segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Não basta ser mulher. Entrevista com Simone de Beauvoir

 A entrevista é de Alice Schwarzer, publicada por ctxt, 26-09-2024.

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Entre 1972 e 1982, a jornalista e feminista alemã Alice Schwarzer dialogou com Simone de Beauvoir, mantendo uma amizade com a filósofa até sua morte. Esta entrevista foi realizada em 1982 (quando Beauvoir tinha 74 anos) e faz parte do livro Conversas com Simone de Beauvoir, editado por Triscatela.

Eis a entrevista.

Após A cerimônia do adeus, você está preparando a publicação das cartas de Sartre. Vamos falar sobre a relação entre vocês, uma relação que, há várias gerações, constituiu e talvez continue constituindo, o modelo de relação sentimental que respeita a liberdade de cada pessoa. Mais de dois anos após a morte de Sartre, que outras coisas nos dirá essa correspondência? Sobre ele, sobre vocês?

Que era uma relação muito ternura e, ao mesmo tempo, muito alegre. Também cheia de confiança, tanto intelectual quanto emocionalmente. Penso, por exemplo, nas cartas que me escreveu Sartre durante a guerra. Quando estava prisioneiro (por sorte, esteve em boas condições – inclusive tinha um escritório) escreveu um prefácio a A idade da razão; eu o apreciava muito e, no entanto, após minha crítica, ele simplesmente rasgou. Em resumo, essas cartas mostram a influência que tive sobre ele como crítica, o que, além disso, era recíproco. A inspiração era, para ambos, algo pessoal. Mas depois, na fase de elaboração, cada um de nós era extremamente receptivo às críticas do outro. Ele também tinha muita confiança em mim em relação à sua vida amorosa: me contava tudo, até os detalhes...

Isso não o machucava?

Não. Porque tínhamos uma confiança total. Cada um sabia que, acontecesse o que acontecesse, o outro era a pessoa mais importante de sua vida.

Você nunca duvidou disso?

Sim. Uma vez. Escrevi em minhas Memórias. Por um momento duvidei, porque não conhecia a outra... Foi Dolores – a chamo de M. em minhas Memórias – entre 44 e 45, na América. A época da grande depressão no pós-guerra. Falava dela com tanto afeto e estima que me perguntei por um momento: ela não estará mais perto dele do que eu? Perguntei a ele e ele respondeu: "É contigo que estou!"

Essa posição privilegiada nunca foi questionada um pelo outro?

Não, nunca. Talvez porque Sartre era muito orgulhoso, pensava que nenhum homem seria um rival sério para ele...

Quando se lê A cerimônia do adeus, percebe-se que a Sartre não lhe importava muito o ato sexual. Eu supus, portanto, que sua relação nunca se baseou principalmente na sexualidade. É uma opção? Eliminou, ao menos, os ciúmes físicos? E a dolorosa reorientação uma vez que a atração sexual se extingue?

Talvez... É necessário acrescentar que também não havia ciúmes intelectuais: éramos orgulhosos demais, um e outro, para temer outros concorrentes. E, de fato, o ato sexual em si não interessava especialmente a Sartre, mas ele gostava de carícias. Para mim, o sexo com Sartre importou muito nos dois ou três primeiros anos – com ele descobri a sexualidade – mas depois perdeu importância, na medida em que, para Sartre, também não a tinha. Embora continuássemos mantendo relações sexuais por muito tempo, quinze ou vinte anos, não era o essencial.

Penso que o essencial era a relação intelectual entre vocês. Frequentemente se referem a você como "a grande sartreana", a "primeira discípula de Sartre": o que você opina sobre essa interpretação?

Penso que é falso. Arquifalso! É verdade que em filosofia ele era um criador e eu não, mas há muitos homens que também não o são! Eu reconhecia sua superioridade nesse campo. Assim, no que diz respeito à filosofia, eu era efetivamente discípula de Sartre, uma vez que me aderi ao existencialismo. Discutimos muito sobre O ser e o nada: me opus a algumas de suas ideias, e às vezes isso fez com que ele mudasse um pouco o rumo.

Por exemplo?

Em uma primeira versão de O ser e o nada, ele falava da liberdade como se fosse quase total para todos. Ou, pelo menos, que sempre era possível exercer a liberdade. Eu, ao contrário, insistia que há situações em que a liberdade não pode ser exercida ou é apenas uma mistificação. Ele me deu razão, e por isso passou a dar muito mais importância à situação em que se encontra o ser humano.

Isso foi entre 1941 e 1942, antes de seu encontro com o marxismo...?

Sim.

E o que você fazia naquela época?

Não dependia de Sartre, na medida em que escrevia meus próprios livros, minhas próprias novelas. Apostei na literatura. Mesmo O segundo sexo, que tem um fundo filosófico – o existencialismo sartreano – é uma criação total: reflete minha visão da mulher. É assim que eu a vivia.

Como se consegue mesmo com alguém como Sartre – intelectual e humanamente muito atraente – não cair na armadilha de querer ser "sua" esposa? Uma criatura relativa que se contentava em estar ao seu lado? Quais foram os fatores determinantes para que você levasse uma vida autônoma?

A marca que deixaram os primeiros anos da minha vida. Sempre quis ter uma profissão. Queria escrever muito antes de conhecer Sartre. E eu tinha sonhos – não fantasias: sonhos, desejos, até voluptuosos – bem definidos, muito antes de conhecê-lo. Portanto, para ser feliz, eu tinha que realizar minha vida. E a realização, para mim, chegou antes de tudo através do trabalho.

E qual foi a atitude de Sartre?

Ele foi o primeiro a me estimular. Depois de passar nos exames – havia trabalhado muito – queria relaxar um pouco, desfrutar da felicidade, do amor de Sartre... Foi ele quem me disse: "Mas, veja, Castor, por que você não reflete mais? Por que não trabalha mais? Queria escrever! Não quer se tornar uma dona de casa, certo?". Insistiu muito que eu deveria conservar minha autonomia. Especialmente através da obra literária.

Se não a tivesse conhecido, provavelmente Sartre teria acabado em uma estrutura matrimonial muito convencional...

Sartre casado? Ele teria se entediado preso, isso é certo. É verdade que teria sido muito fácil enganá-lo. A má consciência... Mas rapidamente se desfazia dela.

E no seu caso, a má consciência, você conheceu esse sentimento de culpa tão espalhado entre as mulheres?

Não, nunca tive má consciência nesse sentido. De vez em quando sentia remorsos, quando rompia amizades brutalmente. Sobre isso nunca estive muito orgulhosa. Mas, em geral, tenho uma boa consciência – às vezes é quase inconsciência, creio.

Em geral, me parece que você é alguém que não pensa muito em si mesma.

É verdade. Não aplico demais minhas análises à minha própria pessoa. É um processo que me é estranho.

Jean Genet disse uma vez, ao falar de sua parceira, que você era o homem e Sartre a mulher. O que queria dizer com isso?

Queria dizer que, em sua opinião, Sartre tinha uma sensibilidade mais rica que a minha, uma sensibilidade que poderia ser qualificada de "feminina", enquanto eu tinha, segundo ele, modos mais bruscos. Mas essa reflexão de Genet também tem muito a ver com sua própria relação com as mulheres: ele não gosta muito...

Mas em parte é verdade que você tem um lado "arisco", você mesma o reconhece. E essa energia, essa agudeza intelectual, essas expressões gélidas quando não gosta de alguém ou de algo... É uma pessoa muito radical.

Sim, é verdade.

Conheço muitos casos em que uma mulher que se arroga o direito de mostrar sua inteligência, sua firmeza de caráter, é penalizada. A reação de seu entorno é: "Você é comparável a um homem? Então não é desejável como mulher!". Você já experimentou isso?

Não.

Então, você nunca teve a tentação de compensar suas maneiras "masculinas" jogando de "mocinha"?

Oh, não, nunca! Eu trabalhava e além disso tinha Sartre. Se as coisas tinham que acontecer, aconteciam, mas eu não as perseguia. Quando, nos Estados Unidos, me apaixonei por Algren – a mudança de ares, além de seu encanto e todas as suas qualidades – não tive que fingir ser algo distinto do que sou. Ele também se apaixonou por mim.

Para você, o desejo sempre esteve ligado aos sentimentos?

Sim, acho que sim. Além disso, nunca desejei um homem que não me desejasse. Foi mais o desejo do outro que me atraiu.

Cautela...

Sim. Pode ser que tenha tido fantasias às vezes. Mas, na realidade, nenhum homem me tocou se não éramos já grandes amigos.

Nada de "sexualidade anônima"?, de desejo puramente físico, satisfeito com qualquer um?

Oh, não, isso jamais! Não tem nada a ver comigo. Talvez seja puritanismo, o resultado da minha educação, mas nunca, jamais me aconteceu. Nem mesmo nos períodos em que não tinha um amante, que não tinha nenhuma atividade sexual. Nunca me ocorreu ir buscar um homem.

É "feminina" essa reserva?

Não sei.

Quando fala de sua sexualidade, só fala de homens. Você nunca teve uma relação com uma mulher?

Não.

Mas poderia ter tido, por exemplo?

Sim, talvez. Não sou uma monogâmica no sentido que a sociedade ocidental lhe dá. Não me coloco, portanto, como um modelo de fidelidade, mas com a condição de que não se trate de um amor convencional. Não poderia ter um amor convencional: isso me repele.

Mas, em teoria, a homossexualidade lhe parece uma ideia aceitável? Mesmo para você?

Totalmente. Totalmente aceitável. As mulheres não devem estar condicionadas apenas pelo desejo dos homens. Principalmente porque, na minha opinião, todas as mulheres de hoje em dia são um pouco... um pouco homossexuais. Simplesmente porque as mulheres são mais desejáveis do que os homens.

Como assim?

Elas são mais bonitas, mais doces, a pele é mais agradável. Em geral, têm mais charme. É muito comum, em um casal normal, que a mulher seja mais atraente, até mesmo intelectualmente. Mais viva, mais atraente, mais divertida.

Isso não é um pouco sexista?

Não. Porque isso também se deve às diferentes condições dos sexos, às suas diferentes realidades. Os homens de hoje muitas vezes têm esse lado um tanto grotesco do qual Sartre também se queixava: essa maneira de se exibir desenvolvendo grandes teorias, essa falta de plasticidade, de sutileza.

Certo. Mas as mulheres também têm seus defeitos. E ultimamente até voltaram a se orgulhar deles. Na Alemanha – e também em outros lugares – estamos assistindo a um renascimento da 'feminidade'. A chamada 'nova feminidade' (que na verdade não é outra coisa senão a antiga) com um retorno ao estereótipo e ao 'papel feminino' tradicional: elogio da afetividade em vez da inteligência, a tranquilidade 'natural' em vez da vontade de luta, a mitificação da maternidade como um ato criativo em si mesmo, etc. Você escreveu em O segundo sexo: 'Uma mulher se faz, não nasce'. Como você reage a esse retorno de algumas mulheres a uma 'natureza feminina'?

