Por Gabriel Zorzetto
Neurocientista estreia na ficção científica com ‘Nada Será Como Antes’, em que imagina uma corrida contra uma tragédia mundial, fala sobre as chances de extinção da raça humana, afirma que estamos ‘em um beco sem saída’ e celebra a liberdade oferecida pela literatura; veja vídeo
Miguel Nicolelis ouvia música clássica momentos antes de receber a reportagem do Estadão para um entrevista em sua casa, na agradável região do Pacaembu, em São Paulo. É um dos hobbies favoritos do professor e neurocientista, também um ávido leitor e nadador. O apreço pelo esporte aquático, aliás, nasceu na pandemia de covid-19 e tornou-se, mais do que tudo, uma luta contra um trauma de infância, instaurado quando o pequeno Miguel viu seu primo ser salvo de um afogamento pelo tio. O medo da água se arrastou por décadas, mas agora chegou ao fim.
Maior é a preocupação com o futuro da humanidade, tema de seu novo livro, Nada Mais Será Como Antes (Ed. Planeta/Minotauro), ficção científica com altas doses de realismo no qual ele traça o mundo em 2036 à beira da catástrofe, fruto da falta de cuidado com o meio ambiente.
A mente de Nicolelis, capaz de armazenar a mais variada gama de informações, pesquisa há 40 anos os mistérios do cérebro humano. Reconhecido internacionalmente, o paulistano de 63 anos (e palmeirense fanático) tem no currículo a invenção da interface cérebro-máquina, que permitiu ao jovem paraplégico Juliano Pinto, usando um exoesqueleto robótico, desferir o chute de abertura na Copa do Mundo do Brasil em 2014 – cena eternizada em um quadro na casa do professor Emérito da Universidade Duke (EUA) e fundador do IIN-ELS, em Natal-RN, responsável por capacitar profissionais na área.
Para você
Nesta entrevista, Nicolelis falou sobre a estreia no gênero literário e abordou uma série de temas, como o embate entre Elon Musk e o Poder Judiciário do Brasil; as possibilidades de extinção da espécie humana; o impacto do uso de aplicativos no cérebro; sequelas da covid-19 e inteligência artificial. Ele ainda criticou o historiador israelense Yuval Harari e definiu a ascensão dos coachs na sociedade como uma “tragédia”.
O senhor mora há muitos anos nos EUA. Como divide sua vida entre lá e São Paulo?
São Paulo é a minha cidade favorita no mundo. Eu já morei em vários lugares no mundo e nunca encontrei um lugar que eu me sinto tão bem como em São Paulo. Porque não há lugar no mundo onde eu como tão bem. Claro, minha família está aqui. Tem o Palmeiras, né? Como eu vou viver sem o Palmeiras? Mesmo com todos os problemas - não só a poluição atmosférica, a poluição sonora também. Eu moro há 35 anos numa cidadezinha [Durham, na Carolina do Norte] com 300 mil habitantes, no meio de uma floresta, no campus da universidade. Quando chego aqui, tem dias que eu não consigo dormir. Mas, no geral, as vantagens são maiores do que os problemas.
O senhor costuma fazer projeções bem reais da condição humana. Por que decidiu agora escrever um livro de ficção científica?
Um pouco antes da pandemia, talvez o meu melhor amigo americano falou assim: ‘você tem ideias muito interessantes sobre como o cérebro está sendo influenciado pelo mundo moderno. E as pessoas têm muito medo de ler livro científico. Elas acham que não vão entender, que o jargão é muito complexo e que os cientistas nem sempre conseguem se expressar coloquialmente. Por que você não escreve um livro de ficção científica?’. Cheguei à conclusão que era uma boa ideia e comecei. Só que quando a pandemia aconteceu, calhou de eu ter mais tempo, e eu percebi que algumas das minhas ideias estavam se manifestando durante a pandemia. O processo de tribalização da humanidade, onde você forma novos grupos sociais que ferrenhamente se adequam a alguma abstração mental, como por exemplo, a de que a cloroquina vai funcionar ou que a Terra é plana. Essa formação de milhões de grupos nas redes sociais que não têm mais nenhum contato com a realidade tangível. Apesar do livro se passar em 2036, eu estou brincando com meus amigos e o que era para ser só um livro de ficção científica está virando um ensaio jornalístico, porque muitas das coisas que eu previ que poderiam acontecer daqui a 10, 12 anos estão acontecendo agora.
Por exemplo?
