por Antonio Martins
Imagem: Édouard Manet, O Suicida (1877-81)Como a Alemanha, símbolo da força do Ocidente, entrou em declínio acelerado e está se rendendo à ultradireita. Por que a coalizão neoliberal no governo meteu-se numa camisa-de força-política. Que esperar de uma nova esquerda, que emerge
Foi apenas a partir do século XVII, e graças a biólogos como o toscano Francesco Redi e o francês Louis Pasteur, que humanidade descartou a ideia de geração espontânea da vida. Prevalecia antes a noção, expressa entre muitos outros por Aristóteles, de que a matéria inanimada possui “princípios ativos”; e estes, em certas condições, germinam. Estas concepções estavam enraizadas não só no senso comum (acreditava-se que camisas sujas podiam dar origem a ratos), mas também nos meios científicos. Ainda no século XVI, o médico e filósofo renascentista Paracelso, um precursor da assepsia, descreveu a geração espontânea de seres complexos como sapos, roedores, enguias e tartarugas a partir de fontes como ar, água, madeira podre e palha… Uma crença semelhante parece cercar hoje a maior parte das análises sobre o crescimento de correntes políticas que ameaçam a democracia. Elas resultariam de uma espécie de “onda de ultradireita” que, assim como emergiu, algum dia retornará às profundezas – guardando pouca relação, portanto, com as escolhas políticas adotadas pelos governos dos países acometidos.
No início de setembro, a “onda” chegou forte a dois estados do Leste da Alemanha – a Turíngia e a Saxônia – que elegeram seu parlamento e governo. Pela primeira vez, desde Hitler, um partido de extrema-direita venceu um pleito estadual. Na Turíngia, onde 63% da população vive em áreas rurais, a AfD (Alternativa para a Alemanha, xenófoba e supremacista) foi a mais votada, saltando de 23,4% (em 2019) para 32,8%. Em seguida veio a direita tradicional (CDU, que se diz democrata-cristã, 23,6%). Na Saxônia, fronteiriça à Polônia e à República Tcheca, e onde estão as cidades de Dresden e Leipzig, o avanço foi menor, mas também expressivo: de 27,5% para 30,6%. Lá, a CDU venceu por pequena margem (atingindo 31,9%) e a AfD ficou em segundo. Trata-se, nos dois casos, de ramos especialmente agressivos do partido. Um de seus líderes, Björn Höcke, chegou a repetir em discurso a saudação das SA nazistas, e até mesmo dirigentes nacionais do partido pediram sua expulsão.
Como já ocorrera nas eleições europeias de junho,
os eleitores castigaram os três partidos da coalizão que governa a
Alemanha. Suas marcas políticas principais são o amplo envolvimento na
guerra contra a Rússia e manutenção de um “ajuste fiscal” contra os
serviços públicos. Os social-democratas (SDP) ainda conseguiram manter-se nos dois parlamentos, mas sua proporção de votos despencou para 6,1% na Turíngia e 7,3% na Saxônia (em 2019, o SDP alcançara 8,2% e 12,4%, respectivamente. Os liberais (FDP) estão fora dos dois parlamentos, tendo obtido em torno de 1% dos votos nos dois estados. Os verdes caíram
fora do legislativo da Turíngia (3,2%, abaixo da cláusula de barreira
de 5%) e mantiveram-se por muito pouco na Saxônia (5,1%, bem menos que
os 8,6% em 2019).
Turíngia e Saxônia têm juntas apenas 6,2
milhões de habitantes – ou 7% da população alemã. Mas os sinais de que
impopularidade grave do governo liderado pelo primeiro-ministro Olaf
Scholz (SPD) estão em toda parte. As eleições para o governo federal
ocorrerão em setembro de 2025. Se fossem realizadas hoje,
social-democratas, verdes e liberais alcançariam, juntos,
pouco mais de 30% dos votos – em queda brusca frente aos 51,9% obtidos
em 2020 e sem possibilidade de formar coalizão majoritária. O declínio
pode agravar-se já no próximo domingo (22/9), quando haverá eleições
em mais um estado do Leste – o Brandemburgo. É provável que o SPD perca
o governo (tem menos de 20% das intenções de voto) e que tanto Verdes
quanto Liberais fiquem abaixo da cláusula de barreira e saiam do
legislativo. Mas… e a esquerda?
II.
