Por Paulo Maciel (UFOP)
De Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) à Davi Brito (vencedor do BBB 24), a celebridade pode ser vista como um dos signos de distinção social que emerge com a formação burguesa e, sendo assim, pode ser encarada como parte da modernidade e de suas transformações ao longo do tempo. Nesse sentido, as duas encarnações da celebridade informadas acima servem como balizas históricas de seu percurso desde meados do século XVIII até a terceira década do século XXI. A aproximação entre Jean-Jacques Rousseau e Davi Brito, de saída, nos mostra como a celebridade opera socialmente nivelando e hierarquizando, elevando e rebaixando, as qualidades pessoais ou individuais em razão de seu alcance público.
A definição do que é a celebridade é uma tarefa complexa e, por esse motivo, nos propomos aqui pensar a noção do ponto de vista da sua performance, ou seja, estou mais interessado no que ela faz com os indivíduos e as sociedades. Afinal de contas, ela pode ser descrita como uma formação cultural que faz ver e falar de si. Um olhar panorâmico na bibliografia disponível em língua portuguesa revela a dificuldade dos autores e das autoras em estabelecer um sentido para essa coisa. Em linhas gerais, os textos tratam mais dos limites conceituais e formais do objeto, conforme salientou Renato Ortiz em “As celebridades como emblema sociológico” (2016). Para o autor, as celebridades são fruto da modernidade e se distinguem de outras formas de distinção social mais tradicionais e ou localizadas como, por exemplo, o “renome” ou a “reputação”, que operariam dentro de um grupo limitado de pessoas, e a “fama”, que remeteria a “um campo com fronteiras bem delineadas”. Ao contrário delas, a celebridade pode ser caracterizada pelo fato de sua publicidade transcender o horizonte dos grupos particulares e, para que isso aconteça, ela sempre foi dependente do desenvolvimento dos meios de comunicação. Meios que contribuíram, desde meados do século XVIII, para a constituição de um espaço público renovado e ampliado (Ortiz, 2016: 675).
Tendo a concordar com a perspectiva de Antoine Lilti (2018) de que a invenção da celebridade não é uma novidade de nosso mundo contemporâneo encarada, muitas vezes pela bibliografia, como signo ou marca distintiva da corrosão do caráter, da espetacularização da sociedade e/ou do encolhimento da “esfera pública”. A favor de sua tese, Antoine elencou alguns motivos que teriam contribuído para a sua formação entre os anos de 1750 e 1850: a ampliação do alcance público da impressa, especialmente dos jornais que se tornam veículos de grande circulação, o aparecimento do ideal oitocentista da autenticidade do eu, que atingiu seu auge com o romantismo, e a multiplicação na Europa e nos Estados Unidos de instituições artísticos-culturais libertas do patrocínio aristocrático e da proteção real, devido à constituição de um mercado livre de bens simbólicos, mudanças que transformaram “de modo profundo a maneira como um indivíduo podia ser conhecido por seus contemporâneos” (Antoine, 2018: 23).
Ao mesmo tempo, partilho da distinção elaborada por Renato Ortiz entre a invenção da celebridade e a instituição de uma cultura da celebridade. O autor salientou que celebridade faz parte de um conjunto de termos recentes cujos traços podem ser rastreados no passado. Porém, mesmo desfrutando de prestígio no mundo burguês em gestação, sua instituição no Ocidente se concretizou com a entrada em cena da cultura de massas (Ortiz, 2016: 674). Portanto, aos elementos formadores da cultura da celebridade elencados anteriormente precisamos acrescentar mais esse, afinal de contas, para o autor, a sua formação se deve à ascensão do homem médio ao espaço público e a democratização da fama nas sociedades contemporâneas.