Acho que isso é voltar a escravizar as mulheres! A maternidade continua sendo a melhor forma de fazê-lo. Não quero dizer que toda mulher que é mãe seja automaticamente uma escrava: pode haver condições de vida em que a maternidade não seja escravidão. Mas, em geral, hoje em dia, isso ainda é assim. Enquanto se considerar que a principal tarefa das mulheres é ter filhos, elas não se envolverão na política, na tecnologia... e não disputarão a supremacia dos homens. Reviver a mística da maternidade, o 'eterno feminino', é tentar retroceder a mulher ao seu antigo status.

E isso é muito conveniente em tempos de crise econômica mundial.

Exatamente. Como não podemos dizer às mulheres que é uma tarefa sagrada lavar panelas e frigideiras, dizemos: é uma tarefa sagrada criar um filho. Mas no mundo atual, criar os filhos não é diferente de lavar panelas: obriga a mulher a ficar em casa. É uma forma de fazê-la retornar à posição de um ser relativo, de segunda classe.

Então o feminismo falhou em parte?

Acho que, de fato, o feminismo, até agora, só chegou a um pequeno número de mulheres. Algumas ações chegaram a muitas, como, por exemplo, a luta pelo direito ao aborto, mas hoje em dia, o feminismo representa, aos olhos de muitas pessoas, uma certa ameaça, por causa do desemprego e por questionar os privilégios masculinos. Assim, revive-se o estereótipo que permanece vivo na profundidade da maioria das mulheres: elas continuam sendo, em sua maioria, mulheres-mulheres... Retorna-se a dar um certo valor ideológico à feminilidade, que é usada para tentar restabelecer a imagem – destruída pelo feminismo – da 'mulher normal', relegada, submissa, etc. Uma imagem que suscita muita nostalgia e que nos esforçamos em reviver.

Uma pergunta para a existencialista e a marxista: o que acontece com a liberdade das mulheres nas circunstâncias atuais? Onde podem atuar e quais são os limites com os quais inevitavelmente nos encontraremos? Qual é o caminho, a estratégia para sair do círculo infernal da 'feminidade'? Nós, feministas, cometemos erros?

É difícil dizer. Já é bom ter feito algo. E as circunstâncias não eram nada favoráveis... Mas é verdade que, muito no início do movimento, houve coisas que não eram muito boas. Por exemplo, a rejeição de algumas mulheres a tudo que provinha dos homens. O desejo de não fazer nada 'como os homens': a rejeição de se organizar, de trabalhar, de criar, de agir. Sempre pensei que devemos pegar as ferramentas das mãos dos homens e usá-las. Sei que as feministas estão muito divididas sobre o caminho a seguir. As mulheres devem ocupar cada vez mais postos, competindo com os homens? Isso implicaria, sem dúvida, adquirir alguns de seus defeitos, assim como suas qualidades. Ou deveria ser totalmente rejeitada essa via? No primeiro caso, conseguem mais poder. No segundo caso, se reduzem à impotência. Claro, se se trata de tomar o poder e exercê-lo da mesma maneira que os homens... não será assim que se mudará a sociedade. Na minha opinião, o verdadeiro projeto das feministas só pode ser mudar a sociedade e o lugar das mulheres nela.

Você mesma escolheu o primeiro caminho: escreveu e criou 'como um homem'. E, ao mesmo tempo, tentou mudar o mundo.

Sim, e essa dupla estratégia me parece o único caminho. Não é necessário recusar as chamadas qualidades masculinas! É preciso correr o risco de se misturar com o mundo dos homens, que é, em grande parte, o mundo puro. Claro, tomar esse caminho também implica o risco de trair outras mulheres, de trair o feminismo. Acredita-se que se escapou... Mas seguir o outro caminho implica o perigo de sufocar-se na 'feminidade'.

Em ambos os caminhos, muitas mulheres experimentaram rejeição e humilhação.

Eu tive a sorte de nunca ter sido humilhada. Não sofri por ser mulher. Embora – como escrevi no prefácio de O segundo sexo – me incomode muito ouvir: 'Você pensa assim porque é uma mulher'. Sempre respondo: 'Isso é ridículo; você pensa isso porque é um homem?'.

Sobre a literatura. Atualmente existe uma controvérsia entre as feministas: devemos fomentar a quantidade ou a qualidade? Ou seja, devemos ser tão rigorosas, tão críticas com as mulheres quanto somos com os homens? Ou devemos, ao contrário, nos alegrar simplesmente pelo fato de que escrevem?

Acho que é preciso saber dizer não. Mesmo para as mulheres. Não, isso não está certo! Escreva algo mais, tente melhorar! Seja mais exigente consigo mesma. Não basta ser mulher. Recebo muitos manuscritos de mulheres que escrevem na esperança de serem publicadas. Elas são donas de casa de quarenta ou cinquenta anos, sem profissão, os filhos saíram de casa, têm tempo... Muitas mulheres começam a escrever nesse momento. Normalmente, é uma história autobiográfica, quase sempre sobre uma infância infeliz. E acreditam que isso é interessante... Expressar as coisas por escrito pode ter uma função importante para a saúde mental, mas isso não significa que deva ser obrigatoriamente publicado. Não, acho que as mulheres têm que ser muito exigentes consigo mesmas.

A existência do movimento feminista mudou algo para você a nível pessoal?

Me tornou mais sensível aos detalhes, a esse sexismo cotidiano que passa quase despercebido porque parece tão 'normal'. Um grupo de feministas parisenses tem escrito há alguns anos para Les Temps modernes sobre esse 'sexismo cotidiano' que eu não havia percebido antes.

Antes de existir o Movimento, você dizia 'elas' ao falar das mulheres. Agora diz 'nós'.

Para mim, não significa 'nós as mulheres', mas 'nós as feministas'.

A palavra 'feminismo' se tornou uma moeda muito inflacionada. Por exemplo, na Alemanha ocidental, o poderoso movimento pacifista conta com um certo número de mulheres que se declaram feministas: como 'mães que querem salvar o mundo do amanhã para seus filhos', como 'mulheres, portadoras de vida', ou como 'mulheres, por natureza mais pacíficas que os homens'. Que seriam, portanto, destrutivas 'por natureza'...

Isso é absurdo! Absurdo, porque as mulheres têm que lutar pela paz como seres humanos e não como mulheres. Esse tipo de argumento não faz sentido: afinal, se as mulheres são mães, os homens também são pais. Além disso, as mulheres se apegaram até agora demais ao seu papel procriador, 'maternal': isso ainda é cair na mistificação do papel feminino. Isso não é o que deve ser promovido. As mulheres pacifistas, assim como os homens, podem dizer não ao sacrifício das gerações jovens, mas não porque sejam pessoalmente mulheres ou mães. Em resumo, deveriam abandonar totalmente essa parafernália. Mesmo se – e precisamente porque – são incentivadas a se unir aos movimentos pacifistas em nome de sua feminilidade ou maternidade. É simplesmente uma artimanha dos homens para devolvê-las a seus próprios úteros! Além disso, as mulheres com poder não se comportam de forma diferente dos homens. Podemos ver isso com Indira Gandhi, Golda Meir, a senhora Thatcher, etc. Elas não se transformam de repente em anjos da misericórdia e da paz.

Desde o final da Segunda Guerra Mundial, você e Sartre foram intelectuais comprometidos, militando apaixonadamente – através de seus escritos e atos – na proteção do meio ambiente, por mais justiça e liberdade no mundo. Depositaram certas esperanças na revolução, na URSS, na China, em Cuba... e experimentaram decepções. Os crimes cometidos em nome da França durante a guerra da Argélia a afetaram pessoalmente, como você descreve em suas Memórias. Você falou publicamente, e com muito valor, pela descolonização, e chorou noites inteiras por estar 'envergonhada de ser francesa'. E hoje? O que você pensa sobre a evolução política do mundo em geral e da França em particular? Você votou em Mitterrand?

Sim. Porque trouxe um pouco mais de justiça. Mais impostos para os ricos e melhores pensões para os pobres. Também do ponto de vista feminista houve alguns avanços. Yvette Roudy é uma ministra com orçamento. Ela concede muitos créditos às mulheres e especialmente às feministas que foram capazes de fundar centros de pesquisa ou revistas. Ela fez campanha a favor da contracepção e está trabalhando para que se aplique realmente a lei Veil sobre a interrupção voluntária da gravidez. Inclusive se fala que o aborto seja financiado pela Segurança Social. Quanto ao resto... sinceramente, também não esperava milagres. Ninguém espera, especialmente com a atual crise econômica... Este governo socialista precisa ser muito moderado e prudente, porque do contrário terá que enfrentar uma revolução. E isso não é o objetivo atual. Também não quero uma revolução violenta e sangrenta, pelo menos não por agora. O preço seria alto demais. Não se trata de mudar a ordem mundial de cima para baixo, simplesmente, na França, melhorar um pouco a sociedade como ela é.

Nesta entrevista falamos tanto sobre homens que, para terminar, gostaria de mencionar a mulher que esteve perto de você por quase dez anos e hoje, após a morte de Sartre, é sem dúvida a pessoa mais querida para você. Refiro-me a Sylvie Le Bon, de 39 anos, professora de filosofia na Universidade de Paris. São raras as grandes amizades entre mulheres...

Não tenho tanta certeza. Existem muitas amizades entre mulheres que duram, enquanto os amores passam... Em contrapartida, entre os homens, creio que as verdadeiras amizades são extremamente raras. As mulheres entre si dizem muitas coisas.

Fonte:  https://www.ihu.unisinos.br/644150-nao-basta-ser-mulher-entrevista-com-simone-de-beauvoir

domingo, 29 de setembro de 2024

Política está mais perto da irracionalidade religiosa do que da ação racional

Luiz Felipe Pondé*

A ilustração de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual com tinta nanquim e pincel sobre papel branco. Depois a ilustração foi escaneada e colonizada digitalmente em cor de papel craft de fundo e tons de vermelho, azul e laranja em partes das imagens. 
Na horizontal, proporção 13,9cm x 9,1cm, a ilustração apresenta, em construção de tramas, texturas e traços, uma composição com duas figuras estilizadas co fios de contorno preto, na mesma posição de lateral, da cintura para cima, uma de frente para a outra, com as mãos apontando com o dedo indicador na mesma direção a frente. Fios e traços se cruzam e se sobrepõem, a partir de suas visões, que estão voltadas de uma figura para o outra.
 Ilustração de Ricardo Cammarota para a coluna do Pondé do dia 30 de setembro de 2024 - Ricardo Cammarota/Folhapress

Vivemos em estruturas míticas quando praticamos política, o que se traduz em narrativas que opõem bem e mal

O terrorismo tecnológico entrou no nosso quotidiano

 Luis Vidigal*

Pagers do Hezbollah explodem após serem adulterados – TVBV ONLINE

Explosivos foram implantados nos equipamentos eletrônicos. 
Imagem: Reprodução Telegran.

