Marcelo Barros*
XXIV Domingo comum: Mc 8, 27- 35.
Desafios e dores da caminhada do reino
O evangelho deste XXIV domingo comum do ano B (Marcos 8, 27 a 35) conta que, Jesus, decepcionado com o seu trabalho com o povo da Galileia e também se perguntando, ele mesmo, sobre como deveria atuar, faz com os discípulos uma avaliação. A eles, pergunta a respeito do que ele mesmo se interrogava sobre si e sobre a sua missão e ainda como poderia cumpri-la.
Cada
vez mais, em um mundo de redes sociais que invadem a privacidade e
submetem as pessoas a uma superexposição constante, o problema da
identidade aparece com maior intensidade: Quem realmente sou eu? Quem é
você? Quem somos nós?
Em
um mundo plural e que, de uma só vez, nos oferece centenas de
alternativas, nos sentimos como se tivéssemos diversas identidades, a
depender dos ambientes que frequentamos. Alguém pode ser conhecido aqui
como educador/a, ali como pessoa religiosa, em outros ambientes, como
artista. Nenhuma identidade é mais exclusiva e menos ainda excludente.
Há mais de 50 anos, na música “A noite dos mascarados”, Chico Buarque cantava junto com Nara Leão:
Quem é você, diga logo Que eu quero saber o seu jogo
Que eu quero morrer no seu bloco Que eu quero me arder no seu fogo
De certa forma, na história, algumas personalidades foram e são olhadas diferentemente de acordo com o prisma a partir do qual são consideradas. Muitas vezes, quem, para um grupo, pousa de herói, para outros, pode ser visto como bandido. Para os conquistadores do passado, os bandeirantes foram heróis desbravadores que, até hoje, têm seus nomes imortalizados em rodovias, praças e cidades. Para os indígenas e negros que os bandeirantes perseguiram e assassinaram, eles foram criminosos desalmados.
Atualmente,
em São Paulo, para quem se coloca no caminho do evangelho de Jesus, o
padre Júlio Lancelotti e o grupo que trabalha na pastoral do povo da rua
são vistos como profetas. No entanto, para as pessoas e grupos que se
posicionam contra os pobres, o mesmo grupo é visto como cúmplice de
gente drogada e desocupada.
Assim,
na época dos evangelhos, havia conflito para se interpretar o fato de
que Jesus foi condenado à morte pelo império romano e pela religião
ritual do templo. Como compreender que alguém que veio para salvar a
humanidade poderia ser condenado como rebelde e malfeitor?
Ainda nos anos 1970, as comunidades cantavam:
“Entre nós está e não o conhecemos. Entre nós está e nós o desprezamos”
Conforme os evangelhos, o próprio Jesus teve de se definir sobre isso e pediu ao grupo de seus discípulos e discípulas que se declarassem sobre como o viam e também o que as pessoas pensavam dele.
Em
nossos tempos e mesmo em nossos meios, há pessoas que afirmam não ligar
para a opinião dos outros. Pouco importaria o que dizem de mim. O
importante é o que eu sou. No entanto, a cultura zulu da África do Sul
nos ensina o princípio do Ubuntu: “eu sou porque você é. Se você não for, eu não sou”. Nessa perspectiva, o pensamento das outras pessoas sobre nós, importa sim e muito.
O evangelho de Marcos tem 16 capítulos. Até o capitulo 8, isso é, a metade do relato, o texto mostra Jesus a atuar nas sinagogas, nas casas, nas aldeias e nas margens do lago. A cada sinal ou palavra que ele dá, suscita das pessoas que o encontram sempre a mesma pergunta: quem é este? Até os espíritos maus se perguntam sobre quem é Jesus. Ele ordena que se calem. Finalmente, agora, no capítulo 8, ele inicia nova etapa em sua missão. Na intimidade do seu grupo de discípulos e discípulas, pede que digam como o povo o vê e depois como eles mesmos, os discípulos e discípula compreendem a sua pessoa e a sua missão.
