domingo, 15 de setembro de 2024

Irmã Josefa e a sentença biológica da menopausa a uma freira moderna

Por Leandro Karnal

 Quadro de Jan van Helmont, 'Portrait of the sisters of the convent of the Black Canon Augustinian nuns in Antwerp'

 Quadro de Jan van Helmont, 'Portrait of the sisters of th
convent of the Black Canon Augustinian nuns in Antwerp'  
Foto: Wikimedia

‘Não fui mãe por opção, agora não serei por impossibilidade’, refletiu a religiosa após a constatação de exames

Irmã Josefa era uma religiosa de 48 anos. Sua vocação foi muito precoce e sempre se sentiu bem no colégio de freiras onde lecionava português. Durante o noviciado, uma colega tinha narrado, um pouco pudica, que havia manchado com sangue menstrual um lençol. A Mestra de Noviças sorriu de forma afável e explicou: “É um fato natural e não ofende a vontade de Deus. Nosso corpo é um dom. No seu caso, que pretende entrar na Congregação e fará voto de castidade, será uma lembrança mensal de que você poderia ser mãe, mas renunciou a isso para se entregar a mais pessoas com seu trabalho de professora e de freira. Uma vez por mês, Deus a lembrará que toda escolha implica perda. A ideia alegrou a jovem incomodada e trouxe uma paz beatífica para Josefa. Décadas depois do noviciado, tendo proferido seus votos solenes, a Irmã Josefa ainda sorria quando seu ciclo se anunciava. “Natural e divino, lembrança do que renunciei por amor ao Amor Primeiro” – ela pensava com certa poesia.

Era o meio de setembro e a primavera se anunciava nas camélias diante da portaria do colégio. “O pólen afetaria a rinite da Madre, e a Irmã Imaculada teria menos dores nas articulações com o fim do inverno”, meditava ao andar. Só então se deu conta de algo novo: sua menstruação estava atrasada uma semana. Evitou apegar-se à ideia. Não era relevante. Riu internamente ao pensar que alguém pudesse supor que ela estaria grávida. A missa transcorreu normal, as aulas foram comuns. Na hora do último ofício da comunidade, pensou de novo no atraso inédito. Rezou, tranquilizou-se, tomou um chá de cidreira e adormeceu.

Passados alguns dias, abriu-se com a Superiora e marcaram uma médica que atendia o colégio. Irmã Josefa fizera faculdade e lia obras de literatura, considerava-se uma freira moderna e, mesmo assim, sentiu discreto constrangimento durante o exame. A doutora fez perguntas e solicitou sangue e urina como parte da avaliação. Alguns dias depois, o diagnóstico: a religiosa entrara na menopausa, de um tipo tranquilo, sem fogachos, angústias ou oscilações de humor. Simplesmente... não menstruaria mais.

Durante o terço de sábado, ao louvar a Mãe de Jesus muitas vezes, veio a ideia: “Nunca terei um filho”. Veja, querida leitora e estimado leitor, Josefa sempre foi feliz com sua vida e seus votos. Porém, de repente, permitiu-se um questionamento: “Eu não fui mãe por opção, agora não serei por impossibilidade”. O que tinha sido um voto livre se tornara uma sentença biológica.

O padre falou no sermão sobre o livre-arbítrio. Inteligente, Irmã Josefa contra-argumentava no escaninho da alma: “Que escolha eu tenho? Serei virtuosa por falta de oportunidade?” O fato natural e humano tinha trazido uma pequena serpente ao Éden da consagrada.