As novas ameaças ocultas e subliminares

Enquanto o terrorismo convencional é caracterizado por ataques físicos, o terrorismo tecnológico é mais alargado, ao utilizar as inovações tecnológicas como armas para causar destruição, medo e desestabilização, com recurso a ciberataques a infraestruturas críticas e adulteração de dispositivos quotidianos, transformando-os em armas letais, como foi o caso das explosões de pagers israelitas no Líbano.

No mundo hiperconectado de hoje, os ataques a infraestruturas críticas, como redes elétricas, sistemas bancários, hospitais e redes de transporte, são uma das maiores preocupações atuais, através de malware ou técnicas de hacking, em que terroristas digitais podem causar interrupções graves de infraestruturas, que afetam a vida de milhões de pessoas.

Os pagers adulterados que foram utilizados no Líbano, enquanto dispositivos de comunicação anteriores aos telemóveis, aparentemente inofensivos e mais seguros, foram transformados por Israel em armas letais e alertaram-nos para um novo terrorismo particularmente preocupante, porque poderá estar oculto em objetos quotidianos e insuspeitos, o que torna muito difícil identificar as ameaças antes que os ataques aconteçam.

A manipulação dos pagers demonstrou que qualquer dispositivo, por mais banal que seja, pode ser usado como arma terrorista, para criar um ambiente de medo, mas neste caso o ataque é especialmente insidioso, pois explora a confiança que os utilizadores têm nas tecnologias que fazem parte do seu quotidiano.

As operações de sabotagem que envolvem a manipulação de produtos tecnológicos comercializados globalmente criam um problema de confiança nas cadeias de fornecimento, por isso os governos e as indústrias terão de implementar medidas mais rigorosas de segurança em todas as fases de produção e distribuição de dispositivos eletrónicos, para impedir a adulteração de produtos, através de auditorias regulares para garantir que os produtos não sejam adulterados antes de chegarem ao mercado.

As redes sociais desde há muito que também podem ser consideradas armas terroristas, por serem capazes de radicalizar indivíduos e grupos de forma subliminar, sem levantar suspeitas, pois podem espalhar o pânico e a desinformação em larga escala, para afetar a opinião pública, manipular eleições ou causar o caos em tempos de crise.

O terrorismo tecnológico levanta novas questões geopolíticas, à medida que as fronteiras entre o mundo digital e o mundo físico se tornam mais difusas, onde governos, empresas e cidadãos estão cada vez mais vulneráveis a ataques que podem ser lançados a partir de qualquer parte do mundo, sem necessidade de presença física.

Trata-se de uma das ameaças mais graves e imprevisíveis do século XXI e por isso a luta contra o terrorismo tecnológico não pode ser feita isoladamente, pois os países precisam de colaborar e partilhar informações sobre ameaças globais à segurança tecnológica.

À medida que a tecnologia continua a evoluir e a tornar-se parte integrante das nossas vidas, os riscos associados ao seu uso malicioso também aumentam. Casos como as explosões de pagers no Líbano servem como um alerta para a vulnerabilidade das nossas infraestruturas tecnológicas e para a necessidade de uma vigilância constante.

* Representante da sociedade civil na Rede Nacional de Administração Aberta. Consultor internacional de e-Government

 Fonte: https://www.dn.pt/1737328242/o-terrorismo-tecnologico-entrou-no-nosso-quotidiano/ 

O Homem: questão para si mesmo. 8. Uma identidade em processo

 Anselmo Borges*

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Antropologia, o estudo do Homem, é uma tarefa sem fim. De facto, o ser humano não pode definir-se de uma vez por todas. Nem sequer há definição possível, pois ele é uma abertura ilimitada: por mais que diga de si, nunca se diz plena e adequadamente.

A pergunta pelo Homem convoca todas as disciplinas. Não é ele, de facto, como bem viram Aristóteles e São Tomás de Aquino, de algum modo todas as coisas? Quando questionamos: “O que é que eu sou? Quem sou eu?”, é necessário apelar para o concurso das ciências da natureza, da cosmologia, da física, da química, da paleontologia, da embriologia, da neurologia, da etologia, da medicina, da linguística, da sociologia, da sociobiologia, da história, das artes, da economia, das ciências políticas e jurídicas, da filosofia, da teologia...

O meu ilustre amigo, Juan Masiá, professor na Universidade Sophia, em Tóquio, apresentou a questão numa bela síntese. Pode-se tentar uma Antropologia Filosófica partindo de algumas afirmações de base. Assim:

Eu sou eu a partir da natureza, mas precisamente deste modo: provenho da natureza, mas transcendo a natureza: em mim, a natureza e a sua história sabem de si. Impõe-se, pois, o diálogo com as ciências da natureza e as filosofias personalistas.

Eu sou eu na minha circunstância (Ortega y Gasset). Portanto, eu sou no mundo, eu sou espácio-temporalmente, ao mesmo tempo que transcendo e tento sempre transcender o espaço e o tempo. Neste âmbito, são imprescindíveis os contributos das antropologias culturais, da sociologia, das psicologias evolutivas, da história, da linguística.

Eu sou eu a partir do meu corpo, mas de tal modo que nunca sei adequadamente quem sou. Como é que de um corpo acabado de nascer vai emergindo um eu, como é que o corpo se faz um sujeito que vai lentamente tomando consciência de si? Neste quadro, dialoga-se com as antropologias biológicas, com as fenomenologias existenciais.

Eu sou eu a partir de mim e perante a realidade. Eu sou eu, mas de tal modo que o segundo eu exprime a possibilidade que uma pessoa tem de auto-objectivar-se e reconhecer-se. O ser humano afirma-se a si mesmo na reflexão. E não é um mero animal de instintos, pois vive na realidade: é um animal de realidades, como sublinhava o filósofo Xavier Zubiri, distinguindo entre o imaginário, o que é objecto de desejo e o real. Apesar dos seus limites, encontraremos aqui concretamente as antropologias racionais e reflexivas.

Eu não sou eu de modo fixo, dado de uma vez para sempre, pois eu vou sendo eu, ao sair de mim. A partir do material genético que recebi dos meus pais e sempre condicionado por ele, eu, se fosse educado noutro lugar e em circunstâncias diferentes, noutro ambiente, se fosse encontrando outras pessoas ao longo da vida, seria o mesmo? A resposta é: sim e não, pois seria eu, mas de outro modo.

A identidade pessoal constrói-se e afirma-se na liberdade, mas a partir de uma herança tanto genética como cultural, e isto num processo histórico sempre aberto: cada um de nós é uma estrutura em permanente desestruturação para uma nova configuração: faço-me, desfaço-me, refaço-me... A pessoa não é encerrando-se em si mesma; pelo contrário, é saindo de si que vem a si e se encontra. O ser humano só é na relação, vivendo mesmo este paradoxo: só porque é abertura a tudo é que é intimidade pessoal e única, e experiencia-se enquanto liberdade, ainda que sempre liberdade em situação. Aqui, entram os contributos das psicologias evolutivas e sociais, das filosofias do conhecimento, do amor, da práxis, da história.

Eu não sei se sou eu. Serei eu? Acontece por vezes o ser humano olhar para o que fez e perguntar: fui eu que fiz isto? como foi possível?, aí não era eu. É, pois, inevitável o confronto com os desafios da psicanálise, dos estruturalismos, das neurociências, da sociobiologia.

Eu ainda não sou eu, mas vou-me tornando eu e sou mais do que eu, eu sou o que serei para lá de mim. O Homem é um ser temporal, vai-se fazendo historicamente. O ser humano é simultaneamente um ser que sabe da sua morte inexorável e que constitutivamente espera para lá da morte. Ele não é ainda, vai sendo e quer ser em plenitude: espera, assim, a sua realização para lá da história intramundana. A antropologia desemboca assim em perguntas pela ultimidade, que são questões da constituição metafísica do real e da conexão entre ética, esperança e religião.

Aqui chegados, é ainda necessário reconhecer que estas afirmações-perguntas formuladas na primeira pessoa do singular têm de apresentar-se no plural, pois o Homem só é real e autenticamente na relação, a identidade individual implica a identidade social e histórica e planetária e cósmica. Afinal, em cada ser humano está presente a realidade toda. Da identidade de cada ser humano faz parte a humanidade inteira - lá estão, de novo, Aristóteles e São Tomás: anima est quodammodo omnia (a alma, o ser humano, é de algum modo tudo).

Por todas estas razões, o Homem é sobretudo, para lá de tudo, o ser da pergunta, no sentido radical, dito no étimo da palavra - perguntar vem do latim: percontare, que contém contus, um pau comprido com o qual se remexe um tanque até ao fundo (o que há lá no mais fundo?). De pergunta em pergunta, o Homem vai até ao infinito e pergunta ao infinito pelo infinito, ou seja, por Deus, já que a pergunta pelo sentido global da existência é constitutiva e inevitável.

*Padre e professor de Filosofia em Portugal

Fonte:  https://www.dn.pt/8347877351/o-homem-questao-para-si-mesmo-8-uma-identidade-em-processo/

O fim das ilusões

Germano Almeida - Especialista em Política Internacional

No seu mais recente livro - Autocracia, Inc. - Os Ditadores que Querem Governar o Mundo - Anne Applebaum vai ao ponto: “As autocracias trabalham em conjunto para destruir o mundo democrático. É nosso dever organizarmo-nos para as derrotar.”

Estamos num momento crucial para sabermos se as democracias vão mesmo estar à altura de se protegerem da ameaça existencial que nos está a ser colocada - ou, sequer, se conseguiremos perceber o que já está em causa.

No livro, a jornalista e historiadora norte-americana - casada com o atual chefe da diplomacia polaco, Radoslaw Sikorski - lança um apelo para que as democracias reorientem fundamentalmente as suas políticas para combater este novo tipo de ameaça: “Todos temos em mente uma noção de como é um Estado autocrático: há um líder todo-poderoso no topo e esse líder controla a polícia. A polícia ameaça as pessoas com o uso de violência. E inclui colaboradores malignos e talvez alguns dissidentes corajosos. Mas, no século XXI, a realidade já não é essa. Hoje em dia, as autocracias não são sustentadas por um ditador, mas por redes sofisticadas compostas por estruturas financeiras cleptocráticas, tecnologias de vigilância e propagandistas profissionais, que operam em vários regimes, desde a China à Rússia ou ao Irão. As empresas corruptas de um país fazem negócios com as empresas corruptas de outro. A polícia de um país pode treinar a polícia de outro e fornecer-lhe armamento. Os propagandistas partilham recursos e temas, transmitindo as mesmas mensagens sobre a fraqueza da democracia e os males da América.”

