sexta-feira, 20 de setembro de 2024

EUA: As eleições vistas pela China

 Por Luís Antônio Paulino, no Vermelho

 Foto: Saul Loeb/AFP

Pequim vê os candidatos como dois potes do mesmo veneno. Trump promete elevar ainda mais as tarifas punitivas, algo que a gestão Biden já fez. A certeza é que a guerra comercial seguirá: com diplomacia cínica dos democratas ou a truculência republicana

Perguntado sobre qual dos candidatos às eleições presidenciais nos Estados Unidos em novembro próximo seria melhor (ou pior) para a China, Zhao Minghao, professor do Instituto de Estudos Internacionais e Centro de Estudos Americanos da Universidade Fudan, afirmou que “Trump e Kamala Harris são duas tigelas de veneno para Pequim.” (Financial Times, 26/8/2024).

O problema é que, parafraseando o que Mário Henrique Simonsen disse sobre inflação e câmbio, existem venenos que aleijam e outros que matam. Muito embora a China seja o saco de pancadas preferido tanto de republicanos e democratas e um dos pontos em que as discordâncias entre ambos sejam mais de forma do que conteúdo, o fato é que há diferenças nas propostas dos dois candidatos em relação à China que precisam ser levadas em conta. Se tais diferenças nos discursos irão resultar em linhas de ação muito diferentes já é outra questão.

Começando pelos discursos de Trump e Kamala nas respectivas convenções que os sacramentaram como candidatos de seus respectivos partidos para as eleições de novembro, é importante notar que Kamala fez uma única menção à China ao passo que Trump mencionou a China 14 vezes. Segundo o Financial Times (26/08/2024), “Harris mencionou a China apenas uma vez em seu discurso na convenção democrata, prometendo garantir ‘que a América — não a China — vença a competição pelo século XXI’”. Trump, por outro lado, referiu-se à China 14 vezes na Convenção Nacional Republicana no mês passado, incluindo a bazófia de que ele havia mantido Pequim “à distância” durante sua presidência e lamentando a perda da Base Aérea de Bagram no Afeganistão, que alegou estar “a uma hora de distância de onde a China fabrica suas armas nucleares”, uma ameaça implícita.

A desistência de Biden e sua substituição por Kamala Harris como candidata do Partido Democrata para as eleições de novembro pegou todo mundo de surpresa e há pouca informação sobre o que ela pensa ou pretende fazer em relação à China, ao passo que todos sabem o que Trump pensa sobre o assunto. O que cada um fará, caso seja eleito, entretanto, depende de uma série de fatores.

Trump tem dito que elevará as tarifas de importação dos produtos chineses para 60%. Na prática isso equivale a fechar o mercado norte-americano para produtos chineses. Se, de um lado, a medida poderia causar algum impacto na economia chinesa, por outro lado é difícil imaginar os Estados Unidos abrindo mão de uma hora para outra de tudo que importa da China. Muito do que os Estados Unidos importam de empresas chinesas eles não produzem internamente e nem possuem fornecedores alternativos. Os Estados Unidos importaram US$ 427 bilhões em bens da China em 2023. Basta imaginar o quanto uma tarifa de 60% sobre essas importações impactaria na inflação nos Estados Unidos e no bolso dos consumidores norte-americanos.

É preciso considerar ainda que não há consenso sobre o assunto entre republicanos. A ala mais tradicional dos republicanos é avessa a tarifas de importação elevadas, enquanto Trump e alguns dos seus assessores diretos são protecionistas radicais. Apesar de as empresas norte-americanas que competem com as importações chinesas serem a favor de tarifas de importação mais altas, a maioria das grandes corporações com sede nos Estados Unidos não pode abrir mão do mercado chinês e não vê com bons olhos uma escalada protecionista.

Segundo a agência Reuters (26/08/2024), desde que o presidente Joe Biden anunciou, em maio, uma quadruplicação das tarifas sobre veículos elétricos chineses para 100%, uma duplicação dos impostos sobre semicondutores e células solares para 50%, bem como novas tarifas de 25% sobre baterias de íons de lítio e outros bens estratégicos, incluindo aço, para proteger as empresas americanas do excesso de produção chinesa, mais de 1.100 comentários públicos foram postados no site do USTR (Escritório do Representante Comercial dos Estados Unidos, o equivalente ao Ministério do Comércio) expressando preocupações com os aumentos de custos gerados pelas novas tarifas. Até o momento a aplicação das novas tarifas vem sendo adiada, o que revela falta de consenso sobre o assunto.

