leopoldo. Muitos mais tiveram que abandonar as suas aldeias…” (Martin Meredith: The State of Africa, Simon & Schuster, 2005, p. 96).

Muitos autores contemporâneos insistem nesta prioridade lógica e cronológica do colonialismo sobre o capitalismo.

“A era das conquistas militares precedeu em séculos o surgimento do capitalismo. Foram precisamente estas conquistas e os sistemas imperiais que delas derivaram que promoveram a ascensão imparável do capitalismo” (Amitav Gosh: The Curse of the Nutmeg, p. 129).

E segundo Cedric Robinson: "A relação entre o trabalho escravo, o tráfico de escravos e a formação das primeiras economias capitalistas é evidente" (Marxismo Negro).

Poucos, porém, observaram como as técnicas utilizadas pelos países liberais para subjugar os povos do Sul global são exatamente as mesmas utilizadas pelo nazismo de Hitler nas décadas de 1930 e 1940, com a única diferença de que Hitler praticou técnicas de extermínio contra os europeus e contra os judeus que eram parte integrante da população europeia.

Um desses poucos é, surpreendentemente, Zbigniew Brzeziński que, num artigo de 2016 intitulado Rumo a um realinhamento global, teve a honestidade intelectual de escrever: “Massacres periódicos deram origem, nos últimos séculos, a extermínios comparáveis ​​aos dos nazis durante a Segunda Guerra Mundial. Guerra." O artigo de Brzezinski conclui com estas palavras: “Tão impressionante quanto a escala destas atrocidades é a rapidez com que o Ocidente as esquece.”

Na verdade, a memória histórica é muito seletiva quando se trata dos crimes da civilização branca. Em particular, a memória do extermínio das populações não europeias não recebe atenção especial e não faz parte da memória coletiva, enquanto um culto obrigatório é dedicado à Shoah em todos os países ocidentais.

A civilização branca considera Hitler como o Mal Absoluto, enquanto os britânicos Warren Hastings e Cecil Rhodes, o alemão Lothar von Trotha, exterminador do povo Herrero, ou Leopoldo II da Bélgica são esquecidos, se não perdoados, pela memória branca.

Como o general Rodolfo Graziani, torturador da Líbia e da Etiópia, que ficou gravemente ferido num ataque em Adis Abeba, mas infelizmente salvou a sua vida, e que depois da guerra foi perdoado pelo governo italiano para que pudesse tornar-se presidente honorário do Movimento Italiano Social, o partido dos assassinos que agora governa novamente em Roma.

Exterminaram populações inteiras para impor o domínio econômico da Grã-Bretanha, Bélgica, Alemanha ou França, para não mencionar a Itália. Porém, não são lembrados, pois só Hitler merece ser execrado pois suas vítimas não tinham a pele negra.

Quanto aos exterminadores dos povos das pradarias norte-americanas, são mesmo objeto de um culto heroico que Hollywood decide celebrar.

O principal legado do colonialismo é a pobreza endêmica de áreas geográficas que foram saqueadas e devastadas - Franco “Bifo” Berardi

A colonização agiu de forma irreversível não só a nível material, mas também a nível social e psicológico. Contudo, o principal legado do colonialismo é a pobreza endêmica de áreas geográficas que foram saqueadas e devastadas a tal ponto que não conseguem escapar à sua condição de dependência. A devastação ecológica de muitas áreas africanas e asiáticas empurra hoje milhões de pessoas a procurar refúgio através da emigração, e depois encontram a nova face do racismo branco: a rejeição, ou uma nova escravatura, como ocorre na produção agrícola ou no setor da construção e logística em países europeus.

Dado que o processo de descolonização não conseguiu transformar a soberania política em autonomia econômica, cultural e militar, o colonialismo surge no novo século com novas técnicas e modalidades, essencialmente desterritorializadas, embora as formas territoriais do colonialismo não sejam anuladas pela soberania formal de que gozam os países. o Sul global (por assim dizer).

Com o termo hipercolonialismo refiro-me precisamente a estas novas técnicas, que não suprimem as antigas baseadas no extrativismo e no roubo (de petróleo ou de materiais essenciais para a indústria eletrônica, como o coltan), mas antes dão origem a uma nova forma de extrativismo que tem a rede digital como meio e como objeto tanto os recursos físicos de trabalho da força de trabalho capturada digitalmente quanto os recursos mentais dos trabalhadores que permanecem no Sul global, mas produzem valor de forma desterritorializada, fragmentada e tecnicamente coordenada.