Para liderar este combate existencial para as democracias liberais ainda não há alternativa real aos Estados Unidos da América. E continua a ser fundamental saber quem ocupa a Casa Branca. O poder do presidente dos EUA, mesmo tendo limitações contraproducentes no plano da aplicação da política interna, sobretudo em situações de Congresso dividido ou politicamente hostil, tem um grande arco de exploração no plano da política externa.

No caso da resistência ucraniana à agressão ilegal, criminosa e não-provocada da Rússia, trata-se de sabermos se a invasão em larga escala iniciada a 24 de fevereiro de 2022 terminará numa vitória da Rússia imperialista a engolir boa parte da Ucrânia, colocando-se perigosamente às portas da UE ou, em alternativa, se for conseguida uma vitória da Ucrânia como país íntegro, soberano e capaz de tomar livremente as suas opções geoestratégicas e geopolíticas (como poder entrar na UE e na NATO).

Ou seja: ou uma Rússia imperial a ameaçar em definitivo o projeto europeu, ou uma Ucrânia democrática e pró-europeia às portas da Rússia.

Um momento absolutamente definidor

Basta ler os sinais do encontro de Trump com Zelensky. Antes ainda da conversa, realizada na Trump Tower, o candidato presidencial republicano disse que se dava bem com o presidente ucraniano, “do mesmo modo que me dou bem com o presidente Putin”. Zelensky ainda engoliu em seco e, segundos depois, atirou: “Bom, espero que se dê melhor connosco…” Trump retaliou, sem facilitar: “Bem, é preciso dois para dançar o tango.”

Foi um momento absolutamente definidor.

Até agora, ainda havia quem quisesse ver nas contradições de Trump em relação ao tema: atacou Zelensky em contexto de campanha eleitoral, mas dois dias depois recebeu-o e disse que isso era “uma honra”; anda há dois anos a dizer que é preciso acabar com a guerra num instante, mas terá dado luz verde a Mike Johnson para a aprovação em abril passado, no Congresso, do mais robusto pacote de ajuda à Ucrânia.

Mas não vale mesmo a pena continuar a alimentar ilusões ou querer cair em ambiguidades de linguagem: se Trump ganhar em novembro, a Ucrânia já sabe que deixa de contar com os EUA para a defender verdadeiramente. É importante que tenhamos consciência disso, em vez de insistirmos em fazer o papel de “idiotas úteis”, como tanta gente tem feito em relação a Trump ao longo destes anos, dando-lhe um benefício da dúvida que ele, manifestamente, não merece.

Estamos num momento de necessidade de clareza: Donald Trump vai preferir estar do lado das autocracias, não hesitará em deixar cair a Ucrânia e não terá o menor pejo em deixar a Europa exposta ao urso russo.

Por muito que Zelensky tenha jurado, no final, que foi “uma reunião muito produtiva”, fica cada vez mais claro o que Trump se prepara para fazer se voltar à Casa Branca: “Se vencermos, vamos resolver isto, a guerra, muito rapidamente.”

"Concordámos que devemos acabar com a guerra na Ucrânia”, declarou Zelensky ainda antes da reunião. Mas terá sido mais um… concordar em discordar. Trump fez questão de não mostrar grande empatia com Zelensky e o foco em dizer que é amigo de Putin é simplesmente lamentável. “Esta guerra não deveria ter começado”, ripostou Zelensky. “Penso que o problema é que Putin matou tantas pessoas e, claro, precisamos de fazer tudo para pressioná-lo a parar esta guerra. Ele está no nosso território, isso é o mais importante de perceber, ele está em território nosso.”

Recuemos uns dias para perceber o que se passou na Geórgia

Em comício na Geórgia, na passada terça-feira, dois dias antes do encontro acima referido, Trump falou sobre a Ucrânia de um modo que retira qualquer ilusão sobre o que conta fazer se regressar à Casa Branca. Rotulou Zelensky de “grande vendedor”, alguém que, “sempre que cá vem aos EUA, sai daqui com mais alguns biliões de dólares garantidos”. Uma forma miserável de se referir à ajuda fundamental que os Estados Unidos estão a dar à resistência ucraniana ao invasor russo. “O Biden e a Kamala meteram-nos nesta guerra na Ucrânia, e agora não nos conseguem tirar. Eles não nos conseguem tirar.”

Trump insistiu: “Acho que estamos presos nessa guerra a não ser que eu seja presidente. Eu vou fazê-lo. Eu vou negociar, eu vou sair. Temos de sair. O Biden diz que não saímos até ganhar. O que acontece se eles ganharem.”

Este tipo de posição agrava a ideia de que o destino da Ucrânia está mesmo dependente dos eleitores indecisos dos swing states norte-americanos. Se Trump voltar a ser presidente, o maior apoiante da Ucrânia vai passar a ser liderado por alguém que está disposto a entregar Kiev a um acordo que tem tudo para premiar o agressor e punir o agredido.

É isto que está verdadeiramente em causa. Quem ainda não percebeu que acorde.

Escalada no Médio Oriente pode beneficiar Trump

O agravar da situação no Médio Oriente, com uma guerra que parece iminente entre Israel e o Hezbollah, e uma mais que provável incursão terrestre israelita no Sul do Líbano, é tema que certamente vai implicar contágio nesta reta final da eleição americana.

O discurso tremendista, a roçar o apocalíptico, de Trump pode, neste contexto, capitalizar: Donald tem dito que, “com Kamala na Casa Branca, Israel acabaria em dois anos”; tem acusado Biden de fraqueza nestes temas e de permitir que, nos seus anos de presidência, tenham ocorrido várias guerras. Trump surge como “o salvador de Israel”, com ele haveria condições para o Governo de Netanyahu “resolver as coisas rapidamente”.

Kamala, no oposto, fica numa situação complicada: como segurar o voto da esquerda anti-Israel e pró-Palestina mantendo o discurso de “os EUA vão sempre fazer tudo para garantir a segurança de Israel”?

Fonte:  https://www.dn.pt/2809830978/o-fim-das-ilusoes/

sábado, 28 de setembro de 2024

Ao matar Nasrallah, Israel escolheu abrir as portas do inferno. Todos nós pagaremos o preço.

Por Jonathan Cook*

O Hezbollah confirmou que seu líder de longa data, Hassan Nasrallah, estava entre as centenas de libaneses mortos no bombardeio maciço de Israel em um subúrbio de Beirute na noite passada.

A decisão de Israel de assassinar Nasrallah, usando algumas das enormes bombas destruidoras de bunkers com as quais os Estados Unidos o têm armado, é muito mais do que imprudente. É totalmente insana. Israel removeu – e sabe que removeu – uma influência moderadora sobre o Hezbollah.

A ação de Israel não trará nenhum resultado além de ensinar várias lições ao seu sucessor e aos líderes de outros grupos e países rotulados como terroristas pelos governos ocidentais:

* Que Israel, e o Ocidente que o apoia firmemente, não seguem nenhuma regra de engajamento conhecida e que seus oponentes devem fazer o mesmo. A atual restrição do Hezbollah, que tanto tem confundido os especialistas ocidentais, se tornará uma coisa do passado.

* Que Israel não está interessado em compromisso, apenas em escalada, e que essa é uma luta até a morte – não apenas contra Israel, mas contra o Ocidente que patrocina Israel.

* Que o extremismo ideológico de Israel – seu supremacismo judaico e seu desejo interminável de Lebensraum – deve ser enfrentado com um extremismo ainda maior de inspiração xiita.

Décadas de terrorismo ocidental no Oriente Médio desencadearam um niilismo sunita incorporado primeiro na Al-Qaeda e depois no ISIS.

Agora, o Ocidente, por meio de Israel, está fomentando para a resistência xiita seu próprio momento de ISIS. Os moderados do que o Ocidente chama de “organizações terroristas” mais uma vez perderam a discussão. Por quê? Porque o projeto imperial dos EUA conhecido como “o Ocidente” demonstrou mais uma vez que não fará concessões. Ele exige o domínio global de espectro total – nada menos que isso.

Israel pode obter ganhos táticos muito curtos ao matar Nasrallah. Mas, em breve, todos nós sentiremos o redemoinho.

Quando esse redemoinho chegar, o trabalho de nossos políticos e da mídia será garantir que não façamos nenhuma conexão entre esse momento de selvageria e insanidade de nossa parte e a reação.

O papel das instituições ocidentais será o de se fazer de vítima, insistir que “eles nos odeiam devido a nossas liberdades”, por nossa superioridade civilizacional, porque “eles” são simplesmente bárbaros.

Mas o que virá depois, assim como o que veio antes, será totalmente previsível. A violência não gera calma, ela gera mais violência. Israel sabe disso. Nossos líderes sabem disso. Mas eles abriram as portas do inferno mesmo assim.

*jornalista britânico premiado. Ele foi baseado em Nazaré, Israel, por 20 anos. Ele retornou ao Reino Unido em 2021. Ele é autor de três livros sobre o conflito Israel-Palestina:Sangue e Religião: O Desmascaramento do Estado Judeu (2006), Israel e o Choque das Civilizações: Iraque, Irã e o Plano para Refazer o Oriente Médio (2008). Desaparecimento da Palestina: Experimentos de Israel em desespero humano (2008)

Fonte:  https://desacato.info/ao-matar-nasrallah-israel-escolheu-abrir-as-portas-do-inferno-todos-nos-pagaremos-o-preco-por-jonathan-cook/

O bolsonarismo era vidro e se quebrou e direita está em guerra nas redes sociais

Por Sergio Denicoli*

Jair Bolsonaro está inelegível para 2024 e, com isso, sua liderança tem sido colocada em xeque

 Jair Bolsonaro está inelegível para 2024 e, com isso, sua liderança tem sido colocada em xeque Foto: Wilton Junior/Estadão

É inevitável a ascensão de novas lideranças, que trocam cotoveladas para ocupar o vácuo deixado pelo ex-presidente

A ciranda política em que a direita brasileira se meteu não tem caminho de volta. A inelegibilidade de Jair Bolsonaro transformou o ex-presidente em uma espécie de “rainha da Inglaterra”. Todos pedem sua bênção e batem continência, mas sabem que, em 2026, quem dará as cartas serão os nomes que se apresentarão como candidatos, com a aprovação de partidos sobre os quais Bolsonaro não tem controle. Alguns, convenientemente, até tentam manter a narrativa de que ele poderá voltar a ser liberado a se candidatar, mas poucos acreditam realmente nessa possibilidade.

Nesse cenário, é inevitável a ascensão de novas lideranças, que trocam cotoveladas para ocupar o vácuo deixado pelo ex-presidente. No tabuleiro político, destacam-se os governadores Tarcísio de Freitas, Ronaldo Caiado, Romeu Zema e Ratinho Júnior. Também surgem novas figuras, como Pablo Marçal, que atrai um percentual significativo dos conservadores, especialmente os mais radicais, que se encantaram com o discurso antissistema que deu impulso à campanha de Bolsonaro, em 2018.