Em nome do grupo, Pedro responde: “Tu és o Messias, o consagrado de Deus”. Surpreendentemente, Jesus o proíbe de dizer isso em público e começa a lhes dizer o que acontecerá com ele na viagem que estão fazendo a Jerusalém: diz que será preso, condenado à morte e crucificado como rebelde castigado pelo Império.
Para
os discípulos, e Pedro explicita isso, tal perspectiva é absurda. Eles
não podem aceitar um Messias que fracasse em sua missão de libertar o
povo. Como Deus pode permitir isso? Ou ele é vitorioso em sua missão e
aí sim é verdadeiro Messias e Deus atua nele. Se fracassar, é sinal de
que Deus não está do lado dele. Seria falso profeta e não seria o
Cristo, o Messias.
Pedro
tenta dizer isso a Jesus e Jesus o chama de Satanás, isso é, tentador.
Insiste não somente que as coisas acontecerão conforme tinha dito antes,
mas afirma que essa é a direção justa que deve dar à sua vida. Além
disso, deixa claro que qualquer pessoa que o queira seguir correrá o
mesmo risco.
Até
hoje, todos/as nós temos muita dificuldade de ligar o Cristo com
fracasso e derrota. As Igrejas aceitam a cruz, mas contanto que seja
artisticamente bela e possa ser aclamada como Santa Cruz e ser
vitoriosa. A de Jesus foi a cruz vergonhosa de um condenado político que
foi morto nu, como exemplo do que aconteceria com qualquer um que
ousasse se levantar contra o império.
Ao contarem essa história em um contexto social, no qual eles não queriam parecer discípulos de um condenado pelo império, as comunidades que escreveram os evangelhos tentaram explicar a condenação que Jesus sofreu como tendo sido engano dos chefes romanos, iludidos pelos sumo-sacerdotes. Na realidade, hoje sabemos que, dificilmente, o império romano se enganava. O motivo colocado na placa sobre a cruz de Jesus diz claro: Rei dos Judeus. Não adiantam outras discussões: Jesus foi visto como rebelde contra o império e, embora ele não tenha sido isso do modo de um chefe militar, como os discípulos esperavam e desejavam, ele se colocou sim como enviado de Deus para a libertação, que como os bispos católicos afirmaram na 2ª conferência geral do episcopado latino-americano em Medellín (1968) deve ser libertação integral de toda a humanidade e de cada ser humano por inteiro (Medellín 5, 15).
Atualmente, ainda, Jesus pergunta a cada um/uma de nós: quem vocês pensam que eu sou? Quem está na caminhada das comunidades e dos movimentos sociais pode responder que Ele é o nosso Messias libertador. O importante é que consigamos aceitar que ele cumpriu a sua missão e realizou a esperança messiânica não libertando politicamente Israel ou a humanidade e sim provocando que se transformem as estruturas sociais de um mundo de concorrência e poder para uma humanidade como uma só família e em comunhão com todos os seres vivos, a partir do princípio da solidariedade amorosa e da justiça libertadora.
Enquanto
o mundo continuar optando pelo que é oposto ao projeto divino da paz e
da justiça ecossocial, a caminhada do evangelho será sempre perseguida e
para quem segue Jesus nessa estrada tem como horizonte não a vitória
social e política, mas a cruz, ou seja, a perseguição e o sofrimento e
mesmo o martírio, como aconteceu com tantos irmãos e irmãs na caminhada
das comunidades na América Latina. A ressurreição não se coloca como
prêmio de consolação para quem deu a vida pela causa do evangelho e sim
se manifesta em nós como energia de resistência e força de luta para
perseverarmos na caminhada.
* Monge beneditino. Biblista. Escritor.
Fonte: https://marcelobarros.com/blog/as-dores-e-dificuldades-da-caminhada/
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