“Agora, entramos na cena política”, disse a escritora, filósofa e deputada alemã Sahra Wagenknecht na primeira entrevista coletiva que concedeu após as eleições na Turíngia e Saxônia. Nascida há 55 anos na então Alemanha Oriental, ela é a fundadora e líder de um partido de que se tornou exceção notável, numa Europa em que a esquerda vive, na grande maioria dos países, prolongado declínio. Batizado provisoriamente com o nome de sua criadora, a BSW (Bündnis Sahra Wagenknecht, ou Aliança Sahra Wagenknecht) surgiu em há apenas oito meses. Mas obteve 15,8% dos votos na Turíngia e 11,8% na Saxônia. Despontou como terceira força nos dois Estados, bem à frente dos social-democratas, verdes, liberais e da esquerda tradicional (o Linke). E já chegara a 6,2% em junho, nas eleições para o Parlamento Europeu.
Tão incomuns quanto a rápida emergência da BSW são as opiniões de Wagenknecht sobre dois temas contemporâneos cruciais. Ela acredita que a ascensão da ultradireita pode ser contida, precisamente por não se tratar de uma “onda” – mas resultado direto da camisa de força em que os partidos do establishment se meteram. Suas políticas impopulares levam-nos a sangrar – a perder apoio popular continuamente. Porém, sua rendição ao neoliberalismo impede-os de buscar saídas, ao contrário do que fizeram por cerca de três décadas, no pós-II Guerra. O poder econômico e a mídia ampliam a cegueira, pois bloqueiam qualquer tentativa de sair da ortodoxia. Abre-se assim uma avenida para os extremistas, por mais bizarros que sejam.
A esquerda não cresce – e aqui está a segunda opinião disruptiva de Wagenknecht – porque afastou-se de forma arrogante das maiorias. Incapaz de formular políticas para os novos dramas populares (a precarização, por exemplo), refugia-se em seu próprio círculo. Adota como programa prioritário pautas comportamentais, que seduzem principalmente os setores intelectualizados das sociedades (em geral, mais favorecidos que a média, em termos econômicos). Passa a ser vista como parte de uma elite esnobe e indiferente – daí sua impotência. As ideias centrais da fundadora da BSW estão expressas numa longa entrevista que ela concedeu à edição de março-abril da New Left Review. Dizem muito também à esquerda brasileira e seu labirinto.
III.
Ao longo do diálogo, Wagenknecht põe a nu as dimensões da crise alemã – algo pouco apresentado nas mídias ocidentais. O governo do chanceler Olaf Sholz aderiu sem críticas ou mediações à guerra na Ucrânia e, em especial, às sanções econômicas que visavam levar a economia russa ao colapso. Berlim é o segundo maior fornecedor de armas a Kiev (17,7 bilhões de euros até abril deste ano) e generais alemães já consideraram enviar seus soldados ao front – algo que sequer Joe Biden cogitou. Os gastos com armamentos, que haviam se mantido em patamares muito baixos por décadas, saltaram a 3% do PIB – o que contribuiu para achatar as despesas sociais. Porém o choque mais grave foi causado pela decisão de interromper a compra de gás natural russo, trocando-o pelo gás liquefeito norte-americano muito mais caro (e ambientalmente daninho, pois é transportado em navios).
As contas domésticas de eletricidade subiram cerca de 40%, em dois anos. E a antes poderosa indústria alemã foi especialmente atingida. O economista Michael Roberts registra: os altos preços da energia sufocaram os gastos em inovação, transição energética e mesmo nas atividades centrais da maior parte das indústrias. Além disso, aceleraram os planos de transferir fábricas para outros países. Em maio último, por exemplo, os executivos da emblemática Volkswagen anunciaram intenção de fechar fábricas na Alemanha, pela primeira vez nos 87 anos da empresa.