O fato é que não há amor na política. Há conveniência, oportunismo e um jogo de expectativas em torno do poder. “O amor que tu me tinhas, era pouco e se acabou”, poderia dizer um Bolsonaro confuso, hesitante e fragilizado diante daqueles que agora piscam os olhos para outros nomes.

Nas redes, as militâncias da direita não fazem ensaio diplomático e já partem para as críticas pesadas. O X, após a suspensão no Brasil, virou um ambiente habitado sobretudo pela direita que não hesita em usar VPN – um subterfúgio tecnológico - para acessar a plataforma, e exemplifica bem as disputas internas desse grupo ideológico. O antigo Twitter tem sido palco de agressões entre pessoas que antes caminhavam unidas.

Não faltam ali xingamentos de direitistas a Bolsonaro, o chamando de covarde, frouxo, refém do sistema, entre outros adjetivos. A defesa do ex-presidente aparece, mas de forma tímida e pouco convincente, baseada apenas em termos como “confie no capitão”.

Também sobram ataques para o nome que representa a maior vitória eleitoral do governo Bolsonaro: o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas. Sua atitude cordial e sua sagacidade política incomodam, e as vozes dissidentes já tentam classificá-lo como mais alinhado ao centrão do que à direita-raiz.

Na última semana, o tabuleiro das eleições de 2026 movimentou peças importantes. Nikolas Ferreira, uma liderança incontestável nos meios online e com grande influência sobre os conservadores, iniciou uma guerra declarada contra o PSD, partido ao qual o deputado atribui o impasse em torno do processo que busca o impeachment do ministro Alexandre de Moraes. Tarcísio, que tem uma forte ligação com o presidente do PSD, Gilberto Kassab, entrou na mira. Somente no Instagram, o vídeo de Nikolas alcançou quase 11 milhões de visualizações.

Enquanto isso, Bolsonaro permanece praticamente calado, vendo seu império de popularidade se quebrar em cacos reluzentes e raivosos. Até chegou a fazer uma crítica velada ao governador de Goiás, que, apesar de se posicionar à direita, está em um palanque oposto ao do ex-presidente, nas eleições municipais de Goiânia, e atua nos bastidores para se tornar o presidenciável dos conservadores.

No entanto, continua, por exemplo, a engolir as críticas dos apoiadores de Marçal, que enxergam no candidato a prefeito de São Paulo um radicalismo inconsequente há muito abandonado pelo ex-presidente.

O cenário das redes mostra que o bolsonarismo, embora ainda ressoe nas bases conservadoras, parece ter perdido sua força unificadora, abrindo espaço para novas dinâmicas na direita brasileira. O cenário político caminha para uma reconfiguração, onde antigas lealdades se desintegram e novas alianças começam a se formar.

O futuro do movimento conservador brasileiro dependerá não só de quem irá liderá-lo, mas também de como será capaz de se reinventar em meio às mudanças inevitáveis do jogo político, que está em constante transformação. Enquanto isso, a esquerda, sob a tutela de Lula, se mantém unida e agradece.

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Opinião por Sergio Denicoli

*Autor do livro TV digital: sistemas, conceitos e tecnologias, Sergio Denicoli é pós-doutor pela Universidade do Minho e pela Universidade Federal Fluminense. Foi repórter da Rádio CBN Vitória, da TV Gazeta (Globo-ES), e colunista do jornal A Gazeta. Atualmente, é CEO da AP Exata e cientista de dados.

Fonte:  https://www.estadao.com.br/politica/sergio-denicoli/o-bolsonarismo-era-vidro-e-se-quebrou-e-direita-esta-em-guerra-nas-redes-sociais/

A imprensa pode não ser a solução para todos os dilemas atuais, mas tente imaginar um mundo sem ela

Por Marcelo Rech*

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‘Como usar adequadamente o seu tempo ao se informar deveria ser uma pergunta a nos fazermos constantemente’, escreve Marcelo Rech, presidente da ANJ, neste Dia Mundial do Jornalismo


Você já refletiu por que dedica atenção a um conteúdo – seja de caráter jornalístico ou de entretenimento? O que prende sua atenção? O que a desvia? Quando você se conecta e se desconecta de um conteúdo? E por quê?

Todas essas perguntas têm relação com um dos bens mais preciosos de nossa era: o tempo. A tecnologia pode avançar sem limites, com inteligência artificial, 5G, 8k ou 1.000 mega de internet, mas tudo esbarra num simples e imutável fato da vida: as 24 horas do dia não são elásticas, não ao menos sem comprometer a saúde. Então, é melhor que esse bem precioso seja despendido em algo que faça sentido em sua vida e a transforme positivamente, bem como a sociedade de uma forma geral.

Tais reflexões se tornaram cruciais para o modo de vida que teremos daqui para a frente. Não é apenas a separação entre verdade e mentira, realidade e fantasia, que definirá o o resto de nosso século, mas o que elas significam em termos práticos nas nossas vidas: a escolha entre democracias versus autocracias, populismo versus sinceridade, estabilidade versus desarmonia social.

A imprensa não é a solução para todos os dilemas de nossos tempos, mas tente imaginar um mundo sem ela. Quem faria a depuração entre fatos e rumores? Como confiar em algo ou alguma instituição se não houvesse um certificado de credibilidade conferido por uma cobertura jornalística séria e independente? Quem noticiaria o surgimento de um novo golpe cibernético no qual pessoas perdem suas economias? Quem investigaria corrupção e outros delitos quando os órgãos governamentais se mostram lentos ou negligentes? Quem trataria das mazelas das big techs e dos riscos que as redes sociais impõem para a estabilidade emocional, política e econômica? Finalmente, quem exporia o poder de corruptos e autocratas e as ameaças às democracias?

Como usar adequadamente o seu tempo ao se informar deveria ser uma pergunta a nos fazermos constantemente, seja para não cairmos nas armadilhas do engajamento de plataformas tecnológicas, seja para não desperdiçarmos nossa curiosidade com montanhas de inutilidades e futilidades.

Os produtores de jornalismo independente não são imunes a problemas, a começar pela sustentabilidade da atividade. Com algumas poucas exceções, a imensa maioria dos veículos sobrevive com um modelo de negócios que sofre com a assimetria regulatória das plataformas de tecnologia. Por estarem baseados na confiança, nenhum veículo também sobrevive abrindo mão da ética ou tornando elásticos seus conceitos de veracidade e responsabilidade na divulgação de conteúdos, como fazem as big techs.

De uma forma sintética, pode-se fazer uma analogia do fenômeno das big techs com o aquecimento global. Em seus modelos de negócios, as grandes plataformas produzem como efeito colateral uma poluição social que ameaça a sanidade mental e a estabilidade do planeta. Nada mais justo, portanto, que essas plataformas paguem uma taxa de sustentação do jornalismo profissional, que faz a limpeza de grande parte desta poluição social. A lógica é simples: quem suja o ecossistema deve pagar pelo menos uma parte a quem limpa.

Essa pode ser a maior contribuição das big techs para o futuro do planeta: impedir, por meio do financiamento de um jornalismo diversificado, robusto e independente, que a humanidade siga marchando para o abismo, e nos levando juntos na esteira de crendices, charlatães e vigaristas variados que souberam tirar proveito das brechas abertas pelo universo dos algoritmos.

 *Presidente executivo da Associação Nacional de Jornais

Fonte: https://www.estadao.com.br/economia/dia-mundial-do-jornalismo/ 

sexta-feira, 27 de setembro de 2024

'O Idiota': a ascensão política da barbárie encarnada em personagens grotescos.

 Por: IHU e Baleia Comunicação | 27 Setembro 2024

 https://www.ihu.unisinos.br/images/ihu/2024/09/26_09_palhaco_canva.jpg

 Foto: Canva

 Entrevista especial com Domenico Hur

O discurso radical da suposta direita antissistema se apoia na produção de discursos cada vez mais radicais e extremos produzindo uma polarização que torna cada vez mais narcísicos ambos os espectros políticos


Quando Tom Jobim cunhou a célebre frase “O Brasil não é para principiantes”, ele foi capaz de sintetizar a complexidade que significa viver em um país continental e com contradições e potencialidades igualmente colossais. A afirmação cai como uma luva para pensarmos os nossos desafios políticos, sobretudo quando no cenário político recente e atual surgem figuras que ganham notoriedade dobrando a aposta do absurdo e investindo em afetos intensos como estratégia de visibilidade.

“É isso o que eles querem performatizando esses papéis: eles querem gerar afetos intensos nos quais sempre serão falados. Aquela máxima ‘falem mal, mas falem de mim’ nunca foi tão atual como na política hoje, porque conseguem mais visibilidade, engajamento nas redes sociais e de certa forma povoam o imaginário popular”, descreve o professor e pesquisador Domenico Hur, em entrevista por videoconferência ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.

“Por que será que há uma propaganda política tão baixa, primitiva, beligerante? Talvez seja porque a promessa do sonho americano de que a pessoa vai trabalhar, ficar rica e feliz se esvaziou e as pessoas viram que não é possível. É um pouco do que o Byung-Chul Han fala: o capitalismo nos promete riqueza e felicidade, mas só nos trouxe cansaço e esgotamento”, complementa.

Em meio a esse cenário, a esquerda oscila entre um certo tradicionalismo narcisista dos homens de cabeça branca, símbolo máximo da falta de renovação política, e a ruptura encarnada na candidatura, por exemplo, de mulheres, pessoas negras e periféricas. “Então veremos que as propostas de esquerda são muito tradicionais, tirando as mulheres negras, que trazem um fator novo – mulheres feministas, negras da periferia como a Marielle [Franco]. Por isso que foi um choque o assassinato da Marielle, não só pela figura do que ela era, mas também como um extermínio da nova proposta da esquerda brasileira: feminina, da periferia e a associada à pauta da diversidade sexual”, analisa.

Em que pese nas votações e avaliações dos parlamentares mais destacados no Congresso, as deputadas e deputados de esquerda figuram nas primeiras posições da lista, a máquina estatal, de certa forma, domestica e engessa a efervescência das bases. “Como que o movimento social consegue viver no Estado por mais que o Estado seja governado por um partido de esquerda, centro-esquerda, visto que o Estado é uma máquina de moer carne? Aquilo que o Deleuze falava: o movimento social é de esquerda, mas o Estado sempre será de direita, conservador. As pessoas colocavam essa pergunta. Mas como conseguir fazer uma política de esquerda em uma entidade hierarquizada e vertical? Essa é uma das grandes questões da esquerda”, destaca.

Domenico Hur (Foto: Reprodução | YouTube)

Domenico Hur é pesquisador em Esquizoanálise, Esquizodrama e Psicologia Política. Professor de graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Goiás. Graduado em Psicologia pela Universidade de São Paulo – USP, mestre (2005) e doutor (2009) em Psicologia Social pela USP, estágio doutoral na Universitat Autònoma de Barcelona (2008/2009). Tem pós-doutorado na Universidad de Santiago de Compostela (2017/2018). É professor visitante do programa de mestrado em Psicologia Social e de doutorado em Ciências Sociais da Universidad Pontifícia Bolivariana, em Medellín. Ex-diretor da Associação Ibero-Latino-americana de Psicologia Política (AILPP), gestão 2016-2020. Colaborador do Instituto Gregorio Baremblitt. É autor, entre outros, de Esquizoanálise e esquizodrama: clínica e política (Alínea, 2023, 2. ed.)

