segunda-feira, 23 de setembro de 2024

Dalton Trevisan quase centenário

 

Mayara Ferrão

 

Um dos grandes nomes do conto brasileiro, escritor tem obra reeditada e analisada a partir de questões como velhice e violência

No prefácio da edição de 1974 do clássico O vampiro de Curitiba (Civilização Brasileira), um de seus livros mais conhecidos, Dalton Trevisan descreveu sua predileção por narrativas curtas da seguinte maneira: “Há o preconceito de que depois do conto você deve escrever novela e afinal romance. Meu caminho será do conto para o soneto e dele para o haicai”. Considerado um dos principais autores vivos da literatura brasileira, o escritor curitibano completou 99 anos em 14 de junho, do alto de uma prolífica carreira literária de quase 80 anos e mais de 700 contos. “A obra de Dalton Trevisan modernizou e experimentou com a forma do conto, levando-a ao limite da concisão e do seu poder de sugestão. Em poucas linhas, às vezes em uma única frase, ele é capaz de sugerir ao leitor o que é a vida numa cidade provinciana, uma questão literária complexa, uma tragédia conjugal”, diz Hélio de Seixas Guimarães, professor de literatura brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

“A meu ver, ele está para o conto brasileiro do século XX assim como Machado de Assis [1839-1908] está para o conto do século XIX. Ambos criaram modos de condensar em narrativas curtas questões imensas e situações muito complexas”, prossegue Guimarães, que organizou com Fernando Paixão, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP, o livro Dalton Trevisan: Uma literatura nada exemplar (2024). Realizada em parceria entre o IEB-USP e a editora Tinta-da-China Brasil, a coletânea reúne oito ensaios assinados por pesquisadores e críticos literários como Eliane Robert Moraes, da USP, e Arnaldo Franco Junior, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de São José do Rio Preto. A obra traz ainda um miniconto do escritor mineiro André Sant’Anna, além de uma entrevista com Berta Waldman, do Departamento de Letras Orientais da USP e uma das pioneiras nos estudos sobre o autor, com pesquisa iniciada no final dos anos 1970.

O escritor quase centenário, nascido em Curitiba em 1925, vem recebendo uma série de homenagens em razão do aniversário. É o caso da reedição de suas obras pela editora Record. Dentre os títulos relançados, figura Cemitério de elefantes (1964), que conta com textos do poeta argentino César Aira e do escritor paulista Marçal Aquino, e ilustração de capa do artista gráfico curitibano Poty Lazzarotto (ver Pesquisa FAPESP nº 340), que cultivou uma parceria de 40 anos com Trevisan. Já Macho não ganha flor (2006) vem com reflexões do editor e poeta Augusto Massi, da USP, e do tradutor e escritor Caetano W. Galindo, da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Trevisan passou a ficar mais conhecido no mundo literário com a revista Joaquim, criada com o educador Erasmo Pilotto (1910-1992) e o editor Antônio P. Walger, em 1946, “para sacudir os alicerces conservadores que sustentavam a cultura paranaense”, como explica o historiador Fabricio Souza, da Universidade do Estado do Amazonas (UEA), que analisou a publicação em artigo na Revista Brasileira de História, em 2022. “Inserida no contexto pós-Segunda Guerra Mundial, a revista promoveu um espaço para que os escritores reavaliassem as relações entre a arte, a sociedade e a existência humana”, observa o pesquisador, autor da tese de doutorado “A matança dos mortos sagrados: Memória, literatura e história na obra de Dalton Trevisan”, defendida em 2019, na USP. “Em Curitiba, a retomada da iconoclastia modernista teve um objetivo claro: destruir uma tradição que teria impossibilitado a cidade de experimentar um modernismo semelhante ao que se desenvolveu em São Paulo.” Nesse sentido, segundo Souza, Trevisan publicou uma série de manifestos para dessacralizar personagens, como o poeta simbolista paranaense Emiliano Pernetta (1866-1921), e liquidar com a cultura local numa tentativa retórica de recomeçá-la do zero.