Esse embate do verdadeiro poder que manda no mundo com os governos nacionais. Acabamos de ver o embate de um dos overlords da Big Tech [Elon Musk] com o Judiciário brasileiro. E é um embate que repercutiu no mundo inteiro. As pessoas começaram a falar: ‘opa, se a Suprema Corte Brasileira pode bater de frente, talvez a gente possa bater de frente também’. Saiu no jornal The Guardian um editorial muito bom, falando que realmente é uma guerra não declarada que começa a ter reflexões na gestão de um país, por exemplo. É só você ver quem controla dois terços dos satélites do mundo e quem controla hoje os satélites que mantêm as Forças Armadas Brasileiras funcionando na Amazônia. Se o nosso amigo ali [Musk] desliga o botão, as Forças Armadas Brasileiras estão incomunicáveis, o que é um absurdo.
Quais os maiores desafios que o senhor encontra na hora de escrever?
Sempre gostei muito de escrever, porque minha mãe [Giselda Laporta Nicolelis] é escritora, então eu cresci vendo ela contar histórias para crianças e escrevendo livros. Quando você escreve livros científicos ou teses científicas, as normas são muito rígidas. Eu sempre brinco que cada sentença tem que ter uma citação de algum autor para você validar o seu pensamento. E, evidentemente, quando eu comecei a escrever esse livro, me senti completamente liberto, porque eu não precisava pedir permissão para o editor da revista ou do congresso de ciência ou do livro de ciência para colocar as minhas opiniões.
Nesse futuro próximo, 2036, qual é a lógica mais plausível para a extinção humana?
Bom, eu não quero dar um spoiler do livro, porque ele é um thriller. Imagina se você descobre hoje que nós temos 26 horas para decidir o que nós vamos fazer porque a humanidade vai sofrer um evento cataclísmico que vai mudar tudo, toda a infraestrutura elétrica, eletrônica e digital. O livro se passa em 2036 porque é o centenário da tese do Alan Turing que inaugura a era eletrônico-digital. Nesse período, nós ignoramos uma série de fragilidades existenciais ao construir essa civilização eletroeletrônica. E o que eu quis mostrar no livro é que três mil anos atrás os egípcios já sabiam dessas fragilidades e já levavam elas em conta. Nós estamos notando que aqui no meio do inverno em São Paulo está fazendo 36 graus e o ar está irrespirável. Nos últimos dias, São Paulo está com o pior ar do mundo, segundo a agência suíça que mede isso. Então eu quis mostrar um cenário que pouca gente pensou e que é muito mais provável que um meteoro. Ele pode ocorrer muito antes de uma pandemia pior do que a da covid-19. Eu não vou contar porque senão destrói a trama. Mas do ponto de vista científico, a própria NASA colocou ele como uma das preocupações prioritárias.
Como o senhor reage quando tragédias climáticas ocorrem?
Eu tenho um capítulo logo no começo do livro, que é o estado do mundo em 2036, feito como se fosse um jornal. E lá eu coloco a confluência de todas essas crises que acredito que vão ocorrer em 2036: a crise hídrica, com a falta de água doce para o mundo inteiro; a crise climática, falo de como a fumaça dos incêndios da Amazônia vem para o sudeste do Brasil; a crise alimentar, que é uma decorrência do problema das secas que estão ocorrendo no mundo todo. Falei da crise de energia, porque ninguém fala isso publicamente. Menciono as pandemias, em que a covid-19 foi só a ponta do iceberg do que está para vir. Todas essas crises estão interconectadas. Quando você tem o aquecimento global, as geleiras na Antártida degelam. Quando elas degelam, liberam milhares de novos vírus, que não temos a menor ideia do que seja, que estão lá há milhões de anos, guardadinhos na geladeira dos polos. À medida que nós fomos construindo a civilização moderna, nos dissociamos do mundo natural. E achamos que o mundo natural está aqui para nos servir, indefinidamente, só que não está. A Terra está claramente dizendo para nós que chegamos ao limite, se é que não já passamos. É um beco sem saída.
O ser humano está menos inteligente com o passar do tempo?
É muito difícil dizer por que a inteligência é um troço difícil de medir. Existem testes. Eu não acredito em boa parte disso. O teste de QI pra mim é um troço muito limitado, porque a inteligência tem muitos fatores e a vasta maioria desses fatores não é mensurável do ponto de vista computacional. Como você vai medir criatividade? Eu conheci pessoas, cientistas, que nunca conseguiram fazer absolutamente nada na escola. Foram alunos medíocres, mas de repente encontraram seu nicho de atuação e viraram expoentes mundiais. Então, os atributos mais preciosos da mente humana, que definem a condição humana, não são digitais, nem mensuráveis pela lógica de computadores.