Confira a entrevista.

IHU – Permita-me começar com uma menção a um dos maiores livros de Dostoievski: O idiota. Nele, um homem puro se torna uma espécie de idiota, um sujeito inadaptado para uma sociedade de valores corrompidos. Olhando comparativamente, o que é o idiota e que tipo de idiota a nossa sociedade tem produzido?

Domenico Hur – O idiota vai ter várias configurações e visões. Mas, de forma geral, quando ele aparece na política, vai ter uma expressão de protesto: o idiota é o que subverte a ordem. Então, ele gera regimes de crise, de questionamento e gozação ao que está ocorrendo. O idiota sempre vai trazer essa ideia de um protesto, uma mudança, uma alteração e por isso acaba sendo muito sedutor. Portanto teremos várias figuras. O filósofo Gilles Deleuze cita o personagem Bartleby, criado pelo escritor Herman Melville (Bartleby, o escrevente: uma história de Wall Street. Autêntica, 2015), que é o idiota no escritório. E que tem uma frase clássica: I would prefer not to (eu preferiria não fazer). O chefe, por sua vez, sempre vai pedir para ele executar uma tarefa e ele sempre vai dizer: eu preferiria não fazer. Qual é a sacada do Deleuze? Essa recusa, a partir de uma figura como o idiota, estava em regimes de comunicabilidade que trazem ruído na comunicação e fissuras que podem levar a transformações. Então, o Bartleby aparece como um protótipo de revolucionário porque traz regimes de desordem nos quais podem gerar alguma transformação no atual estado de coisas.

Na política, a figura do idiota é muito explorável. Na França, tinha o palhaço Coluche [Michel Gérard Joseph Colucci], que tentou se candidatar a presidente e teve muita adesão, principalmente da intelectualidade de esquerda. O Coluche também foi um pouco dessa figura do idiota para trazer essa irreverência, subversão, porém a candidatura dele foi indeferida. Mas, naquele momento, era o idiota como um candidato da esquerda – isso que era o interessante.

A direita utiliza o humor não de uma forma revolucionária, mas de forma oportunista de veicular a comunicação com público para atraí-lo – Domenico Hur

IHU – O idiota é um revolucionário ou um oportunista?

Domenico Hur – O idiota pode ser usado de várias formas. Creio que o principal é essa figura de insurgência, da irreverência, da gozação e do humor. Ele pode ter vários lugares. Mas na política brasileira, como coloquei no artigo, o idiota foi muito bem utilizado pelo palhaço Tiririca, que tinha o lema: “Você sabe o que o Congresso faz? Também não sei, mas vote em mim”. O chocante é que ele foi o mais votado naquelas eleições como Deputado Federal e, em seguida, foi o segundo mais votado, sempre explorando essa figura.

No Brasil, o grande problema é que a esquerda política não se reinventou. Ela ficou com uma certa superioridade moral, certa seriedade e certo ressentimento. Então veremos que as propostas de esquerda são muito tradicionais, tirando as mulheres negras, que trazem um fator novo – mulheres feministas, negras da periferia como a Marielle [Franco]. Por isso que foi um choque o assassinato da Marielle, não só pela figura do que ela era, mas também como um extermínio da nova proposta da esquerda brasileira: feminina, da periferia e associada à pauta da diversidade sexual.

A esquerda não se reinventa. Infelizmente veremos que muitos candidatos de esquerda, ou em convenções de partidos como o PT, são formados pelas “cabeças brancas”. Isso é muito triste porque não traz atrativos para a juventude. Estou falando isso porque se a esquerda ficar muito séria, sisuda e com uma superioridade moral – porque sabem o que é melhor para as pessoas – acaba o humor e a alegria. A política pode ser alegre e ter humor e a esquerda acabou esquecendo disso. A direita utiliza o humor não de uma forma revolucionária, mas de forma oportunista de veicular a comunicação com público para atraí-lo. Também como forma de protesto, nesse sentido de que, se para grande parte da população todos os políticos são iguais, mentirosos e corruptos, o palhaço ou um idiota acaba sendo essa figura que vai alterar as coisas.

O idiota à direita

A extrema-direita vem utilizando essas figuras – e de modo muito bem pensado. Como o Bolsonaro, que já em 2017 e 2018 fazia esse papel com um comportamento destemperado (somado à produção dos marqueteiros), uma pessoa aparentemente ensandecida, falando um monte de besteiras para atrair mais atenção e agenciar a raiva da população contra a corrupção e o PT. Queira ou não, houve corrupção no governo do PT, como também nos outros governos de direita.

Foi construída essa figura de idiota como forma de capturar o pensamento das pessoas. Não só o Bolsonaro, como o próprio [Javier] Milei, que também veremos esse oportunismo da extrema-direita. Podemos pensar em outros políticos, como o Nikolas Ferreira, que foi o mais votado no Brasil, que consegue polarizar muito bem, tem uma grande atração de uma parcela e consegue muito ódio da outra parte. É isso o que eles querem performatizando esses papéis: gerar afetos intensos nos quais sempre serão falados. Aquela máxima “falem mal, mas falem de mim” nunca foi tão atual como na política hoje, porque conseguem mais visibilidade, engajamento nas redes sociais e de certa forma povoam o imaginário popular.

[A extrema-direita quer] gerar afetos intensos nos quais sempre serão falados. Aquela máxima “falem mal, mas falem de mim” nunca foi tão atual como na política hoje – Domenico Hur

Oportunismo

O oportunismo, ampliando um pouco mais o escopo da nossa discussão, nos ajuda a pensar a sensação política, que é o Pablo Marçal. Na entrevista do Flow Podcast, ele fala claramente: “Eu estou fazendo papel de idiota porque as pessoas gostam de ver coisas grosseiras, não é que eu curta isso, eu faço para aparecer”. Ele maneja as provocações e esse personagem espalhafatoso para gerar a atenção do público.

É uma gestão da heurística de acessibilidade com determinadas imagens de pensamento, com determinadas formas discursivas que vão tendo mais atenção do público. Quando o Marçal provoca repetidamente o Datena, que no dia 1º de setembro vai lá e finge bater no concorrente, ele está preparando o terreno para o que ocorreria no dia 15 de setembro, quando tomou uma cadeirada, o que foi perfeito para sua estratégia, pois o Brasil inteiro falou do Marçal, precisamente no momento em que [a pesquisa] DataFolha mostrou que ele estava caindo. Em várias pesquisas o Marçal está liderando entre os três, mas na [pesquisa] DataFolha da sexta [13-09-2024] ele caiu significativamente. Com isso, a campanha quis fazer algo mais agressivo para que no domingo eles conseguissem ter essa maior heurística de acessibilidade fazendo algo muito pungente que tivesse provocação ao Datena e ele caiu feito um pato. De forma que o Marçal conseguiu capitalizar e ele fala claramente que ele ocupa esse lugar de idiota.

Estou falando um pouco do Marçal porque as atenções estão indo para ele, por mais que o Marçal ocupe o lugar de idiota também, ele ocupa o lugar de pessoa muito bem-sucedida. Ele é o hipercoach que vai dar as palestras e escrever muitos livros, vai nos ensinar o caminho do sucesso. Então, os políticos sempre vão jogando com diferentes papéis. Isso que é interessante.

IHU – A rigor, esse não é um fenômeno só nosso, tampouco original. Há uma variedade de sujeitos ligados a esse tipo de arquétipo. Javier Milei, Boris Johnson, Donald Trump, Jair Bolsonaro. De qual caldo de cultura surgem esses personagens?

Domenico Hur – Na política parece que houve algum momento em que se rompeu o pacto da civilidade. Tinha um certo momento em que ainda se discutiam propostas, havia certo respeito, embora sempre tenha havido conflitos e atentados, mas parece que esse espaço ainda tinha um certo decoro. Mas ainda precisamos estudar melhor se a hipótese da intensificação do neoliberalismo – eu não duvido – ou a explosão das redes sociais digitais. Maurizio Lazzarato fala na existência de uma transição do povo, da população, para o público. Portanto, hoje, na sociedade de controle, o povo virou público. Se hipotetizarmos que o povo vira público com a explosão das redes sociais digitais, com aumento tecnológico e com a intensificação do neoliberalismo, isso na década de 1990, podemos hipotetizar que há um declínio do espaço democrático de decisão e negociação para que haja o desenvolvimento de tecnologias e performances para manejar os afetos desse público.

Psicopolíticas

Vão manejar os afetos desse público por meio de tecnologias emocionais e psicológicas, psicopolítica, as mais sofisticadas possíveis para conseguir determinadas condutas. Não é apenas o voto, mas principalmente consumir determinados produtos. O que vemos com o Instagram e o TikTok é essa captura da tensão. Ficando mais tempo conectado à tela em que aparecem coisas que gostamos de assistir, como gatinhos bonitinhos, cachorros ou mulheres de biquíni, de modo que as pessoas ficam horas e horas e no meio disso aparece uma propaganda outra.

O desenvolvimento de tecnologias psicopolíticas para capturar a atenção e gerar determinadas condutas de forma espalhafatosa, grosseira e polarizada, sugerindo e incitando ódio às minorias e aos migrantes, afirmando que eles próprios são o povo oprimido e outros a elite corrupta. Isso pode ser feito tanto para o populismo de esquerda quanto para o populismo de direita.

Por que será que há uma propaganda política tão baixa, primitiva, beligerante? Talvez seja porque a promessa do sonho americano de que a pessoa vai trabalhar, ficar rica e feliz se esvaziou e as pessoas viram que não é possível. É um pouco do que o Byung-Chul Han fala: o capitalismo nos promete riqueza e felicidade, mas só nos trouxe cansaço e esgotamento. Talvez, uma promessa política pelo crescimento, felicidade ou pela igualdade, como a esquerda coloca, valores mais abstratos, como “vamos amar à cidade”, não tem muita eficácia.