Muito mais devastador, acrescenta a deputada alemã, é o efeito sobre o núcleo do tecido industrial de seu país, aquilo que tornou o modelo alemão distinto, por exemplo, do anglo-saxão. Trata-se do chamado Mittelstand, constituído por milhares de empresas médias (normalmente, entre 100 e 200 empregados), altamente especializadas do ponto de vista tecnológico e imbricadas nas cadeias produtivas – como fabricantes de partes elétricas e autopeças, por exemplo. São, em geral, de propriedade familiar. Ao contrário das grandes corporações, sua cultura empresarial não é obcecada com o lucro do trimestre seguinte – mas com o longo prazo, a próxima geração. Por isso, procuram reter seus trabalhadores especializados. O acesso ao gás russo foi, por décadas, um dos fatores que permitiram seu sucesso e reputação internacionais. Entre 2022 e 23, porém aquelas que fazem uso intensivo de energia tiveram queda de 25% em suas receitas – algo sem precedentes. Agora, iniciaram demissões em massa, o que pode ter efeitos dramáticos sobre a média dos salários, o poder de compra dos trabalhadores e a própria coesão das comunidades.
Ainda que suas consequências sejam dramáticas, a submissão de Berlim à política de guerra dos EUA apenas tornou mais grave uma crise social que se armara antes, relata Wagenknecht. A resposta da Europa à Grande Recessão de 2008-09 e à longa estagnação que se seguiu tem sido um ataque permanente ao Estado de Bem-estar social e à infraestrutura, em nome da “disciplina fiscal” e dos “orçamentos equilibrados”. Na Alemanha, o fenômeno assumiu aos poucos tons dramáticos. No grupo populacional entre 20 e 34 anos (as gerações pós-2008), uma em cada cinco pessoas já não tem uma qualificação escolar formal. A cada ano, 50 mil estudantes, deixam a escola sem concluir seus estudos. Há um déficit habitacional de 700 mil moradias. Uma contrarreforma trabalhista adotada na primeira década do século criou um duplo mercado de trabalho. Agora, 25% dos assalariados tem direitos reduzidos e salários ao menos 33% inferiores ao mediano. O sistema de trens, antes impecável, sofre atrasos constantes e foi em parte privatizado. Há três mil pontes em estado precário, e sem reparo.
O desencanto com a democracia (e a brecha para a ultra-direita) crescem porque a degradação das condições de vida da maioria é acompanhada pela sensação de que já não há amparo nos partidos do establishment. No início deste século, as duas famílias políticas que deram sentido ao sistema institucional alemão – social-democratas e democrata-cristãos – abandonaram suas antigas convicções e o que as diferenciava, ao aderirem sem críticas à ortodoxia neoliberal. Começou com o SPD. Foi no governo do chanceler Gerard Schöeder (1998-2005), frisa Wagenknect, que se descaracterizou a “economia social de mercado alemã”. Marcada por regulação, participação ativa dos sindicatos na gestão das empresas e presença de bancos locais ou comunitários (que inclusive eram acionistas influentes das indústrias), ela deu lugar a um modelo tecnocrático, orientado apenas pelas lógicas de lucro. A descaracterização do SPD aprofundou-se com o tempo, de modo que hoje seus líderes “já não têm política própria e poderiam estar confortavelmente nas fileiras do CDU ou nos liberais”. Alguma semelhança com o Brasil?
Os democrata-cristãos (CDU) descaracterizaram-se igualmente. Wagenknecht lembra que também eles sustentavam posições favoráveis aos direitos e garantias sociais. Ao contrário do SPD (muito ligado aos sindicatos), as igrejas eram a base de seus laços sociais com a população, seu canal para dialogar com a “gente comum”. Fazia parte da “doutrina social da igreja”. A nova face do partido, porém, é a de Friedrich Merz, seu atual líder. Em relação à guerra, é ainda mais beligerante que Scholz, liderando com frequência, no Parlamento, pressões sobre o governo, por maior envolvimento na campanha contra a Rússia. No terreno interno, defende um capitalismo Black Rock (megafundo do qual foi executivo): elevação da idade de aposentadoria, congelamento do salário mínimo e fim de benefícios sociais.
A dissolução das referências fica completa quando se observa a tragédia dos Verdes, cuja origem (em 1980), está associada ao vastíssimo movimento anti-guerra nuclear daquela década. Duas posturas caracterizam o partido hoje, segundo a criadora do BSW. Primeiro, a atitude mais agressiva pró-guerra e pró-OTAN de todo o espectro partidário alemão – a ponto de a ministra (verde) das Relações Exteriores, Annalena Baerbock afirmar que sustentará a participação no conflito independentemente do que pensem os eleitores (segundo sondagem recente, 65% são favoráveis a um cessar-fogo e 68% a negociações de paz). Segundo, política “ambientalista” baseada não no investimento público (os fundos públicos para transição energética estão congelados), mas em relacionar a crise climática com decisões individuais e em impor à população o ônus da mudança.