Hipercolonialismo: extrativismo de recursos mentais

Desde que o capitalismo global foi desterritorializado através das redes digitais e da financeirização, a relação entre o norte e o sul globais entrou numa fase de hipercolonização.

A extração de valor do Sul global ocorre em parte na esfera semiótica: captura digital de mão de obra muito barata, escravatura digital e criação de um circuito de trabalho escravo em sectores como a logística e a agricultura. Estes são alguns dos modos de exploração hipercolonial integrados no circuito do semiocapital.

A escravatura – que há muito consideramos um fenômeno pré-capitalista e que foi uma função indispensável da acumulação original de capital – reaparece hoje de forma generalizada e omnipresente graças à penetração do comando digital e da coordenação desterritorializada. A linha de montagem do trabalho foi reestruturada de forma geograficamente deslocalizada: os trabalhadores que dirigem a rede global vivem em locais a milhares de quilômetros de distância, pelo que não conseguem implementar um processo de organização e autonomia.

A formação de plataformas digitais lançou sujeitos produtivos que não existiam antes da década de 1980: uma força de trabalho digital que não consegue se reconhecer como sujeito social devido à sua composição interna.

Este capitalismo de plataforma funciona em dois níveis: uma minoria da força de trabalho dedica-se à concepção e comercialização de produtos imateriais. Eles ganham altos salários e se identificam com a empresa e com os valores liberais. Por outro lado, um grande número de trabalhadores geograficamente dispersos dedica-se a tarefas de manutenção, controle, etiquetagem, limpeza, etc. Trabalham online por salários baixíssimos e não possuem nenhum tipo de representação sindical ou política. No mínimo, não podem sequer ser considerados trabalhadores, porque estas formas de exploração não são de forma alguma reconhecidas e os seus escassos salários são pagos de forma invisível, através da rede celular. No entanto, as condições de trabalho são geralmente brutais, sem horários ou direitos de qualquer tipo.

O filme The Cleaners (2018), de Hans Block e Moritz Riesewick, narra as condições de exploração e esgotamento físico e psicológico a que está submetida esta massa de semitrabalhadores precários, recrutados online segundo o princípio do Mechanical Turk, criado e gerido pela Amazon.

Entre a década de 1990 e a primeira década do novo século, formou-se esta nova força de trabalho digital, operando em condições que tornam quase impossíveis a autonomia e a solidariedade.

Houve tentativas isoladas de trabalhadores digitais de se organizarem em sindicatos ou de contestarem as decisões das suas empresas: penso, por exemplo, na revolta de oito mil trabalhadores do Google contra a subordinação ao sistema militar.

Estas primeiras demonstrações de solidariedade ocorreram, no entanto, onde a força de trabalho digital está unida em grande número e recebe salários elevados. Mas, em geral, o trabalho em rede parece não regulamentado, porque é precário, descentralizado e porque, em grande medida, ocorre em condições de escravatura.

No livro Os Afogados e os Salvos, Primo Levi escreve que quando foi internado no campo de extermínio "ele esperava pelo menos a solidariedade entre os companheiros de sofrimento", mas depois teve que reconhecer que os internados eram "mil mônadas seladas, entre as quais há uma luta desesperada, oculta e contínua.” Esta é a “zona cinzenta” onde a rede de relações humanas não se reduz a vítimas e perseguidores, porque o inimigo estava por perto, mas também por dentro.

Em condições de extrema violência e terror permanente, cada indivíduo é forçado a pensar constantemente na sua própria sobrevivência e é incapaz de criar laços de solidariedade com outras pessoas exploradas. Tal como nos campos de extermínio, como nas plantações de algodão dos estados escravistas do País da Liberdade, também no circuito escravista imaterial e material que a globalização digital contribuiu para criar, as condições de solidariedade parecem estar proibidas.

É o que eu chamaria de hipercolonialismo, função dependente do semiocapitalismo: extração violenta de recursos mentais e de tempo de atenção em condições de desterritorialização.

Hipercolonialismo e migração. O próximo genocídio

Mas o hipercolonialismo não é apenas a extração do tempo mental, mas também o controle violento dos fluxos migratórios resultantes da circulação ilimitada de fluxos de informação.

Dado que o semiocapitalismo criou as condições para a circulação global da informação, em territórios distantes das metrópoles pode-se receber toda a informação necessária para se sentir parte do ciclo de consumo e do próprio ciclo de produção.

