domingo, 8 de setembro de 2024

Está na hora de aceitar que finais trágicos não são mais inteligentes do que finais felizes

Por Leandro Karnal*

‘Double Portrait’ (1988-90), de Lucien Freud; seria o pintor mais valorizado ao retratar o sofrimento e a fealdade?

 ‘Double Portrait’ (1988-90), de Lucien Freud; seria o pintor mais valorizado ao retratar o sofrimento e a fealdade? Foto: The Lucien Freud Collection

Entre especialistas em arte, a dor e a solidão gozam de maior ibope do que a felicidade e a harmonia.


O rapaz sofria muito. O foco central da sua dor era Charlotte. As cartas dele estavam tomadas pela agonia do amor não correspondido. Ao final, o apaixonado se suicidou com um tiro de pistola. O livro Os Sofrimentos do Jovem Werther foi escrito por Goethe e teria causado uma sequência de suicídios pela Europa. Nunca houve um estudo denso para avaliar se existiu um “efeito Werther”. Talvez seja uma lenda urbana. Aprendi na escola que a obra despertou uma onda de pessoas usando verde e matandose por causa da personagem.

Se Charlotte tivesse correspondido ao angustiado amante, ele teria uma existência plena? Teólogos e filósofos desconfiam de pessoas que centram o total do sentido da vida em outra pessoa. A paixão esfria, o companheirismo emerge ou não, a temperatura amorosa diminui, o cotidiano pode até ser tranquilo, todavia sempre povoado de pequenos ou grandes desentendimentos. Aliás, amor verdadeiro e sólido, sem oposição de rivais, amantes ou da família, eliminaria quase toda a literatura do mundo.

Em 1938, com o fascismo em marcha rápida, o Brasil também era uma ditadura. Tomado por outras questões pessoais, emerge a visão pessimista de Carlos Drummond de Andrade no poema Elegia 1938 (publicado no livro Sentimento do Mundo). Sintam, cortando a alma, o aço frio do mineiro: “Trabalhas sem alegria para um mundo caduco, onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo. Praticas laboriosamente os gestos universais, sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual. Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção”. Depois, ele reclama que a literatura estragou o amor; o telefone diminuiu nossa chance e tempo de semear algo; a vaidade nos domina e somos impotentes diante do mundo real, pois não podemos dinamitar, sozinhos, a ilha de Manhattan.

O problema de algumas coisas de Drummond (e de quase toda obra de Augusto dos Anjos) é a maneira genial como souberam estruturar a falta de sentido e o vazio. Os melancólicos parecem ter mais talento do que os entusiasmados. Poesia alegre parece mais imbecil do que os Versos Íntimos, de Augusto dos Anjos, a mais devastadora paulada no otimismo.

Seria lógica biográfica? Goethe ainda não se tinha casado com a corajosa Christiane Vulpius (que enfrentou soldados de Napoleão). Talvez seu Werther seja apenas sua solidão tornada romance epistolar. Augusto dos Anjos e Carlos Drummond teriam sido felizes no amor? Olho para as fotos de Dolores Dutra (esposa do mineiro) e tento adivinhar algo além de alguns versos feitos pelo marido. Isso também existiria no olhar de Ester Fialho, cônjuge de Augusto dos Anjos? Vejam que estou em uma perspectiva conservadora: que as musas inspiradoras dos grandes poetas citados sejam suas respectivas esposas... Isso não valeria para Dante Alighieri, eternamente apaixonado por Beatriz, com quem nunca compartilhou intimidade.

Meu ponto, aqui, é em caminho distinto. Alguém com traços melancólicos e depressivos expressa com genialidade sua solidão, seu vazio ou seu desespero. Nós, observando o gênio na escrita ou na dor, passamos a traduzir como verdade o que é pura subjetividade, ou seja, a percepção do artista a partir do seu momento e da sua idiossincrasia.

Eu diria até mais: especialmente entre especialistas em arte e críticos, a dor, o desespero e a solidão autodestrutiva gozam de maior ibope do que a felicidade e a harmonia. Há uma desconfiança em relação às flores do jardim de Monet. Parece existir maior simpatia quando Francis Bacon ou Lucien Freud pintam o sofrimento e a fealdade. A peça teve um desenlace feliz? Não terminou, como o Hamlet, em massacre na Corte de Elsinore? Houve um final triunfante com os protagonistas se beijando? Amanhã sairá: “Autor superficial tinge de rosa o drama humano em texto fraco e cheio de chavões”. Parece que a originalidade costuma ser associada ao desespero. O artista deve mostrar sempre o mais terrível de cada um de nós. Devemos continuar “esperando Godot” para sempre? A infelicidade, curiosamente, também pode ser constituída em zona de conforto. Se formos críticos a sentimentos lineares e aos opioides da alma, deveríamos incluir a tristeza que nos garante que nada vale a pena e que a luta é inútil.

Em resumo: quando eu leio Kafka, Dostoievski, Schopenhauer ou os citados versos de Augusto dos Anjos, não percorro uma fórmula universal e aplicável. Trata-se de observar uma determinada visão de mundo, não um caminho para definir meu humor. Está na hora de aceitar que finais trágicos não são mais inteligentes do que finais felizes e que a cor existe na vida ao lado dos tons plúmbeos. Tristeza e alegria são versões da jornada. Importante: nada do que eu pensei se aplica à depressão, que é uma doença, não uma identificação estética ou literária. Insisto na virtude da esperança, especialmente quando surge a dor.

 *Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Fonte:  https://www.estadao.com.br/cultura/leandro-karnal/esta-na-hora-de-aceitar-que-finais-tragicos-nao-sao-mais-inteligentes-do-que-finais-felizes/

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