Boa parte da impopularidade da coalizão no governo deve-se, aliás, à elevação do preços do diesel para agricultores e exigência de uso de bombas de calor, muito caras, para aquecimento das residências (a medida foi revogada por sua repercussão especialmente negativa). E tudo pode ficar pior. Às vésperas das eleições na Turíngia e Saxônia, sempre em nome do “déficit zero”, o ministro das Finanças, Christian Lindner, líder do FDP liberal, insistia em novo corte nos gastos sociais, agora de 50 bilhões de euros…
Por fim, o próprio Partido de Esquerda (Die Linke), do qual a BSW surgiu no início do ano como dissidência, mostrou-se pouco capaz de confrontar o establishment, talvez por prezar demais seus vínculos como o poder. O governo da Turíngia, governado até as últimas eleições pela agremiação, somou-se, há muitos meses, ao movimento pelo envio de armas à Ucrânia.
“Até que lançássemos a BSW, a ultradireita era a única que criticava este leque de políticas”, diz Sahra Wagenknecht à New Left Review. A frase explica tanto o sucesso do novo partido quanto a cilada em que estão se trancando o antigo centro político e também a esquerda que insiste em mimetizá-lo – bem no momento histórico de seu colapso… O cientista político alemão Wolfgang Streeck, diretor emérito do Instituto Max Planck, descreve o fenômeno com ácida ironia, no livro Entre Globalismo e Democracia (ainda sem tradução para o português):
“A resistência das elites em crise e de suas escolas de pensamento desprovidas de senso de realidade parece não ter limites. Até mesmo em tempos de crise, elas insistem em manter a mesma rota, ocasião após ocasião, muito convencidas de poder arrombar o muro na próxima tentativa, com sua cabeça tão dura como o cimento”…
IV.
Sahra Wagenknecht é uma intelectual pública, um tipo cada vez mais raro nos parlamentos e governos contemporâneos. Formada em Filosofia e Literatura, publicou em 1988, ao graduar-se, o primeiro livro – um estudo sobre Goethe e sua poesia, em que ela vê uma crítica precoce do capitalismo. Chegou à militância após a leitura de Doutor Fausto, de Thomas Mann. Migrou para a Economia, tendo escrito duas dezenas de obras, entre as quais um exame da crítica do jovem Marx a Hegel, uma análise das conferências de Rosa Luxemburgo, e trabalhos teóricos voltados à intervenção política, como “Liberdade sem capitalismo”, “Os mitos modernizadores”, “Contraprograma para a comunidade e a coesão”, “Liberdade sem capitalismo” e “Contra a esquerda neoliberal” (nenhum deles foi ainda traduzido ao português). Mas este amor à cultura e à teoria não a impediram de afastar-se do que chama de esquerda lifestyle – cuja prepotência e desejo de diferenciar-se das minorias são, para ela, uma das causas do crescimento da ultradireita.
Esta atitude estaria na base do que Wagenknecht vê como ênfase exagerada nas pautas de costume. Por um lado, ela pensa, a esquerda renunciou compreender as novas realidades em que estão mergulhadas as maiorias, e a formular saídas para seus dramas atuais. Por outro, encantou-se com um novo público: a classe média que descola-se dos velhos preconceitos relacionados a sexo, gênero, “raça” e comportamento – mas que não está disposta a refletir (e, menos ainda, a agir) sobre as estruturas que produzem a desigualdade e a opressão.
O resultado é algo que – o leitor reconhecerá – ocorre também no Brasil. Salvo raras exceções, não há mais “trabalho de base”. Nas periferias, por exemplo, quase só atuam as igrejas evangélicas. Mas será fácil encontrar múltiplos “ativismos” críticos (dos partidários aos antirracistas e antipatriarcais) nos shows (às vezes caríssimos) de artistas bem-pensantes, em restaurantes e bares diferenciados (em especial, os étnicos), nas mostras de cinema, nos entrepostos de comida orgânica, nos lançamentos de livros que saúdam a condição LGBTIA+.
Surge uma cisão indesejável. Esta esquerda estilo de vida afasta-se do quotidiano popular e de seus símbolos (“Narciso acha feio o que não é espelho”…). “O ecossistema progressista rejeita tudo o que vem da cultura de massas”, como aponta, num vídeo inspirado, a comunicadora Débora Baldin. Ao mesmo tempo as maiorias, que identificam a esquerda com esta classe média descolada, veem-na não apenas como distante – mas como afetada, normativa e, em última instância, parte do establishment que as oprime.