A promessa do sonho americano de que a pessoa vai trabalhar, ficar rica e feliz se esvaziou e as pessoas viram que não é possível – Domenico Hur

A produção política da raiva

Já se percebeu que uma eficácia maior é a polarização, incitação de ódio ao inimigo – qualquer que seja, esquerda, mulheres, imigrantes, minorias, pessoas pró-aborto. Isso gera uma raiva, uma ira e um sentimento de injustiça na população de uma forma mais rápida e eficaz. Por isso, talvez, com a transição do povo para o público, para ter respostas mais rápidas, é necessário gerir os afetos de ira e injustiça nas pessoas. Então a polarização acaba sendo muito eficaz e a pessoa parecendo com essa figura meio caricata, desmazelada, o que chama mais a atenção no público e força a identificação: ele é uma pessoa igual a mim, ele fala o que pensa. Por isso o Bolsonaro sempre tentava criar situações em que parecia uma pessoa simples, comendo no [restaurante] a quilo ou aquela imagem patética dele comendo frango assado e farofa no ponto de ônibus em Brasília, em que ele está todo babado. Eu gosto muito desta imagem, porque além de ser patética, ela mostra o preconceito que ele tem com o povo e principalmente porque tem o staff dele –umas 20 pessoas em volta dele filmando e fazendo a segurança – mostrando que é algo fake.

Aparecer desmazelado é uma forma de gerar a identificação dessa heurística da acessibilidade, que é a fixação do pensamento das pessoas. Quando escrevi esse artigo também fiz slides e peguei uma foto do Hitler, sabendo que a campanha, o nazifascismo, era (e é) muito psicopolítico, foi possível constatar que o bigode dele é praticamente igual ao do Chaplin, além de todos aqueles trejeitos no Hitler. Claro que não é um tema que eu estudei a fundo, mas creio que para a constituição da figura do Hitler também há uma criação meio caricata como forma de capturar a atenção do povo. Nós gostamos dessas coisas meio diferentes.

Bolsonaro e seu staff na gravação da cena em que ele come frango com farofa (Foto: Reprodução/X)

IHU – A esquerda se leva a sério demais? Qual pacto narcísico organiza a escolha de seus candidatos?

Domenico Hur – A esquerda tem um grande desafio, porque para a direita se congregar e aliar é muito mais fácil, porque eles fazem os cálculos dos lucros e da divisão. Já a esquerda tem todo esse trabalho da democracia, da participação, da decisão colegiada em plenários, assembleias, então é muito mais demorado e mais difícil. A esquerda se organiza de diversas formas, seja uma esquerda mais intelectual, que discute mais, seja a esquerda com alguns profissionais que estão nos seus sindicatos – já teve um grande declínio – e alguns movimentos sociais, sejam mais autogestionários ou institucionalizados e os partidos políticos. Os partidos são mais burocratizados, são “miniestados”. Como os partidos são mais burocratizados, hierarquizados e há um pouco mais de personalismo, o que afasta muito os ativistas de esquerda mais bem-intencionados. As pessoas acabam indo fazer movimentos sociais em outros lugares ou mesmo movimentos digitais porque não querem ficar submissos a outras pessoas nos partidos. Os partidos estão afastando as pessoas infelizmente.

Quando eu falo que nos partidos de esquerda há muita cabeça branca, não é nada contra, não estou sendo etarista, mas falo pela falta de renovação. Os partidos, infelizmente, estão muito ligados ainda a lugares de poder históricos, institucionalizados, não que não deva ter, mas isso gera o afastamento das pessoas e, com isso, há o afastamento também das bases. É por isso que se critica: o PT perdeu a relação com os religiosos, não tem relação com os neopentecostais. Mas no fim da década de 1970 o PT tinha uma relação muito boa com as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs. Geralmente quem se profissionaliza, principalmente em cargos de lideranças e no Estado, normalmente se afasta da base. Com isso, quem está no Estado se identifica mais com as classes dominantes, com a burguesia, do que com a própria base.

Na sexta passada, 13-09-2023, eu estava em Brasília em uma atividade com a secretaria de educação popular e tinham vários outros ativistas que estão no Estado, como feministas e movimento negro, e eles colocavam essa questão: como que o movimento social consegue viver no Estado por mais que o Estado seja governado por um partido de esquerda, centro-esquerda, visto que o Estado é uma máquina de moer carne? Aquilo que o Deleuze falava: o movimento social é de esquerda, mas o Estado sempre será de direita, conservador. As pessoas colocavam essa pergunta. E são pessoas com mais experiência do que eu. Mas como conseguir fazer uma política de esquerda em uma entidade hierarquizada e vertical? Essa é uma das grandes questões da esquerda. Um militante que era da base e vira um político institucionalizado do Estado, tem um afastamento e muitas vezes se autoinveste de um poder meio imperial, estatal, soberano. Quando esse político de esquerda que era da base se investe nesse poder soberano, é que o círculo acaba, porque ele vai representar mais o Estado do que a base.

Entrando em uma seara um pouco mais difícil, que não está bem dentro do nosso tema, essa hipótese nos ajuda a pensar porquê o nosso ex-ministro de Direitos Humanos [Silvio Almeida], que é um grande representante e tem uma luta antirracista incontestável, um grande teórico, referência para muitas políticas afirmativas e para muita gente, supostamente cometeu tais infrações ao estar investido nesse poder de Estado. Por mais que falem que esse é histórico meio antigo, o que quero colocar é que, no âmbito psicopolítico, essa simbiose entre sujeito e lugar de poder faz muitas vezes com que haja um abuso do corpo dos outros. Onde quero chegar é que há, historicamente, essa questão dos déspotas das sociedades imperais há uma questão do incesto. Déspota é o Imperador que vai transar com a irmã porque para eles é como se não houvesse leis, eles poderiam fazer tudo. A pessoa vem de esquerda, mas o próprio investimento do poder vertical – Estado –, produz uma supressão da lei, como se ela não valesse para determinadas pessoas. Às vezes acontece isso com a esquerda no poder.

Como conseguir fazer uma política de esquerda em uma entidade hierarquizada e vertical. Essa é uma das grandes questões da esquerda – Domenico Hur

IHU – Olhando para a esquerda que atualmente chega ao poder, percebemos que seus circuitos de fala são sempre muito moderados, condescendentes e com o desejo de agradar o mercado. Por outro lado, à direita, os oponentes costumam ter falas mais disruptivas que buscam sempre criar um curto-circuito, uma zona radical de não diálogo, com as minorias, mas também com mediadores sociais como as instâncias políticas e jurídicas. Os radicais de direita costumam ser mais eficientes em fugir do controle? Que consequências políticas isso tem?

Domenico Hur – Essa pergunta é muito boa. A esquerda tem que reinventar as práticas e é difícil. Eu vejo muito isso, até mais na academia: a esquerda acaba sendo muito discursiva. Temos aquele discurso perfeito da equidade, igualdade, vamos criar comunas e autogestão, mas na prática é onde as coisas não funcionam. Por quê? Alguns militantes falam que a esquerda tem um discurso revolucionário e uma prática conservadora. O que ocorre no âmbito eleitoral da plataforma política é que as campanhas são um pouco abstratas para o público. As pessoas até podem concordar com os princípios, mas vão se perguntar o que isso vai mudar na minha vida.

Já a direita é mais pragmática, tenta colocar mais ações de mudança, mesmo que sejam ações que não serão realizadas. O Bolsonaro colocava “vamos fechar o STF” e o Mileivamos fechar o Banco Central”. O Bolsonaro tomou o poder, infelizmente, e se houve um presidente revolucionário – no sentido de trazer uma transformação – é ele. Estava fazendo essa revolução, a revolução da privatização, da terceirização, as reformas trabalhista e da previdência que foram aprovadas nos governos Temer e Bolsonaro. Além disso, Bolsonaro estava fazendo uma revolução molecular, não era só do mercado em acabar com o Estado, que é armar sua população, bem no modelo chavista. No caso chavista ele estava armando as classes pobres, as pessoas residentes nas favelas, já o Bolsonaro a classe média e a classe média alta, o “tiozão do pavê”. Já estava fazendo essa revolução molecular no sentido de que cada um deve se armar, ir para rua e fazer a mudança.

Quando chegamos no Natal de 2022 e tem aqueles dois senhores que estão com um caminhão de gasolina no aeroporto de Brasília, querendo explodir o lugar, e muito armados – existiam mais de dez armas pesadas. Eu estudei as guerrilhas de esquerda no meu doutorado. Se compararmos esses dois indivíduos com mais de dez armas cada um, entre metralhadoras e fuzis e um caminhão que queriam explodir, com a década de 1960 e os guerrilheiros que tinham uma pistola e poucas armas, quem estava próximo de fazer a revolução? Até uma das ações da expropriação de armas que foi muito exitosa na guerrilha de esquerda, com o Carlos Lamarca, foi quando ele roubou cerca de 15 fuzis do quartel de Itaúna, em Osasco, São Paulo. Comentava-se: o Lamarca roubou 15 fuzis. E se olharmos para esses caras [classe média e média alta bolsonarista] eles têm dezenas e dezenas de armas, muito dinheiro. Os acampamentos nos quartéis era superfinanciado. E com isso nos questionamos: quem está próximo da revolução? A guerrilha armada da década de 1960 ou os bolsonaristas de agora? Esse discurso da ação, do armar-se para a direita acaba sendo muito eficaz porque trabalha o próprio ressentimento das pessoas de meia idade e ocorreu o que ocorreu. Por isso que houve aquela invasão dos Três Poderes, mas ainda bem não teve a explosão do aeroporto de Brasília no Natal, porque isso seria catastrófico. Não acho que geraria um golpe, mas levaria dezenas de vidas, seria algo muito traumático.

Mas, infelizmente, essa gestão noopolítica essa política sobre o pensamento e sobre os afetos, que a extrema-direita vem trazendo, que é calcada na ira, no ódio, leva a essas possíveis disruptividades.

Essa gestão noopolítica e essa política sobre o pensamento e sobre os afetos que a extrema-direita vem trazendo, que é calcada na ira, no ódio, leva a essas possíveis disruptividades – Domenico Hur

IHU – O que é a noopolítica?

Domenico Hur – A noopolítica é um termo que visa substituir biopolítica. Se a biopolítica era uma política sobre o corpo, noopolítica é a política sobre o pensamento em que noo está associado etimologicamente a pensar. O Mauricio Lazzarato cunhou esse termo, noopolítica, para pensar esse governo sobre o pensamento, os afetos e a memória. Essa questão da figura do idiota, os extremismos têm uma alta eficácia política no governo sobre essa subjetividade, por isso podemos falar que hoje estamos mais em tempo de noopolítica, de política sobre o pensamento, os afetos e a subjetividade, do que aquelas políticas sobre o corpo, que o [Michel] Foucault escrevia muito bem no período disciplinar.

IHU – Até que ponto “fazer o idiota” é, concretamente, uma alternativa para as forças políticas realmente progressistas?