Kamala Harris, por seu turno, também não renunciará às tarifas. Apesar de todas as críticas que fez a Trump, Joe Biden não só manteve as tarifas que Trump impôs à China na guerra comercial iniciada em 2018, como acrescentou novas restrições. Não haveria por que pensar que com Kamala Harris seria diferente, sobretudo se ela mantiver cuidando do assunto as mesmas pessoas que estiveram a cargo disso no governo Biden, como o secretário de Estado Antony Blinken, seu vice Kurt Campbell e o conselheiro de segurança nacional Jake Sullivan, bem como outros altos funcionários que foram fundamentais para políticas agressivas em relação à China.  Mas dificilmente um eventual governo de Kamala Harris adotaria uma tarifa de 60% como Trump diz que vai fazer. Possivelmente recorreria a tarifas específicas sobre determinados produtos, de acordo com a política industrial implementada pelo governo Biden, como já vem ocorrendo.

A respeito dessa questão o Wall Street Journal (13/08/2024) afirma o seguinte: “Patrick Zweifel, economista-chefe da Pictet Asset Management, estima que, se a presidência de Kamala Harris mantiver a política tarifária mais seletiva do governo Biden, poderá reduzir talvez 0,03 ponto percentual do crescimento econômico chinês no próximo ano. Ao aumentar as tarifas para 60% sobre todos os produtos chineses, como Trump propôs, o impacto seria muito maior, talvez em 1,4 ponto percentual, o que, em suas previsões, reduziria o crescimento [da China] em 2025 para cerca de 3,4%, de 4,8% esperados. O UBS estima que as tarifas de 60% sobre as importações norte-americanas de produtos chineses impediriam o crescimento do PIB em cerca de 2,5 pontos percentuais nos 12 meses após a imposição, embora o arrasto possa ser de apenas 1,5 ponto percentual se a China tomar ações compensatórias. Entre essas ações os formuladores de políticas chineses poderiam deixar sua moeda enfraquecer ainda mais, estender descontos de impostos e outras vantagens aos exportadores e reduzir as taxas de juros. Eles poderiam tentar forçar os EUA a reconsiderar, retaliando como aumentar as tarifas sobre produtos dos EUA, reter o fornecimento de minerais críticos e possivelmente vender ativos dos EUA, como títulos do Tesouro, de acordo com o Goldman Sachs.”

Visto de conjunto, apesar da convergência bipartidária em relação à China, considerada tanto por republicanos e democratas como uma “potência revisionista”, um competidor estratégico e uma ameaça para o american way of live, certamente a política externa de Harris em relação à China seria de gerenciamento das relações bilaterais por meio  dos canais diplomáticos convencionais. Já para Trump, o objetivo seria o de “vencer” a China em uma nova guerra fria, o que certamente o levaria a desprezar a diplomacia tradicional e partir para ações intempestivas cujas consequências poderiam ser catastróficas, sobretudo se envolvessem Taiwan e o Mar do Sul da China.

Nunca é demais lembrar que se o “pivô para China” foi uma ideia do democrata Obama, as ações recentes mais abertamente anti-China foram iniciadas no governo Trump. De acordo com o Financial Times (21/8/2024), “Durante seu primeiro mandato, Trump reviveu a aliança Quad com Japão, Austrália e Índia, promulgou a Lei de Viagens de Taiwan, permitindo que funcionários de alto nível de cada país a visitassem e iniciou hostilidades comerciais contra a China. Outros apontaram para o antagonismo de Trump em relação a Pequim sobre a pandemia de Covid-19, que ele rotulou de “vírus da China”.”

Em artigo publicado na Foreign Affairs (01/08/2024) intitulado “Does China Prefer Harris or Trump? Why Chinese Strategists See Little Difference Between the Two”,  três acadêmicos da Universidade de Pequim (Wang Jisi, Hu Ran, and Zhao Jianwei) afirmam que “Começando com o comércio, o governo Trump iniciou com tarifas punitivas sobre as importações chinesas e depois expandiu sua campanha para incluir maior escrutínio e restrições aos investimentos chineses, controles de exportação de alta tecnologia mais rígidos e ações direcionadas contra empresas chinesas específicas com grandes presenças no exterior, como a Huawei. Em questões de segurança, o governo Trump também tomou novas medidas para manter a supremacia dos EUA no que os estrategistas agora chamam consistentemente de região ‘Indo-Pacífico’, um termo geográfico que havia sido usado apenas ocasionalmente antes. O governo Trump deu a Taiwan garantias especiais de segurança e minimizou a política de longa data de ‘uma China’; colocou novos recursos no Quad (o agrupamento da Austrália, Índia, Japão e Estados Unidos) em um esforço para equilibrar coletivamente a China; e intensificou as atividades militares dos EUA no Pacífico Ocidental para desafiar as reivindicações territoriais da China.”