Como o uso excessivo de aplicativos impacta no cérebro?
90% dos americanos que responderam a uma pesquisa não ficam 3 metros longe do celular o dia inteiro. É como se o cara tivesse uma dependência física. Ele não consegue deixar o celular num canto e jogar bola na rua. E essa compulsão cobra. As pessoas hoje não conseguem ler um livro sem parar para consultar o seu celular. Então, a atenção é fragmentada, a memória é fragmentada. Porque você começa a clicar em múltiplos hiperlinks de um texto ou aplicativo e esquece o que motivou você a estar ali. A nossa memória de curto prazo é limitada. Várias teses em psicologia e neurociência estão demonstrando um aumento de ansiedade crônica em jovens, depressão e isolamento social porque boa parte da humanidade está se relacionando digitalmente e não presencialmente. E o nosso cérebro foi moldado e evoluiu para investir em encontros sociais presenciais.
E sobre a diferença entre ler o livro físico para o Kindle, por exemplo, impacta muito o cérebro?
Não tenho nenhum estudo formal sobre isso. Eu leio ambos. Tenho uma biblioteca eletrônica gigantesca, porque como eu viajo muito, preciso ter os meus livros à minha disposição. Mas eu não parei jamais de ler livros físicos, porque a experiência para mim é diferente. A forma de gravar, de memorizar, é muito mais efetiva para mim do que no livro eletrônico. Eu lembro muito mais do conteúdo de um livro que eu li fisicamente. E o fato também que a experiência do livro é multissensorial. As pessoas acham que isso é desprezível, mas não é. Você, literalmente, incorpora o livro físico.
O mundo lidou bem com a covid-19?
Não, os políticos ao redor do mundo não tinham a menor noção, porque o objetivo da comunidade científica durante a pandemia era salvar vidas. E a maioria dos políticos tem outras agendas. A minha sensação é que se tivermos outra pandemia vai ser muito difícil, com o grau de desinformação que existe. A quantidade de informações falsas espalhadas foi brutal. Se você remover o genocídio indígena e a escravidão, que são espalhados por séculos, não existe um fenômeno pontual, num período de meses, que matou tanta gente: mais do que 700 mil, que é o número oficial. E até hoje nós não temos uma data de memória das pessoas que faleceram. Outros países criaram dias onde se tenta celebrar a memória das vítimas. A memória coletiva no Brasil é nula. A pandemia não acabou. Tivemos surtos na Califórnia, em Singapura, nos países europeus, e ninguém fala mais nada. Eu trato disso no livro também: como o vírus informacional apaga a memória pregressa. Chamo isso de brainets, redes de cérebros que são formadas pela disseminação de uma abstração mental. Isso faz com que, basicamente, todos os países do mundo, com raríssimas exceções, estejam passando por um processo de polarização interna, que a gente não conhece na história.
Como a covid-19 afetou a mente humana?
É um vírus vascular, que ataca a parede interna da vasculatura, pelo corpo inteiro. Só em 2021, registraram 21 milhões de pessoas com sequelas neurológicas da covid-19. É um número absurdo. Isso foi há três anos. Parkinson, derrames, suspeita de demência. Todos os tipos de doenças neurológicas estão sendo descritas como sequelas crônicas. É um problema de saúde pública. Até o momento eu não ouvi nenhum tipo de estratégia mundial ou nacional para lidar com isso, porque não há sistema de saúde público ou privado que vai dar conta disso em longo prazo. E sem as vacinas nós teríamos perdido o dobro, o triplo de pessoas.
Somos escravos da IA?
Sim, faz tempo. Tudo que falamos na mídia, na internet, que discutimos no nosso dia a dia, é um teatro de fantoches. A gente nunca toca realmente quem está controlando os movimentos dos bonequinhos de fantoches. A analogia mais ou menos é essa. Desde o início das mídias de massa é óbvio que viramos escravos, porque nós não dominamos os meios de comunicação. Daqui a pouco não vamos conseguir saber o que é verdade. A menos que você esteja na testemunha ocular de um evento, e mesmo assim vai ser complicado, você não vai saber se aquilo é verdade. A atriz Scarlett Johansson está processando a OpenAI porque eles usaram a voz dela, sem permissão, tipo a Alexa. E ela já foi vítima de deepfakes horrorosos, filmes pornográficos. Ela é uma vítima do problema grave que nós estamos enfrentando. As pessoas não conhecem a ciência por detrás da dita IA, porque não é nem inteligente, nem artificial. É basicamente um grande repositório de dados. Eles só vomitam as correlações mais frequentes, e quando não sabem a resposta, eles mentem. O plágio é completo, porque absorvem todo o material online que eu, você, colocamos lá, nossas fotos, nossos e-mails, etc. Toda a nossa presença online foi usada de graça, então é como se você tivesse uma mina onde você tira o ouro de graça. É um negócio da China, da [rua] 25 de março.
