Por José de Souza Martins*
— Foto: Carvall
Ela não supre a carência criada pelos descartes de talentos que provoca
A principal limitação do debate sobre inteligência artificial é a praticamente nenhuma referência à superioridade e à necessidade da inteligência tradicional. O desencontro entre a expansão das funções da inteligência artificial e a lentidão de adaptação dos seus descartados à modernidade que ela representa responde por um doloroso processo de exclusão social, que é anticapitalista e inimigo da empresa.
A inteligência artificial nasce e prospera para suprir, e não para substituir a inteligência natural e tradicional, para completá-la e ampliar o domínio do que é inteligente sobre o que é espontâneo. Foi Gramsci, pensador italiano vítima do fascismo, quem sublinhou a importância do bom senso do homem comum na realidade social.
A inteligência artificial se desenvolve para multiplicar os efeitos econômicos e sociais do conhecimento erudito. Porém, nos vários campos de sua aplicação, ela não supre a carência criada pelos descartes de talentos que provoca.
Tampouco a inteligência artificial pode criar instrumentos, técnicas e meios que se sobreponham à criatividade do repente, da improvisação, da intuição, do senso comum sensível às informações não codificadas dos meios artificiais de inteligência. Ela não pode vencer com prontidão o prejuízo inesperado decorrente das contradições econômicas e das irracionalidades sociais.
Do ponto de vista antropológico, a inteligência artificial não é inteligente. Ela não vem primeiro. É criatura da inteligência tradicional. Falta-lhe o principal elemento da cultura e da condição humana: o reconhecimento da necessidade, da legitimidade e da probabilidade do erro. O desafio da interpretação.
Nesse sentido, só o acerto, que é próprio da inteligência artificial, é um erro. Erro dominado e controlado pela inteligência artificial não é erro porque é erro previsto, insuficiente para que seja definido como erro, como ato não inteligente. O erro e o inesperado são partes integrantes da verdadeira cultura da descoberta e da invenção, do aperfeiçoamento. Onde não existem, não há criatividade.
Os simples, sujeitos da inteligência cotidiana, são a mediação de desafios que provocam a necessidade de saber. O antropólogo português Adolfo Coelho, em estudo primoroso, destacou que ser analfabeto não é o mesmo que ser ignorante. Coisa que aqui no Brasil temos dificuldade de compreender.
Trabalhei em fábrica quando era menino e adolescente. Achava que aquela maquinaria toda, complicada, era brinquedo de adulto e de engenheiro. Em parte criado na roça, na minha ingenuidade, via e intuía coisas que eram irrelevantes para os sábios da empresa, os engenheiros e técnicos.
Foi o que aconteceu quando o demônio “apareceu” para as operárias numa das seções da fábrica, num momento de reiterada produção defeituosa que eles não sabiam explicar. O imaginário delas continha explicações que o deles não continha.
Eu via, também, embora não compreendesse, que havia uma guerra de saberes entre dois poderes da fábrica, representados pelos antigos mestres, de um lado, e os engenheiros, de outro.
Roberto Simonsen, o fundador da empresa, formado pela Escola Politécnica de São Paulo, quando chegou o tempo de modernizar o processo produtivo, intuiu que, sem os velhos mestres, os novos engenheiros não conseguiriam fazer a empresa funcionar.
Fundador da Fiesp, ele era também fundador da Escola de Sociologia e Política de São Paulo, onde lecionava história econômica do Brasil. Sabia que a ciência na produção tinha limites sem as ciências sociais, sem o diálogo investigativo com o conhecimento popular, com o senso comum, com a lógica e as regras do saber tradicional.
Enquanto a cultura empresarial da coexistência pacífica entre saberes desencontrados e de diferentes idades fosse acatada, a empresa continuaria produzindo lucros. No fundo Simonsen considerava os saberes dos simples um capital social, que estava à disposição da empresa gratuitamente.
Os filhos de Simonsen continuaram a tradição do pai. Mas uma nova geração da mesma família, em vez de assumir a direção da empresa, entendeu que assumiu o poder da empresa. Suprimiu a mediação da coexistência de saberes distanciados pela diferença de idades do conhecimento industrial.
O capital social da sabedoria antiga tinha sido descartado. Faltou o diálogo de saberes que corrigisse e equilibrasse as consequências irracionais do desenvolvimento econômico desigual. A empresa acabou fechada, depois de 80 anos de funcionamento, e demolida.
Apesar dos recursos da crescente disponibilidade de inteligência artificial e impessoal na indústria, ela criou uma espécie de orfandade do novo empresariado de senso comum pobre.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Professor da Cátedra Simón Bolivar, da Universidade de Cambridge, e fellow de Trinity Hall (1993-94). Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, é autor de “Sociologia do desconhecimento - Ensaios sobre a incerteza do instante” (Editora Unesp, São Paulo, 2022).
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