Afirmam ainda que “Quanto à relação política entre os Estados Unidos e a China, Trump não tinha visões rigidamente ideológicas sobre o sistema e a liderança chineses, mas permitiu que seus funcionários do governo e o Congresso dos EUA criticassem estridentemente o partido governante da China e sua governança doméstica, particularmente suas políticas em relação a Xinjiang e Hong Kong. E como seu governo adotou uma narrativa mais ampla de ‘ameaça da China’, prejudicou gravemente os intercâmbios acadêmicos, científicos e sociais que existiam há décadas entre os dois países. Na diplomacia multilateral, Washington também começou a demonizar Pequim e a contrariar fortemente sua influência internacional, tentando restringir o papel global em expansão da China em sua Iniciativa do Cinturão e Rota e em seu crescente envolvimento nos órgãos das Nações Unidas.”

Já com relação a Biden, afirma: “Biden trabalhou em estreita colaboração com o Congresso para implementar investimentos em infraestrutura em larga escala e políticas industriais destinadas a tornar os Estados Unidos mais competitivos e menos dependentes da China. Para competir melhor em tecnologias avançadas, o governo Biden também buscou controles de exportação mais rígidos, novas tarifas sobre os produtos de tecnologia verde da China e esforços internacionais mais coordenados, como a aliança Chip 4 – uma parceria de semicondutores entre Japão, Coreia, Taiwan e Estados Unidos. Na Ásia-Pacífico, o governo Biden intensificou sua presença militar no Estreito de Taiwan e no Mar da China Meridional e acrescentou uma dimensão econômica regional às alianças de segurança asiáticas dos Estados Unidos. Biden também reuniu líderes do G-7 para impulsionar a iniciativa Build Back Better World e a Parceria para Infraestrutura e Investimento Global – ambas destinadas a fornecer uma resposta ocidental à Iniciativa do Cinturão e Rota da China. Motivado pelos crescentes laços da China com a Rússia em meio à guerra na Ucrânia, o governo Biden impôs sanções às empresas chinesas que negociam com a Rússia. Washington também deu à disputa com a China uma nova camada de ideologia – o que o governo chama de “democracia versus autocracia” – em um esforço para construir uma grande aliança contra Pequim.”

Um outro fato que talvez possa influir nas relações com a China, ainda que indiretamente, num eventual governo de Kamala Harris, é o seu vice, Tim Walz, ter uma longa história de interação com aquele país, ainda que de forma nem sempre amigável. Conhecer bem a China não significa necessariamente ser amigo da China.

Conforme informou o Financial Times (21/8), “Walz viveu na China como um jovem professor, não como diplomata, e voltou dezenas de vezes ao longo de sua vida adulta, primeiro como instrutor para estudantes americanos interessados na China e depois como político (…) Ainda assim, a conexão de Walz com o país vai além do turista americano normal. Antes de ser eleito para o Congresso, Walz e sua esposa dirigiam uma empresa que trazia estudantes americanos para a China.”

Ainda segundo o jornal, “No Congresso, Walz assumiu posições que incomodaram Pequim, incluindo o apoio ao ativista democrático de Hong Kong Joshua Wong. Quando Wong foi preso, em 2017, por seu envolvimento na ‘revolução dos guarda-chuvas’ de Hong Kong, Walz twittou uma selfie que eles haviam tirado em Washington um ano antes, junto com uma citação de Wong: “Você pode trancar nossos corpos, mas não nossas mentes!”.

No mencionado artigo da Foreing Affairs, os autores concluem que “no geral, do ponto de vista chinês, as políticas chinesas de um novo governo Trump e de um governo Harris provavelmente serão estrategicamente consistentes. Como presidentes, ambos os candidatos apresentariam desafios e desvantagens para a China, e nenhum deles parece querer um grande conflito militar ou cortar todos os contatos econômicos e sociais. Portanto, é improvável que Pequim tenha uma preferência clara. Além disso, a China tem fortes incentivos para manter um relacionamento estável com os Estados Unidos e evitar confrontos ou grandes interrupções. Dadas as sensibilidades políticas em relação à eleição e às relações EUA-China, qualquer ação chinesa para interferir provavelmente sairia pela culatra.” Trata-se de uma posição sensata da China e coerente com seus cinco princípios de política externa baseados na não-interferência em questões internas de outros países.

Fonte:  https://outraspalavras.net/outrasmidias/eua-eleicoes-vistas-pela-china/

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