Chegou a festa da Virgem das Dores, em 15 de setembro. A congregação de Irmã Josefa era muito dedicada à memória das agonias do Imaculado Coração de Maria. “Uma espada transpassará seu coração”, tinha profetizado o velho sacerdote em Jerusalém. Ao cantar o hino que falava da Mãe junto à cruz, “Stabat Mater”, Irmã Josefa chorou intensamente. As confreiras se admiraram da fé piedosa e intensa da colega, que vertia lágrimas ao contemplar a “Pietà”. Sim, ela tinha muita fé, sempre tivera. Hoje, no entanto, Josefa chorava porque, estranhamente, não teria a dor ou a alegria de um filho. Maria viu nascer, criou, angustiou-se, acompanhou o drama junto à Cruz. Por fim, contemplou o Filho ressuscitado. Ela, Josefa, nunca geraria, jamais educaria e seria privada de um rebento. O Deus que a lembrou por décadas que ela poderia ser mãe parecia se calar durante a menopausa. Ao que ela, de fato, tinha renunciado? Não engravidou quando poderia, jamais viveria a maternidade agora e lamentava esta nova fase estéril. Era uma videira seca, uma fonte que cessava de correr no monte, o solo árido de uma velhice longa com rosários intermináveis e alunos entediados.

Confessou-se ao padre na sexta. Considerava seus pensamentos recentes uma rebeldia enorme contra o Criador. O sacerdote, de costume muito sério, deixou escapar uma pequena risada. A penitente ficou escandalizada, por ver o padre Alexandre rir naquele momento sacramental. O presbítero falou da humanidade, dos limites dados pela existência no mundo, da misericórdia infinita de Jesus e do sorriso de Nossa Senhora para sua filha Josefa. Inundou a alma ressequida da freira com a água das colinas eternas e, quando conferiu a absolvição, Irmã Josefa voltara a nadar de braçadas amplas na água do seu batismo. Deus a amava (fértil ou não) e aceitava o sacrifício de vida, não de sangue tão somente. Reconciliada com seu corpo e seu Criador, Josefa dormiu profundamente. Fé sem regras, no seu duplo sentido, sentimento de fim de limites condicionais, maior liberdade: assim Josefa sentiu um véu subir e contemplou o mundo face a face. Ela vivia o deleite de tornar todos os seres seus filhos, dando-lhes um amplo abraço cósmico, em uma comunhão de esperança. 

* É historiador, escritor, membro da Academia Paulista de Letras, colunista do Estadão desde 2016 e autor de 'A Coragem da Esperança', entre outros

COMENTÁRIO: 

O texto de Leandro Karnal oferece uma visão profunda sobre o conflito entre escolha e biologia na vida de Irmã Josefa. Ao retratar a menopausa como uma "sentença biológica", Karnal expõe a fragilidade das escolhas humanas diante das inevitabilidades da vida. A reflexão de Josefa sobre a maternidade não vivida ressoa como uma crítica à idealização da virtude religiosa em contraste com as realidades físicas. No entanto, a perspectiva de Karnal pode ser vista como uma idealização que limita a compreensão da mulher na espiritualidade, sugerindo que a fé, embora consoladora, pode não abordar completamente as complexidades e frustrações humanas. Isso nos convida a reavaliar como religião e biologia se entrelaçam, oferecendo uma oportunidade para considerar uma perspectiva mais abrangente sobre o papel da mulher na espiritualidade e na sociedade.

A pintura de Jan van Helmont,"Portrait of the Sisters of the Convent of the Black Canon Augustinian Nuns in Antwerp," captura um instante de introspecção e vida monástica, refletindo a rigidez e a serenidade da vida religiosa. No contexto do texto de Leandro Karnal, a obra serve como um elo visual que reforça a ideia de uma vocação que, apesar de profundamente dedicada, é permeada por limitações impostas tanto pela escolha quanto pela biologia. A imagem das freiras, imutáveis em seu propósito, contrasta com a inquietação interna de Irmã Josefa, evidenciando como o ambiente monástico pode ser simultaneamente um refúgio e uma prisão. Esta pintura, portanto, não apenas ilustra um momento histórico, mas também nos convida a refletir sobre as tensões entre idealização e realidade, entre o desejo de transcendência e as restrições físicas e emocionais que enfrentamos.

Fonte: https://www.estadao.com.br/cultura/leandro-karnal/irma-josefa-e-a-sentenca-biologica-da-menopausa-a-uma-freira-moderna/ 

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