segunda-feira, 9 de setembro de 2024

A nova morte do homem

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A nova morte do homem

Em algum momento dos anos 1960 a teoria de ponta decretou algumas mortes: do homem, “uma invenção recente”, do autor, do sujeito, da biografia. Tudo era estrutura. Nos últimos tempos, o homem vem morrendo novamente por muitas razões. Morre como Homem, sinônimo de humano, englobante de todos os gêneros. Morre como produto e produtor do humanismo, concepção que fazia do humano o centro de tudo e que está sendo fulminada pela crítica ao antropoceno, era de dominação tóxica humana. Morre como sujeito condenado pelo seu papel na história do colonialismo europeu. Humano branco passou a ser equivalente a colonizador. Morre como sujeito único do conhecimento e da criação, batido pela sua maior invenção, a inteligência artificial.

Antropólogos gostavam de uma imagem higiênica: jogar a criança fora com a água da bacia. Estará o humano sendo jogado fora com a água suja da bacia do antropoceno? A justa crítica ao antropoceno ainda é antropocêntrica, pois, que se saiba, só humano é capaz de criticar. A inteligência artificial também? Mas ela ainda não cria. Apenas recombina pensamentos humanos com os quais foi alimentada. Não é isso que faz o humano quando cria? Sim, com a diferença de que pode acrescentar alguma fagulha para além da recombinação, o que ainda não se viu na capacidade cognitiva da IA. O humano, como um dia o reverenciamos, senhor do universo e escolhido do criador, morreu.

Resta-lhe aceitar a condição de parte da natureza. Mesmo assim ainda lhe sobram alguns diferenciais: só ele pode tomar a decisão de destruir o planeta ou de salvá-lo da sua ação deletéria. Talvez as outras espécies sejam felizes sem precisar de um Shakespeare ou de um Michelangelo, mas só a humana foi capaz de produzi-los. Paradoxal, contraditório, complexo, o humano é sempre capaz do melhor e do pior. Quem outra espécie é capaz de uma crítica tão severa em relação a si mesma como a do antropoceno? Um espírito irônico diria que os cães e os gatos são silenciosamente etnocêntricos. Os gatos ainda mais.

O humano precisa renascer, reinventar-se, reconhecendo seu modesto lugar na escala universal. A crítica ao macho tóxico, autocentrado, bélico e colonizador terá de considerar, no entanto, a existência do humano como dado de realidade. Há quem veja na rejeição teórica radical ao humano apenas um rentável fundo de comércio intelectual. Morre também o homem como gênero gramatical. O plural masculino, escolha certamente masculina, englobava todos os gêneros e dificilmente se pensava a cada plural em dominação gramatical machista. Não é mais assim. A linguagem neutra exige mudanças. A redundância virou garantia de inclusão: todos, todas e todes. Poderia ser qualquer um, pois de trata de convenção, mas não foi e não será.

O humano tornou-se o principal alvo dos humanos. O humanismo renascentista e depois iluminista agoniza, condenado à morte pelos crimes de universalismo abstrato e discriminação local concreta. A proposta de universalizar princípios de não definição por sexo, cor da pele e religião sofreu um revés no campo da batalha: tudo agora precisa ser paritariamente dividido por critérios de gênero, raça (conceito invalidado pela ciência), credo e outros elementos de identidade. O humano que queria romper com os grilhões da identidade para viver muitas vidas agora reclama o conforto da sua unidade.

Até a próxima reviravolta.

*Jornalista. Escritor. Prof. Universitário.

Fonte:  https://www.matinaljornalismo.com.br/matinal/colunistas-matinal/juremir-machado/a-nova-morte-do-homem/?utm_source=Matinal&utm_campaign=f938740dd2-EMAIL_CAMPAIGN_2024_09_06_07_52&utm_medium=email&utm_term=0_-f938740dd2-%5BLIST_EMAIL_ID%5D

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