“Ninguém gosta de que os políticos lhe ‘ensinem’ o que comer, que termos usar, como pensar”, frisa Wagenknecht. A ultradireita tem sido extremamente sagaz em preencher a brecha. No terreno comportamental, exalta seus vínculos com os aspectos mais sombrios da formação cultural e psíquica das sociedades. Ergue o espantalho da masculinidade e da branquitude supostamente ameaçadas. No campo das relações de classe, seus laços com o grande capital – e em especial, o rentismo – são notórios (vide a relação Bolsonaro – Paulo Guedes). Mas, como a esquerda não propõe outro horizonte às maiorias (por estar aprisionada por sua obsessão com a “disciplina fiscal”), é fácil aos neofascistas fazer discursos genéricos em favor do bem-estar. Ao conversar com os assistentes de um comício da AfD na Turíngia, o repórter da revista Economist notou que eles pareciam atraídos não pelo discurso de ódio aos imigrantes, mas pelo fechamentos de hospitais e ausência de professores nas escolas.
V.
A BSW e sus líder são às vezes acusados, por alguns setores de esquerda, de adotarem postura antiimigrante. Na entrevista à New Left Review, a deputada contra-ataca, ao classificar como “neoliberais” as políticas migratórias defendidas por seus opositores. ´
A partir de 2010, chegaram à Alemanha ondas sucessivas de imigrantes e refugiados. São hoje cerca de 15 milhões, pouco menos de 20% da população. Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, por exemplo, a maior parte deles tem, além de abrigo (majoritariamente, nos estados do Leste), direito a escolas e hospitais públicos. Todas as pesquisas de opinião apontam que este fenômeno está diretamente associado ao crescimento da ultradireita. Como ele coincide com o ataque ao estado de bem-estar social, abundam os casos em que os imigrantes disputam com os alemães mais pobres o acesso aos serviços sociais.
Wagenknecht pensa que a política de acolhimento fácil é generosa apenas na aparência – por dois motivos. Do ponto de vista imediato, o agigantamento da imigração, frisa ela, é resultado direto das guerras promovidas pelo Ocidente (com participação direta ou apoio da Alemanha). Os refugiados provêm, muito majoritariamente, de países (Iraque, Afeganistão, Líbia, Síria, Yêmen, Ucrânia) em que as intervenções da OTAN destruíram as relações sociais, a infraestrutura e, em alguns casos, o próprio Estado nacional). De que serve receber alguns milhões de refugiados, depois de destruir seu país e deixar para trás um número muito maior de pessoas vivendo em condições indignas?
Numa análise a médio e longo prazos, prossegue a deputada, a “política neoliberal de imigração” reforça – ao invés de amenizar – as desigualdades internacionais e as relações colonialistas. Na Alemanha, ela devasta as condições de luta e barganha do conjunto dos trabalhadores. Os imigrantes são pressionados, pelas próprias políticas públicas que supostamente os favorecem, a encontrar qualquer trabalho, o mais rapidamente possível. Tendem a aceitar salários e direitos rebaixados.
Nos países de origem, a situação é ainda pior. A imigração priva as sociedades, em geral, dos trabalhadores mais capacitados, anulando o enorme esforço social dispendido em sua formação. Um dos casos mais dramáticos é o das enfermeiras. Há cerca de um ano, o site Peoples’ Health Dispatch mostrou, em matéria (traduzida por Outra Saúde) como, para tapar buracos em sua força de trabalho, governo alemão desfalca sistemas de saúde ao redor do mundo – violando inclusive códio de práticas da Organização Mundial de Saúde.
Wagenknecht frisa que sua posição não é xenófoba. Lembra que tanto a liderança quanto a representação parlamentar da BSW são as mais multiculturais do espectro político alemão (ela mesma é filha de uma alemã e um iraniano, e alterou seu nome – de Sarah para Sahra – para deixar claro o vínculo). Propõe alternativas concretas. Em primeiro lugar, tentar interromper as guerras do Ocidente, cessando completamente a participação da Alemanha na campanha da OTAN contra a Rússia na Ucrânia e o apoio (vultosíssimo) ao massacre de Israel contra ao palestinos. Além disso, inaugurar políticas de redistribuição internacional de riquezas, com transferência obrigatórias (e não “caritativas”) de recursos para financiar o desenvolvimento sustentável dos países do Sul.