Essa relação da cultura da celebridade com a cultura de massa do século XX costuma ser traduzida pelos críticos como um sinal de seu pertencimento ao processo crescente de democratização promovido pelas mídias. Nesse processo, os veículos de imprensa e cultura (jornais, revistas, rádio, televisão e internet) se distanciaram cada vez mais da “grande personalidade” ao ampliarem o campo de sua visibilidade para além de alguns “membros de uma elite de sangue, de beleza, de destreza e competência”, para abarcar o “sonho de milhares” (França, 2014: 2). Desta maneira, a cultura da celebridade pode ser compreendida como uma resposta política à invisibilidade dos estratos baixos e do cidadão ordinário nas sociedades hierárquica ou, então, como um signo da sua alienação em grande escala.
Mais recentemente, a cultura da celebridade tem sido relacionada ao desejo abstrato da visibilidade por ela mesma, uma vez desligada dos “feitos e das obras” (França, 2014: 31). Boorstin define a cultura contemporânea da celebridade da seguinte maneira: “a celebridade é uma pessoa conhecida pelo fato de ser bastante conhecida” (Boorstin, 1971: 57 apud Ortiz, 2016: 684). A tautologia do conceito aponta para a crítica contemporânea da cultura da celebridade enquanto uma forma de vida caracterizada pela “ausência de qualidades”. Nesse sentido, ante ao “homem sem qualidades” é como se a mídia fosse o agente responsável por transferir para os indivíduos seu próprio carisma. Entretanto, sabemos que nem todas as personagens e pessoas que aparecem na mídia se tornam celebridades. Uma parte da bibliografia argumenta que não basta a ampla exposição. É preciso existir algo próprio de um determinado indivíduo que seja objeto do reconhecimento público; é preciso ter carisma. Carisma que é a qualidade de uma relação antes que emanando meramente de um indivíduo, pois ela é fruto do reconhecimento popular midiático que só pode ser aferido quantitativamente por meio do número de likes e de seguidores nas redes sociais, bem como dos vários intermediários entre as celebridades e a vida pública, desde os seus patrocinadores até a equipe de gerenciamento de seu nome e de sua imagem.
Um dos primeiros autores célebres a refletir sobre o “paradoxo das celebridades” ou a respeito da sua ambivalência estrutural foi Jean-Jacques Rousseau, que procurou através dos jornais e de suas falas públicas associar seu nome de autor a sua pessoa, como se os textos publicados pelo escritor “fossem emanações imediatas de sua subjetividade” (Lilt, 2018: 238). Essa associação direta entre autor e obra esbarra mais uma vez na presença de vários intermediários (editores, corretores, livreiros, críticos etc.) do mundo do livro e na mistura das estratégias comerciais com as questões intelectuais. A sua defesa da interseção entre vida e obra se torna um elemento fundamental para caracterizar o rosto público do autor genebrino e, ao mesmo tempo, a sua suspeita sobre a autenticidade do eu moldado segundo o desejo da opinião pública. Sendo assim, Rousseau não escapou “do desenvolvimento da cultura visual da celebridade”, pois sua imagem circulava amplamente com as gravuras alimentando o sonho de seus fãs. A sua busca pelo reconhecimento público da interseção entre sua obra e sua vida acabou se virando contra ele, que lamentou, mais tarde, a perda do controle sobre seu nome e sua imagem tornando a autenticidade impossível (Lilt, 2018: 238-239).
De um lado, a celebridade individualiza e autentica o ser retirado do anonimato, e de outro lado, acaba se interpondo entre ele e os seus contemporâneos. Perante a ameaça da cultura de massa no século XX e, sobretudo, das mídias digitais no começo do século XXI, os estudiosos da cultura das celebridades desenvolveram tipologias destinadas a discriminar diferentes formas de ser ou se tornar celebre traçando as particularidades de sua manifestação como, por exemplo: “celebridade conferida” (se deve a ocupação de um lugar de destaque por determinados indivíduos como, por exemplo, nascer na família real britânica), “celebridade adquirida” (em função de um desempenho tomado como exemplar ou de uma qualidade excepcional) e “celebridade atribuída” (a visibilidade ou exposição midiática) (Rojek, 2008).