Primeiro você recebe a publicidade, depois um enorme acúmulo de imagens e palavras que buscam convencer todo ser humano da superioridade da civilização branca, da extraordinária experiência que representa a liberdade de consumo e da facilidade com que todo ser humano pode acessar o universo de bens e oportunidades.

A escravidão reaparece hoje de forma generalizada e onipresente graças à penetração do comando digital e da coordenação desterritorializada – Franco “Bifo” Berardi

Claro que tudo isto é falso, mas milhares de milhões de jovens que não têm acesso ao paraíso publicitário aspiram a colher os seus frutos. Ao mesmo tempo, as condições de vida nos territórios do Sul global tornaram-se cada vez mais intoleráveis, porque estão efetivamente piorando com as alterações climáticas, mas também porque enfrentam inevitavelmente as oportunidades ilusórias que o ciclo imaginário projeta na mente coletiva.

Assim, por necessidade e desejo, uma massa crescente de pessoas, especialmente jovens, desloca-se fisicamente em direção ao Ocidente, que reage a este cerco com medo, agressão e racismo. Por um lado, a infomáquina envia mensagens sedutoras e chama ao centro, de onde emanam fluxos de atração. Por outro lado, porém, aqueles que acreditam nisso e se aproximam da fonte da ilusão acabam num massacre.

A população do Norte global, cada vez mais idosa, pouco prolífica, economicamente em declínio e culturalmente deprimida, vê as massas migrantes como um perigo. Eles temem que os pobres da terra levem a sua miséria às metrópoles ricas. Eles são apresentados como a causa dos infortúnios sofridos pela minoria privilegiada: uma classe de políticos especializados em semear o ódio racial engana os velhos brancos, fazendo-os acreditar que se alguém pudesse acabar com aquela perturbadora massa de jovens que pressionam as portas da força, se alguém pudesse eliminá-las, destruí-las, aniquilá-las, então os bons tempos voltariam, a América seria grande novamente e a moribunda pátria branca recuperaria a sua juventude.

Na última década, a linha que divide o Norte do Sul, a linha que vai da fronteira entre o México e o Texas até ao Mar Mediterrâneo e às florestas da Europa Central e Oriental, tornou-se uma área onde está  se travando uma guerra infame: o coração negro da guerra civil mundial. Uma guerra contra pessoas desarmadas, exauridas pela fome e pelo cansaço, atacadas por policiais armados, cães farejadores, fascistas sádicos e, sobretudo, pelas forças da natureza.

Apesar dos anúncios de mercadorias brilhantes que encorajam os idiotas consumistas, e apesar da propaganda dos porcos neoliberais, a lógica do semiocapital funciona apenas de uma maneira: o Norte global infiltra-se no Sul através dos incontáveis ​​tentáculos da rede: uma ferramenta para capturar fragmentos de trabalho desterritorializado.

Mas a penetração física do Sul, que pressiona para aceder a territórios onde o clima ainda é tolerável, onde há água, onde a guerra ainda não chegou com toda a sua força destrutiva, é repelida pela força e pelo genocídio. Uma parte significativa, senão a maioria, da população branca decidiu entrincheirar-se na fortaleza e utilizar todos os meios para repelir a onda migratória. Os colonialistas de ontem – aqueles que nos séculos passados ​​atravessaram os mares para invadir os territórios das presas – clamam agora pela invasão porque milhões de pessoas estão a pressionar as fronteiras da fortaleza.

Na última década, a linha que divide o Norte do Sul tornou-se uma área onde é travada uma guerra infame: o coração negro da guerra civil global – Franco “Bifo” Berardi

Esta é a principal frente de guerra que se desenvolve desde o início do século e que se expande, assumindo por toda parte os contornos do extermínio. Não é a única frente de guerra: outra frente da caótica guerra mundial é a interbranca que confronta a democracia liberal imperialista com a soberania autoritária fascista.

A desintegração do Ocidente, e em particular da União Europeia, como resultado da guerra entre brancos, corre paralelamente à guerra genocida na fronteira: dois processos distintos entrelaçados no cenário da década dos anos 20.

Como sair vivo? Esta é a pergunta que todos os desertores se fazem.

É preciso se organizar para desertarmos juntos.

 Fonte:  https://www.ihu.unisinos.br/643651-hipercapitalismo-e-semiocapital-artigo-de-franco-bifo-berardi