Por que a ciência nunca foi prioridade para os políticos do Brasil?
Quando eu cheguei nos EUA, em 1979, vindo do Brasil, não sabia absolutamente nada do que era o mundo fora aqui dos arredores do Parque Antártica. Cheguei na Filadélfia, no centro da ciência mundial, perguntei ao meu orientador: ‘qual é o segredo?’. Ele falou: ‘5%’. É a porcentagem do PIB americano que foi investido desde a Segunda Guerra Mundial, ininterruptamente, todos os anos até hoje. 70 anos de investimento estratégico do governo federal. Não é dinheiro privado, é o dinheiro público americano que construiu essa hegemonia. Desde o final do século 19, os EUA começaram a perceber que ciência ia mudar a história do país. E mudou. Hoje quem faz isso é a China. Na história do Brasil, a ciência nunca foi prioridade. Basta ver como é decidido quem vai ser ministro da Ciência e Tecnologia: é o que sobra dos acordos políticos. Não tem relevância nenhuma do ponto de vista político. E não tem um orçamento relevante o suficiente. Anos atrás, o Brasil tinha 1,12% do PIB devotado para ciência. Isso era o recorde, em 2010, em 2012. E só caiu desde então. Por quê? Porque a ciência é vista no Brasil como uma mercadoria de troca do jogo político. Porque nós não temos um projeto de nação. Nunca tivemos.
O senhor não gosta muito do Yuval Harari, certo?
A minha crítica é a mesma do orientador do Harari, em Oxford, que diz que nem fala mais com ele porque ele basicamente abordou temas extremamente importantes com superficialidade e teses que não têm nenhuma base. Certos livros dele beiram a eugenia, por exemplo. No Sapiens, eu tomei o maior susto, porque eu não sabia do livro, alguém me deu o livro e falou: ‘você tem que ler o último capítulo porque é o seu trabalho!’. Eu fui ver, e ele cita o meu livro e põe uma imagem de outro grupo que não tem nada a ver comigo. Então, ele deu a entender que aquela imagem era do meu laboratório, e aquela imagem era do grupo de Pittsburgh. Acho que o Sapiens é uma colagem em que não há uma teoria. O que ele fala da minha área está cheio de erros conceituais. Eu nunca falei no meu livro o que ele coloca na minha boca. Quando você se propõe a escrever um livro sobre vários temas, é bom que você dê uma estudada no que existe na área, né? Mas ele vendeu muito, caiu nas graças de gente como Bill Gates. Ele virou um porta-voz dessa aristocracia.
Qual sua opinião sobre a ascensão dos coachs? – um deles, Pablo Marçal, inclusive, está na corrida eleitoral de SP.
É uma tragédia. É outro exemplo de um vírus informacional que gera algo que ilude milhões de pessoas. O que está acontecendo em São Paulo, na eleição, é um experimento social ou político do que o mundo vai virar ou já está virando. Onde alguém, sem nenhum currículo, sem nenhuma proposta, sem nenhum projeto para uma cidade que está cheia de problemas, como todos nós sabemos, consegue penetrar e ser apoiado por uma fração gigantesca do eleitorado da cidade, que é a maior metrópole do hemisfério sul. Então, se você parar para pensar, só o fenômeno dele estar empatado nas pesquisas de opinião pública, é uma coisa inacreditável. E as pessoas não se dão conta do passado desse senhor. É um voto antissistema que está acontecendo no mundo inteiro.
O senhor perdeu a esperança na humanidade?
Não. Eu sou palmeirense, como é que eu posso perder a esperança? (risos) Só receio que nós estamos nos transformando rapidamente na única espécie no planeta Terra que conspira para a sua própria extinção. Você não vê nenhum outro organismo no mundo explorando o seu habitat a ponto de não conseguir mais sobreviver nele. Você não vê nenhum outro organismo se autodestruindo na magnitude como fazemos. Por isso eu quis escrever esse livro, que é quase um alerta. Nós esquecemos que o mundo natural não está sob o nosso controle.
Nada Mais Será Como Antes
- Autor: Miguel Nicolelis
- Editora: Planeta Minotauro
- 512 págs; R$ 89,90
- Fonte: https://www.estadao.com.br/cultura/literatura/miguel-nicolelis-lanca-distopia-diz-que-harari-e-superficial-e-eleicao-em-sp-e-experimento/
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