Em contraponto a “celebridade adquirida” de J. J. Rousseau, que estaria baseada na sua obra e nas suas realizações como escritor e intelectual, temos a “celebridade atribuída” de Davi Brito. Não penso que esses diferentes tipos de cultura da celebridade se excluam, afinal de contas o rosto público de Rousseau provavelmente era recebido de modo diverso pelo público que podia se interessar por sua obra, por sua pessoa, ou, simplesmente, pelo fato de aparecer constantemente nos veículos de impressa. Neste sentido, a distinção elaborada em função da “natureza” da celebridade deixa de lado, geralmente, a operação em comum. Mas, com a internet, que se tornou o principal meio de produção, reprodução e circulação da cultura da celebridade hoje, a sua manifestação se renovou com a globalização do espaço midiático, com a possibilidade da interação pela mídia muito superior ao que existia antes, com uma mudança significativa dos conceitos/conteúdos de público e privado – estamos diante da redefinição das próprias esferas – e com uma visibilidade sem precedentes. Ela se tornou a Hidra de Lerna.
Lendo as notícias publicadas na internet a respeito de Davi Brito, vencedor do BBB 24, podemos perceber como a “celebridade atribuída” está diretamente relacionada aos milhões de espectadores do programa e a ampliação do número de seus seguidores no Instagram (O globo online, 17/04/2024). Por outro lado, as notícias destacam as qualidades que teriam feito dele vencedor: sinceridade, humildade, autenticidade e tenacidade. Os valores positivos se repetem instituindo seu rosto público à imagem do eu neoliberal e, ao mesmo tempo, do “povo brasileiro”. Tal qual o povo brasileiro, Davi não teria desistido diante dos inúmeros obstáculos que enfrentou ao longo de sua estadia na casa (Estadão online, 17/04/2024).
O próprio arranjo do BBB 24 reforça a distinção entre famosos (as) e anônimos (as), pois os (as) participantes foram divididos em dois grupos: os vips e os anônimos. Davi, ao alcançar a celebridade, pode mudar de lado. O “reality show” reafirma a visão de mundo de interesse da mídia em consonância com o desejo do público. Davi fazia parte dos anônimos. Ao longo de sua estadia na casa, enfrentou diversas vezes os “participantes vips” do programa e acabou vencendo diversos paredões para os quais foi indicado. Vale citar a confissão de Davi a Tadeu Schmidt: “Foi uma trajetória muito dificultosa, que apresentou muitos espinhos. Eu pensei em desistir” (…) (Estadão online, 17/04/2024).
Penso que não podemos menosprezar os diferentes usos culturais e sentidos sociais atribuídos às celebridades. No caso de Davi, por exemplo, significava em seu discurso o acesso à casa própria, a possibilidade de ascensão social e cursar uma universidade, conforme relatou: “o menino que vendia picolé no ônibus agora está lutando por um sonho que parecia inalcançável” (Estadão online, 17/04/2024).
Davi é um jovem negro e sua vitória, para uma grande parte do público, representou um modelo positivo em contraponto com as estatísticas. De fato, nos últimos tempos, a celebridade se tornou mais plural e diversa, porém, seu modo de operação não mudou muito. Morador da periferia de Salvador, entrou na casa com os votos do público que o escolheu entre os demais candidatos e candidatas. Não podemos esquecer que o eu vencedor vai sendo construído pela mídia de acordo com a notícia. As notícias destacam as qualidades de Davi e, ao mesmo tempo, as pesam segundo o índice de audiência e sua torcida nas redes sociais. O reconhecimento público de seu nome é mediado pelo noticiário, de acordo com a forma do desejo impulsionado pela cultura neoliberal, que os torna numa forma de capital individual que vale milhões – mais de 5,1 milhões de lares viram o programa diariamente (Negócios SC online, 18/04/2024), Davi saltou de 50 seguidores no Instagram para 8,6 milhões (O globo online, 17/04/2024). O seu rosto público tem a forma da notícia e, nele, reúne qualidades convertidas na posse de milhões adquiridos com os prêmios e na crescente quantidade de fãs.
