domingo, 15 de setembro de 2024

Como discutir com uma criança bêbada

Por Ricardo Araújo Pereira*

No espaço há o desenho de um filhotinho de cachorro sendo feito de sanduíche, como se uma salsicha fosse no meio de um pão de cachorro quente. Está sendo segurado por uma mão. Vemos só este braço branco e o cão em meio ao pão que tem cor bege. Perto do focinho preto do cachorro está escrito AS IDEIAS e próximo do rabo dele também está escrito DE TRUMP... com três pontinhos.
 Ilustração de Luiza Pannunzio para coluna de Ricardo Araújo Pereira de 15 de setembro de 2024 - Luiza Pannunzio/Folhapress

Donald Trump tem elementos de infantilidade e de embriaguez

O que gera maior perplexidade, no discurso de Donald Trump, é que tem elementos de infantilidade e de embriaguez. Parece que estamos ouvindo uma criança bêbada —uma ideia muito perturbadora.

Tudo é tremendo: "Os maiores comícios de sempre", "eles cometeram a maior fraude de todos os tempos", "nunca ninguém viu nada assim". Há também o recurso de argumentos de autoridade pueris: "Todo o mundo sabe que eles são mentirosos", "muita gente tem me dito que eu sou mesmo bom".

E por fim temos os argumentos do mundo da fantasia: "Eles matam bebês recém-nascidos", "os imigrantes estão comendo cães em Springfield, Ohio".

Em ambos os casos, os jornalistas intervieram dizendo que não há um único Estado americano em que seja legal matar bebês recém-nascidos" e que as autoridades de Springfield afirmam não haver qualquer relato fidedigno de rapto e ingestão de animais de estimação por imigrantes naquela cidade. O problema é que desmentir uma criança bêbada é uma tarefa complexa.

Contrapor fatos a fantasias não funciona. Fatos e fantasias são unidades monetárias de países diferentes —ou, talvez melhor, de planetas diferentes. Quando uma criança nos pergunta por que é que o Papai Noel ainda não chegou, nós não avançamos com fatos sobre a inexistência do Papai Noel. Compomos uma história em que o Papai Noel, aos comandos do seu trenó voador, tem de fazer paradas em várias casas de outras crianças antes de chegar à nossa.

O ideal, por isso, não é apresentar depoimentos oficiais que negam a ideia de que os imigrantes se dedicam a comer os animais de estimação dos residentes em Springfield. O que há a fazer é mostrar um documento segundo o qual os imigrantes têm, de fato, cozinhado animais de estimação, mas apenas no caso em que esse animal é um dragão. E juntar algumas receitas de arroz de dragão, moqueca de dragão etc.

A criança fica estupefata por duas razões: por verificar que a nossa capacidade de fabulação é superior à dela; por ser obrigada a reconhecer que aquilo de que se queixava é, afinal, uma coisa boa. Matar dragões é geralmente entendido como positivo. É a atividade mais heróica de sempre. Nunca ninguém viu nada assim.

* Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento. É autor de “Boca do Inferno”. 

Fonte:  https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ricardo-araujo-pereira/2024/09/como-discutir-com-uma-crianca-bebada.shtml

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