Por Maristela Barenco Corrêa de Mello
"Começamos a entender que ideários são feitos de carne e osso e não de ideias abstratas, de aparências e de violências e opressões que se perpetuam na calada das relações. Sem alinhamento entre o que se pensa, diz, sente e faz... não há caminho novo".
O artigo é de Maristela Barenco Corrêa de Mello, professora do Departamento de Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Ensino da Universidade Federal Fluminense, Campus de Santo Antônio de Pádua (Infes/UFF). Professora colaboradora do Programa de Pós -Graduação em Meio Ambiente (PPG-MA/UERJ). Possui graduação em Psicologia pela Universidade Católica de Petrópolis, graduação em Teologia pelo Instituto Teológico Franciscano, mestrado em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e doutorado em Meio Ambiente pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Segundo ela, "andamos cansados de fundar terras novas para padrões humanos decadentes. É hora da gente virar ao avesso e entender que o descaso com o planeta guarda uma semente de caos interior. Não há nada fora de nós que não faça parte de nós".
O artigo foi enviado por Faustino Teixeira.
Eis o artigo.
São tempos de dor. Sim, ontem, dia 06 de setembro de 2024, foi um dia de grande tristeza e abalo pra quem entende o que significa o movimento e a importância de um ministério de direitos humanos. Porque a pessoa que está ali, à frente de um ministério desse porte, em um país como o nosso, por si, merece nossa reverência. Em termos macropolíticos, defender direitos humanos é uma batalha massacrante e adoecedora. Quem nunca esteve em um lugar assim, que é trincheira diária, não vai entender.
Mas aí vem um campo submerso da vida, invisível, micropolítico, cotidiano, coletivo, e bagunça tudo. Porque é sempre produzido como ausência, como inexistência. Mas é vivo! Sobre ele há um pacto de silêncio. Quase ninguém fala dele. Nem as escolas e nem as igrejas. Os manicômios, antigos, foram palco dessa trama. Mas a vida mostra que ele é determinante. Pode vir o ideário que for, os grandes projetos, os discursos ilibados, assim como as promessas, mas é só desequilibrar e abrir as portas dos porões, que predomina a escuridão, e as micro relações cotidianas são inundadas das águas paradas que estão a putrefar, escondidas pelos nossos ativismos externos.
O que somos nós? Aquele dos ideários ou esse das águas putrefadas? Somos os dois – gostemos ou não. A raça escapa a essa condição? O gênero? A profissão? A religião? Não creio! O que nos faz ir drenando essas águas são os trabalhos de “produção de si”, são ativismos silenciosos, internos, diários, forjas inimagináveis, que desembocam, grande parte das vezes, nos consultórios psi, que muitos nem sonharam ter acesso.
A tristeza segue sempre uma toada: o campo da moral suplanta o campo da ética. Não sobra pedra sobre pedra. E quando há um chamado escândalo – e digamos de passagem que isso acomete predominantemente representantes de grupos minoritários ou ideologias de esquerda -, a sociedade, covarde e farisaicamente, faz uma catarse de livramento. Sobre uma pessoa flagrada se projeta todos os infernos que nos habitam. A gente faz isso em uma espécie de rito de autopurificação, quando sabemos que, no fundo, cada um de nós luta diária e silenciosamente contra um tipo inusitado de monstro e inferno. Quanto mais feios, mais maquiados.
Mas o que me chama a atenção é que preferimos seguir acusando, projetando, a conversar de uma forma inusitada. Quem não abriga monstros, atire a primeira pedra! Se nas instituições que vivemos a maior parte do nosso tempo, preocupássemos menos com aparências, com superficialidades, com competições, prescrições, produtivismos, mercado de trabalho e com projetos servis ao capital, quem sabe tivéssemos condições pra dialogar sobre os monstros que nos habitam? A vida poderia ser outra e com certeza os processos macropolíticos seriam diferentes.
Apesar da imensa tristeza com esse contexto, vejo a potência desse momento para, de forma coletiva, trabalharmos sobre nossos monstros. Nos anos áureos dos movimentos políticos e religiosos, colocava-se indubitavelmente o lixo embaixo do tapete para se salvaguardar um ideário. Sou desse tempo. Presenciei a manifestação e a criação de muitos monstros. Pensei ontem que fosse acontecer o mesmo. Pensei que pressionariam a Anielle para que, em nome de tudo, ela negasse sua acusação. Juro que pensei! Porque esse sempre foi o modus operandi: para não sacrificar ideários, sacrifica-se o humano. Sempre. Na política e na religião. O futuro sempre nos fez mais miseráveis. E assim os monstros foram crescendo. Há gente importante andando por aí que esconde cada monstro... que... meu Deus!
Pensei que fosse acontecer isso ontem. Que bom que não aconteceu! Outro tempo começa a ser parido, não com menos dores. Penso que Anielle precisará de apoio, porque certamente será acusada, por alguns, de ser responsável por sabotar a luta antirracista, ou por sabotar o ideário dos direitos humanos, ou o governo de Lula... Essa mulher merece nosso apoio: ela está abrindo os porões, alinhando a sua trajetória à sua prática de vida, e convidando que os monstros venham à luz do dia e se apresentem, tal como são. Sem prerrogativas. E que possamos chorar nossas dores, coletivas, de termos sido forjados por uma cultura do estupro e da barbárie, que nos fez abrigar monstros. Mas chorar a existência de monstros é bem mais potente do que deixá-los no comando, reduzindo o que a vida pode ser ao que a vida tem sido.
Não sei se pelo nosso tempo... ou pela força e consciência das mulheres, começamos a entender que ideários são feitos de carne e osso e não de ideias abstratas, de aparências e de violências e opressões que se perpetuam na calada das relações. Sem alinhamento entre o que se pensa, diz, sente e faz... não há caminho novo.
Claro que um ser humano, no caso, o ministro, não é responsável pela violência do patriarcado. Mas também precisa entender que não há poder e nem doutoramento crítico que nos torne imunes. Não há linha abissal que nos imunize de nossas contradições. Sabemos que nesse momento há milhares de homens, sustentados pelo privilégio espúrio da branquitude, do dinheiro, do poder, do patriarcado, vivendo a partir dos porões. E nesse sentido... continuamos fracassados. Há reflexões que são impossíveis à luz das condições cognitivas de alguns.
Mas também é hora da gente olhar para a gente... para a potência desses ensaios relacionais inusitados, desse teatro dos afetos que nos sobredetermina, e entendermos que narrativas ideológicas de esquerda não estão imunes a formas de captura. E que é a partir daqui que precisamos trabalhar. E, quem sabe, adentrar os porões micropolíticos da existência seja uma das formas mais honestas e urgentes de transformação macropolítica? Porque andamos cansados de fundar terras novas para padrões humanos decadentes. É hora da gente virar ao avesso e entender que o descaso com o planeta guarda uma semente de caos interior. Não há nada fora de nós que não faça parte de nós. E que não iludamos... o retorno do recalcado sempre será mais feio do que aquilo que se recalcou. O que retorna faz estragos. O que se exonera pode ser húmus para um novo humano. Quem sabe, aprendermos com esse tempo, da ocasião? Sem culpados e sem culpas, aprendendo com aquilo que a vida nos possibilita coletivamente experimentar.
Fonte: https://www.ihu.unisinos.br/643376-carta-de-amor-aos-que-militam-por-outros-mundos-nao-para-os-cinicos
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