VI.
O futuro da BSW é incerto. No curto prazo dos próximos doze mses, há três deafios. Obter, no próximo domingo, nas eleições do estado de Brandenburgo (que faz o entorno de Berlim), um novo resultado positivo, quer permita chegar ao Parlamento local. Participar, em seguida, de modo que impacte o eleitorado, das negociações para formação dos governos da Turńgia, Saxônia e do próprio Brandenburgo. (O partido é essencial para formar maioria que supere a AfD; mas tem dito que não busca cargos – e que não apoiará nenhum governo que não assuma posição clara contra a guerra. Nessas condições, um impasse parece contratado).
Por fim, o partido prepara-se para as eleições federais alemãs, que ocorrerão no máximo até setembro de 2025. Nelas, o multimilionário Friedrich Merz, que liderou o CDU para posições ultraliberais, aparece hoje como favorito; mas mas políticas surpreendentes da BSW podem levá-la a exercer um papel destacado, como frisa o cientista político Antonious Souris, ouvido pela agência de notícias Deutsche Welle.
No médio e longo prazos é que tudo se complica. No Ocidente, a esquerda segue sem perspectivas claras, pelo menos desde a crise de 2008. Cada novo intento tem resultado em esperança seguida de frustração. Em 2011, a ocupação das praças espanholas levou à criação do Podemos – um partido-movimento que se embriagou com a possibilidade de dividir o poder; esqueceu sua base e sua proposta de sacudir a velha política com um banho de participação direta; e ao fazê-lo, terminou tragado. Entre 2011 e 2013, houve gigantescas manifestações pelos direitos sociais em Portugal (1 2), na Turquia e no Brasil, mas os movimentos que as convocaram e dirigiram não tinham programa claro para continuá-las (e, no caso brasileiro, nem estofo organizativo para evitar que fossem caputuradas pela direita). De 2015 a 2020, Jeremy Corbyn manteve-se na liderança do Partido Trabalhista do Reino Unido, e ao fazê-lo transformou-o numa ferramenta de reflexão política e mobilização social (especialmente dos jovens). Porém, fracassou no plano tático, ao aceitar o desafio dos conservadores para disputar uma eleição que não poderia vencer. Em 2019, os jovens e os movimentos sociais chilenos enfrentaram repressão duríssima da polícia, provocaram o fim de um governo conservador e chegaram a eleger um presidente da República e uma Assembleia Constituinte em que as forças anticapitalistas tinham ampla maioria. Mas sucumbiram em poucos meses, devido à ausência de um programa claro de mudanças e à ilusão de que, à falta dele, poderiam bastar gestos simbólicos, como a eleição de uma mulher Mapuche para a presidência da Assembleia.
Exemplos semelhantes abundam – e não é algo inteiramente novo. No 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx lembrou Shakespeare para comparar o proletariado – a classe revolucionária de seu tempo – a uma velha toupeira. Ela avança com desenvoltura sob a terra, cava a possível ruína de seus opressores mas, uma vez emersa à superfície, mostra-se cega e incapaz de encontar os caminhos que levarão à transformação social.
Ainda assim, cada tentativa acrescenta uma peça ao quebra-cabeças da reviravolta possível. Com o Movimento Passe Livre brasileiro aprendemos que, em tempos de crise, vinte centavos podem levar milhões às ruas. O Chile mostrou a força das coalizões de movimentos sociais díspares, mas sintonizados na mesma busca de vida livre das lógicas neoliberais. Com Corbyn, soubemos que os mesmos Estados que imprimem dinheiro para multiplicar a riqueza dos rentistas podem fazê-lo em favor dos serviços públicos de excelência e da garantia de ocupações dignas para todos.
Seja qual for o futuro do BSW e de Sarah Wagenknecht, estamos compreendendo com sua emergência notável que a ultradireita não nasce por geração espontânea – mas das grandes brechas abertas pelas ausências da esquerda; que é possível reparar estes vazios; mas que, para isso, os movimentos empenhados em superar o capitalismo precisam, como disse certa vez Bertolt Brecht, “saber abandonar a si mesmos”
Fonte: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/assim-suicidam-se-democracias/
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