A celebridade faz parte da mitologia burguesa, pois, segundo comentou Roland Barthes, ela contribui para fixar de uma vez por todas a hierarquia das posses (Barthes, 1985: 175). Nesse sentido, ela naturaliza a desigualdade de acordo com os parâmetros contemporâneos da ideologia neoliberal, como nos informa o discurso midiático de Davi a respeito das peripécias e das características exigidas do eu vencedor. Ele diz que ganhou com a ajuda do Senhor, logo, teria sido o escolhido entre os demais para ter garantida essa benção. Dessa forma, a ascensão social conquistada com os prêmios é justificada transcendentalmente. Foi Deus que lhe deu força para vencer os obstáculos apresentados ao longo do programa e sua pessoa pública se torna uma forma de encarnação da “justiça social”, segundo O Globo online (17/04/2024).
De acordo com Chris Rojek (2008), a celebridade adquirida surgiu com a ampliação da esfera pública, o relaxamento de padrões centralizados e coercitivos de sua encarnação pela mídia, impulsionando fatores que contribuíram para o aumento da competitividade por esse tipo de capital sociocultural. A trajetória midiática de Davi faz parte desse aumento da competitividade por esse capital na sociedade contemporânea. O rosto público estampado no noticiário deve se mostrar realizado e ser transparent, revelando, em sua aparição pública, a suposta natureza do (caráter) vencedor.
Vale observar que, no Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1983), Rousseau nos oferece algumas pistas para pensar na interdependência sugerida aqui entre a cultura da celebridade e a da desigualdade. Na sua fabulação da “festa primitiva” que institui um espaço-tempo coletivo, o autor nos conta que do corpo coletivo “primitivo” que canta e dança reunido em torno da grande árvore se destacam alguns indivíduos dos demais em função de suas maiores aptidões para o canto e ou para dança. Por esse motivo, acabariam sendo transformados em objeto de estima pública. A estima pública convertida em espetáculo cinde o corpo coletivo entre “atores” e “espectadores” revelando assim a desigualdade nascente entre os homens.
Neste sentido, a celebridade pode ser encarada como um signo que serve para justificar a hierarquia, naturalizando, no mesmo movimento, a desigualdade no interior de um dispositivo organizado segundo a distinção entre vips e não vips. Desde meados do século XVIII, a função social, política e econômica da celebridade é justificar uma espécie de desigualdade como sendo um fato inalterável, pois a distinção aqui depende da distribuição natural das qualidades individuais na sociedade. Portanto, ela não representa uma ameaça real à forma desigual do jogo, muito pelo contrário, reforça o modelo vigente de distribuição das posses, abrindo espaço para a inclusão do “povo” no mundo dos famosos, mesmo que temporariamente. A cultura da celebridade, nos jornais, na televisão, na internet em geral hoje, revela a ambivalência de sua face de Jano, formada tanto do impulso democrático quanto da força concentradora do capitalismo, que resiste a sua ampliação. Na mídia atual costuma servir à encenação da vitória do “povo”, segundo os termos da ideologia neoliberal. O rosto midiático da celebridade é um caro vazio para que, assim, possa transparecer, em sua superfície refletora, o sonho de milhões.
Referências
BARTHES, Roland. (1985). Mitologias. São Paulo: DIFEL.
FRANÇA, Vera et al. (2014). Celebridades do século XXI: transformações no estatuto da fama. Porto Alegre: Sulina.
LILT, Antoine. (2018). A invenção da celebridade (1750-1850). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
ORTIZ, Renato. (2016). As celebridades como emblema sociológico. Sociol. Antropologia, v. 06, n. 03, p. 669-697.
ROJEK, Chris. (2008). Celebridade. Rio de Janeiro: Rocco.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. (1983). Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural.
Sobre o autor
Paulo Maciel (Paulo Marcos Cardoso Maciel) é professor do Departamento de Artes Cênicas (DEART) e do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Atualmente preside a Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (ABRACE).
Fonte: https://blogbvps.com/2024/09/16/serie-mitomanias-mitologias-celebridades-por-paulo-maciel/
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