Por Januária Cristina Alves*
Quanto mais eu pesquiso e estudo sobre a Educação Midiática mais eu constato que ela acontece, de fato, no cotidiano de escolas, bibliotecas, nos clubes, nas instituições de educação não formal, nas famílias, e em todos os lugares onde há pessoas preocupadas em como educar nossas crianças e jovens para lidarem com as mídias e redes sociais, de uma maneira mais equilibrada e saudável.
Eu entendo a Educação Midiática como um conjunto de competências e habilidades que permitem que as pessoas acessem, interajam, compartilhem e produzam conteúdos na internet e nas mídias digitais e sociais, exercitando o senso crítico, a liberdade de expressão, a empatia e a cidadania digital de forma ética, sustentável e democrática. Ela também favorece o senso de unidade entre as pessoas, pois estimula a participação social efetiva por meio do diálogo e do exercício da comunicação não violenta, combatendo atitudes destrutivas para a convivência social como o discurso de ódio e o ciberbullying, contribuindo para a criação e manutenção de um ambiente digital mais justo e vigoroso para toda a sociedade.
Educação Midiática deve dar conta de nos conscientizar de que o que vemos não é o ‘mundo real’, mas um universo customizado que os algoritmos nos enviam
Se o conceito parte daquilo que é um projeto comum para toda a educação, a prática da Educação Midiática tem lá suas especificidades que devem ser observadas e incluídas em seu escopo de desafios e oportunidades. Sendo assim, não há receitas prontas, mas apenas um chão comum que pode ser expresso a partir de uma perspectiva freireana: aquela que entende que, em primeiro lugar, é necessário que o cidadão compreenda o funcionamento da internet e das mídias sociais, das técnicas utilizadas para essa comunicação, que é baseada na economia da atenção e na algoritmização, e os seus impactos na sociedade. É preciso, sobretudo, ensinar a ler o mundo, que, como dizia Paulo Freire, é a competência das competências. A Educação Midiática deve dar conta de nos conscientizar de que o que vemos não é o “mundo real”, mas um universo customizado que os algoritmos nos enviam por onde quer que trafeguemos no universo virtual. E que isso impacta a nossa visão de mundo, molda os nossos desejos e as nossas relações sociais e pessoais.
Mas… como tudo isso se aplica na prática? Andando por esse país, e em todos os lugares em que a Educação Midiática é um tema, tenho visto que esses pressupostos se materializam, sobretudo, por meio de um diálogo aberto e de uma série de encontros entre todos os envolvidos nesse ecossistema informacional. Como disse um pai, após um dos workshops que realizei com as famílias pertencentes a uma escola: “Vim em busca de uma fórmula para lidar com esse problema do vício em celular, e saí entendendo que a fórmula somos nós que construímos, a partir do que é importante para a nossa comunidade, daquilo que a gente pode fazer, seja juntos ou cada um no seu pedaço”.
Ou seja, não há como aprender a lidar com um fenômeno que está em curso – e sobre o qual há mais perguntas do que respostas -, sem o estabelecimento de um chão comum para que isso aconteça, sem um encontro em que todos os interessados tenham voz e vez, em que os princípios educativos sejam estabelecidos a partir dos valores éticos e morais daquela comunidade. Sim, os cursos ajudam, as formações on e offline também, as palestras e os livros são importantes e abrem caminhos, mas é na roda de conversa que os contratos são estabelecidos e que o plano de ação é construído a muitas mãos. O convite à responsabilidade de cada um e de todos é um chamado à participação efetiva, e é ela que, sabemos, transforma verdadeiramente o estado das coisas.
Não à toa, além dos workshops em que as famílias sentam juntas e em roda para conversar sobre suas dificuldades, medos e esperanças, tem sido importante abrir esse espaço para as crianças e jovens, que, se verdadeiramente chamadas a falar e a ouvir, têm muito o que dizer e fazer. Os clubes de leitura de notícias com os quais tenho trabalhado – no mesmo formato dos clubes de leitura literária que estão renascendo aqui no Brasil e no mundo, como relatei em minha coluna anterior – são experiências muito ricas de compartilhamento de histórias, memórias e das diferentes possibilidades de leitura da realidade que as notícias nos trazem. Em um cenário em que o interesse por elas só cai, resgatar as notícias como narrativas capazes de criar uma comunidade com interesses comuns, tem se revelado uma possibilidade de educação midiática potente e transformadora.
O filósofo Byung-Chul Han, estudioso perspicaz dos diversos fenômenos que têm causado o mal-estar contemporâneo que nos assola, aponta, em seu livro “A crise da narração”, que, apesar de inundados de histórias de todos os tipos em nossos stories, estamos perdendo a capacidade de criar as nossas e nos apropriarmos daquelas que são significativas, pois não partem das nossas experiências. “As narrações criam uma comunidade (…) Nenhum storytelling seria capaz de reacender a fogueira em torno da qual as pessoas se reúnem e narram histórias umas às outras. A fogueira já foi extinta faz tempo. Ela está sendo substituída pela tela digital que isola as pessoas na forma de consumidores”, ele afirma, destacando em sua obra, a diferença entre a informação e a notícia: “a notícia está sempre inserida em uma história, possui uma estrutura espaço-temporal completamente diferente da informação (…) Ela é portadora de história”.
A leitura das notícias em círculo, no mesmo formato das fogueiras ancestrais, tem proporcionado aos professores, pais, crianças e jovens a experiência singular de experimentar o espírito narrativo amparado nos fatos que foram selecionados a partir daquilo que impacta a vivência daquela comunidade, e que, portanto, passaram por uma curadoria que trouxe sentido à essa narrativa. E só para lembrar: a origem da palavra “curadoria” remete à pensar e a do termo “sentido”, à direção. Frequentemente os grupos realizam nessa leitura de narrativas uma reflexão sobre o que estão vivendo e também encontram uma direção para lidar com seus problemas cotidianos.
Embaixo do guarda-chuva da Educação Midiática cabem muitas angústias do nosso tempo: o medo do vício em telas, a solidão dos jovens que já não sabem mais se relacionar no mundo real, as violências digitais que ocorrem amparadas pelo anonimato, a distração daquilo que nos estrutura e referencia, a ausência das histórias que criam a empatia e a sensação de pertencimento que nos tornam únicos e parte da raça humana. Mas também cabem muitas saídas possíveis, e vale destacar aquelas que informam, inspiram e empoderam as pessoas, que são aquelas que, verdadeiramente, emergem dos atores envolvidos nessa grande narração que é a vida, cujo final cabe a cada um e a todos definir.
*Januária Cristina Alvesé mestre em comunicação social pela ECA/USP (Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo), jornalista, educomunicadora, autora de mais de 50 livros infantojuvenis, duas vezes vencedora do Prêmio Jabuti de Literatura Brasileira, coautora do livro “Como não ser enganado pelas fake news” (editora Moderna) e autora de “#XôFakeNews - Uma história de verdades e mentiras”. É membro da Associação Brasileira de pesquisadores e Profissionais em Educomunicação - ABPEducom e da Mil Alliance, a Aliança Global para Parcerias em Alfabetização Midiática e Informacional da Unesco.
Fonte: https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2024/09/12/educacao-midiatica-para-informar-inspirar-e-empoderar?utm_medium=email&utm_campaign=Nexo%20%20Hoje%20-%2020240913&utm_content=Nexo%20%20Hoje%20-%2020240913+CID_b92da8578477bd1365299c5fe0f99e3f&utm_source=Email%20CM&utm_term=Educao%20Miditica%20para%20informar%20inspirar%20e%20empoderar
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