Domenico Hur – Pensando no contexto atual, se temos a extrema-direita fazendo o idiota, será que um idiota de esquerda poderia ser uma boa alternativa? Eu não pensaria em um idiota, mas pensaria um pouco na figura do Lula. É claro que ele está um pouco mais velhinho, mas ele é o “homem forte”, que é uma alternativa boa para o idiota. Mas o homem forte meio autoritário, como o Lula mesmo – temos o “Lulinha paz e amor”, mas sabemos que ele é um líder autoritário. Porque no cenário político, no campo eleitoral, o grande diferencial é o manejo das paixões, dos afetos. Então, quanto mais em crise estamos, mais os afetos são importantes para a escolha eleitoral. Em 2018, o candidato do mercado era o Alckmin, só que ele sempre foi muito anticarismático, e o Bolsonaro subiu feito um foguete. O pior equívoco do PT foi colocar o Fernando Haddad como candidato – isso eu sempre falo nas minhas aulas, palestras e para os petistas – porque ele é um gentleman, é a pessoa comedida, gentil, é um cara bacana, que gosto (eu votei nele), mas não funciona em períodos de crise. Por isso que ele perdeu e teve uma derrota homérica. O Haddad não deu em 2018, mas talvez em 2026 se a economia estiver melhor e tudo estiver mais apaziguado o Haddad possa funcionar sendo essa pessoa mais conciliadora. Mas me parece que não, o Haddad não será uma boa oferta da política.

Mas em tempo de idiotas, colocar um idiota de esquerda não funcionaria. Se for um Stálin de direita e colocarmos um idiota como forma de provocação, pode ser possível, mas o que funciona mais é essa história do “homem forte”. Por outro lado, temos essa transição dos perfis, porque o homem forte é essa política antiga. O Bolsonaro se colocou como política nova, mas ele é a política antiga.

Quando vemos Nikolas Ferreira tendo muitos votos, percebemos que esse é o novo perfil: influencer, jovem, que não tem papas na língua – Domenico Hur

Novo perfil

Quando vemos Nikolas Ferreira tendo muitos votos, percebemos que esse é o novo perfil: influencer, jovem, que não tem papas na língua. E quando vemos o Marçal, mesmo que ele não ganhe e não vá para o segundo turno, ele consegue monopolizar os holofotes, com um outro perfil: o influencer, coach, o cara que é bem-sucedido.

Eu estava pesquisando para escrever um artigo sobre o Marçal e ele tem mais de 20 livros escritos. Na Wikipédia aparecem só 12 livros, mas esses são de 2022 e 2024, e esse ano não acabou, então ele publica quatro livros por ano [risos]. Todo esse discurso que ele tem sobre a venda do sucesso é paradigmático, até eu estava brincando com meus amigos e dizendo que a eleição de 2026 será Marçal contra Felipe Neto, os influencers.

O idiota à esquerda

Eu não vejo o idiota de esquerda como uma saída para 2026. Talvez o “homem forte”, se vão querer manter o Lula até os 90 anos, 100 anos, até quando ele puder respirar. Mas o Brasil tem essa tradição de manter políticos muito velhos na disputa. Aqui em Goiás o Iris Rezende foi colocado em todas as eleições até falecer [2021] e ele já tinha sido prefeito na década de 1960. Mas é uma grande questão: o que fazer na esquerda?

A Kamala Harris, as pessoas estão um pouco pessimistas com ela como alternativa ao Biden, está tendo uma ótima performance, pois ela é muito inteligente e hábil. Talvez um perfil como este possa ser bom: mulher, negra, com uma boa formação e muito segura de si, mas tem que ter essa questão da persuasão e do carisma, isso é indispensável. A Manuela [D'avila] é ótima, mas não sei se por questões pessoais ela deu um “bode” [Manuela afastou-se da política, entre outras razões, após as inúmeras ameaças a sua família]. Ela ainda seria uma boa alternativa, muito melhor que o Haddad e a [Gleisi] Hoffmann

A questão é como conseguir massificar para o público não de esquerda esses atores e essas atrizes políticas – Domenico Hur

IHU – Até que ponto figuras como Felipe Neto são interessantes ou viáveis para uma política de esquerda?

Domenico Hur – O Felipe Neto é um personagem muito interessante porque ele é um jovem que foi muito anti-Dilma e anti-PT, mas fez a curva, estudou, pensou e reavaliou e hoje é bem de esquerda e se comunica muito bem com o público jovem. Por isso eu brinquei falando que em 2026 ou 2030 podemos ter Marçal contra Felipe Neto. Por um lado, ele é uma alternativa e, por outro, é essa expressão de que somos governados hoje pelas redes sociais digitais. Quem é grande influencer acaba tendo visibilidade, likes e votos, quem não é, não tem. Talvez seja esse o nosso futuro. Ao menos é melhor influencer do que esses bonecos criados por Inteligência Artificial, que não sabemos quem são ou o que serão [risos]. Mas, no âmbito da influência e da razão, a capilaridade do Felipe Neto é uma possibilidade.

Não sei se para essas pessoas que já têm muito dinheiro com o trabalho é interessante. Ir para a política é muitas vezes um desgaste, um estresse. O próprio Luciano Huck, não sei se ele seria um semi-idiota com o jeito dele, mas ele ficou pensando se seria o candidato do mercado mais responsável e preferiu continuar com os honorários da Globo. O próprio artista que não tem formação política é muito complicado quando entra no espaço político, porque muitos não entendem como é a lógica, padecem e até falecem de ataque cardíaco. O próprio Clodovil [Hernandes] durou cerca de oito meses no Congresso, ficava muito nervoso, estressado e teve um ataque cardíaco.

Essa é uma grande questão: que perfil a esquerda pode emplacar? Por enquanto são as mulheres negras, Erika Hilton, por exemplo, mas ela dificilmente teria grande aceitação das classes médias brancas masculinas. Estamos criticando um pouco a esquerda, mas temos parlamentares de esquerda muito bons. Inclusive, no Prêmio Congresso em Foco muitos deles são premiados e premiadas, e são possíveis alternativas. Mas a questão é como conseguir massificar para o público não de esquerda esses atores e essas atrizes políticas. Porque o Brasil é muito complicado, em qualquer país da Europa, que são países pequenos ou mesmo na Espanha, que tem cerca de 50 milhões de habitantes, conseguir emplacar um político de nome nacional é muito difícil. Se formos para Lituânia, que tem menos de 3 milhões, é muito mais fácil.

A ideia em síntese é essa: o idiota fazendo suas traquinagens e a população rindo, mas nutrindo essas alegrias do ódio – Domenico Hur

IHU – Voltando à questão dos discursos e seus curtos-circuitos. Quais são as principais imagens capturantes do pensamento que os idiotas utilizam?

Domenico Hur – As imagens são as mais descabidas possíveis. O que é mais exagerado e grotesco tem grande eficácia, coisas que saem do limite da civilidade ou quando político vai enunciar isso. Quando o Bolsonaro fala “Se você tomar a vacina da Covid-19 e virar jacaré, a culpa não é minha”. Nós nunca imaginaríamos que um Presidente faria uma fala dessas. Isso viralizou mundialmente, todos falavam mal do Bolsonaro, até o vocalista do Kiss [Gene Simmons], isso foi muito concertado. Quando a capitã cloroquina [Mayra Pinheiro] critica a Fiocruz, ela diz: “Vocês viram o símbolo da Fiocruz? Parece um pênis” [risos]. Algo descabido. E ela está sendo investigada e processada, isso tomou a opinião pública. Quando o Milei fala “Resolvi me tornar presidente porque meu cachorro morto me aconselhou” [risos], são essas coisas mais descabidas que todo mundo vai falar. O problema é que as pessoas simpatizam por esse desvario. Quando o Milei fala “Meu governo será tão liberal que as pessoas vão poder vender órgãos” e mesmo que isso não seja aplicável, todo mundo vai falar, porque é uma imagem de pensamento muito forte. Quanto mais descabido melhor para propagar para um público de 40, 50, 100 milhões de pessoas.

O que é louco é isso: eles querem o afeto intenso, a aceitação e a rejeição. O Pablo Marçal é o mais rejeitado atualmente no segundo turno, porque essa polarização vai remeter a isso e a chance de conseguir ir para o segundo turno. Eu assisto lutas de MMA/UFC e tem alguns lutadores escrotíssimos e que os amigos dizem que eles agem dessa forma para aparecer. É a mesma prática política, na luta é mais ainda, as pessoas são odiadas e o público fica com raiva e quer ver a luta da aquela pessoa para vê-la perder. Esse tipo de discurso aumenta o número de espectadores e se ganha mais porcentagem do pay-per-view. Trata-se de uma estratégia que é muito utilizada na política e no entretenimento e a pessoa acaba ganhando muita visibilidade.

A macropolítica está mudando tão rápido as estratégias, que é vertiginoso. Estamos falando do Bolsonaro e do Milei cumprindo o papel do idiota, mas isso já é velho, já tem novos personagens, novas práticas e outra lógica – no caso, o Marçal –Domenico Hur

IHU – Qual o papel do humor fatalista no circuito dos afetos da política radical da extrema-direita? Por que humilhar e fazer escárnio de adversários é capaz de angariar tantos votos?

Domenico Hur – O humor fatalista agencia o que Deleuze chama de “alegrias do ódio”, “alegrias da depreciação do outro”, “alegrias da autodepreciação”. Muito no sentido de que essa depreciação, esse ódio e escárnio vai ter uma função de descarga energética do mal-estar. Por exemplo, tinha a jornalista Cristina Rocha no SBT, que tinha aquele programa Casos de família, que sempre eram “tretas”, brigas de família que eram um “horror”, um escárnio, com uma audiência grande em que as pessoas gostavam de deplorar a família do outro. Da mesma forma, tinha aquela série americana dos anos 1990, Married... with Children (Um amor de família), em que a família só passava por desgraças e fez muito sucesso essa deploração do escárnio, e os atores falavam que o público que mandava cartas e mais gostava era o público de presidiários, que falava “Eu gosto muito de ver a série de vocês, porque acho que estou mais ferrado na vida, mas o personagem principal é mais ferrado do que eu. Rio demais”. Era tudo escárnio: com a vizinha feia, com o filho baixinho que não cresceu, era alegria do ódio total.

Temos essa função desse humor de escárnio como descarga energética. Por outro lado, ele não muda, não traz transformação social, não nos tira do lugar e cria uma certa catarse, mas os mantém no mesmo lugar. Então, está todo mundo ferrado, então vamos seguir juntos no fundo do poço. A lógica da extrema-direita é essa: camadas pobres sintam raiva, mas ficaremos todos no fundo do poço, porque quem vai lucrar muito são as grandes corporações de empresários, enquanto os pobres vão perder cada vez mais direitos. A ideia em síntese é essa: o idiota fazendo suas traquinagens e a população rindo, mas nutrindo essas alegrias do ódio.

IHU – Deseja acrescentar algo?

Domenico Hur – A macropolítica está mudando tão rápido as estratégias, que é vertiginoso. Estamos falando do Bolsonaro e do Milei cumprindo o papel do idiota, mas isso já é velho, já tem novos personagens, novas práticas e outra lógica – no caso, o Marçal. É uma mudança que nunca vimos no cenário político e talvez essa produção de personagens será como Hollywood mesmo: novos produtos para captar a atenção das pessoas, novos modelos, mesmo que tenham a carne parecida, sempre serão oferecidos novos produtos para capturar a atenção.