A publicação também foi a responsável por inserir o autor paranaense em círculos editoriais e literários do Brasil. “Essa iniciativa editorial permitiu, por exemplo, que Dalton Trevisan mantivesse uma estreita troca de correspondência com Carlos Drummond de Andrade [1902-1987]”, conta Souza. “Nessas mensagens, é possível observar que o paranaense enviava textos para o poeta modernista ler e sugerir possíveis alterações. Outro ponto que merece destaque é o compromisso que Trevisan, Pilotto e Walger, da Joaquim, assumiram com Drummond: não encerrar a revista antes da edição número 20. E foi o que aconteceu. A publicação finalizou suas atividades com a edição 21.”

Muitas das histórias criadas por Trevisan são inspiradas no período em que trabalhou como repórter policial

Conhecido por reescrever incessantemente seus contos, Trevisan continuou a aperfeiçoá-los mesmo com idade avançada. “Essa prática é um procedimento que reitera determinados valores e modos de se pensar o conto e o fazer literário. Prova disso é que sua reescrita se caracteriza por uma busca incessante pela condensação, a ponto de eliminar episódios e personagens de vários textos”, constata Leandro Valentin, doutor em letras pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de São José do Rio Preto. “Por buscar tornar o texto o mais econômico possível, Trevisan também usa nessa reescrita, com frequência, a elipse do sujeito das orações e a supressão de verbos, conjunções e demais elementos conectivos, o que gera ênfase às frases nominais. Como a crítica literária já observou, essa redução sugere uma busca pelo silêncio. Quanto menos for dito, melhor”, acrescenta o pesquisador, cuja tese defendida em 2020, sobre contistas brasileiros das décadas de 1950 a 1970, incluindo Trevisan, teve apoio da FAPESP.

Essa reescrita também surge na recorrência de certas personagens, que aparecem com o mesmo nome, como João e Maria. Segundo Valentin, essa característica faz parte do uso da repetição como um procedimento de criação literária caro à poética de Trevisan. “A repetição, além de realçar o diálogo intertextual em sua própria obra, aponta para um fazer literário que opera com combinações de um conjunto determinado de situações dramáticas e personagens”, comenta o pesquisador. “Além disso, a repetição reiterada de nomes tão comuns na cultura brasileira atenua a identidade dos personagens, tornando-os estereótipos, ainda mais por estarem sempre inseridos em narrativas que tematizam guerras conjugais. Isso realça a mesmice da vida humana.”

Trevisan foi agraciado quatro vezes com o Prêmio Jabuti na categoria de contos e crônicas. Em uma delas por Novelas nada exemplares (Livraria José Olympio Editora, 1959), terceiro livro publicado pelo autor. Ele já havia escrito Sonata ao luar, lançado de forma independente, em 1945, e Sete anos de pastor (Edições Joaquim, 1948). Outros títulos contemplados foram Cemitério de elefantes (Civilização Brasileira, 1964), Ah, é? (Record, 1994) e Desgracida (Record, 2010). Além do Jabuti, Trevisan recebeu alguns dos prêmios mais importantes da língua portuguesa, como o Prêmio Portugal Telecom de Literatura (hoje chamado de Oceanos), em 2003; o Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional, em 2008 e 2015; o Camões e o Machado de Assis, ambos em 2012.

Uma outra Curitiba
“Em cada esquina de Curitiba um Raskólnikov te saúda, a mão na machadinha sob o paletó”, escreveu o autor em um dos microcontos de 234 (Record, 1997), fazendo referência ao protagonista de Crime e castigo, do romancista russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881). “O conto de Dalton Trevisan também ganhou destaque na literatura brasileira pela tematização da violência, do ódio, da solidão e do desejo num mundo degradado. A partir de episódios mínimos e, por vezes, ordinários, seus contos destacam a complexidade dos dramas humanos que emergem do esfacelamento das relações cotidianas”, analisa Valentin.

Essa Curitiba violenta, provinciana e terrível, lar de uma população marginalizada, composta por bêbados, prostitutas, assassinos e predadores sexuais, é tema de grande parte dos textos de Trevisan. É o que se pode verificar em contos como “Uma vela para Dario”, “Cemitério de elefantes” e o célebre “O vampiro de Curitiba”, publicado no livro homônimo de 1965. Na história, Nelsinho, personagem obcecado por sexo, caminha pelas ruas da capital paranaense em busca de mulheres que possam satisfazer seus desejos. Ele ainda aparece em outras narrativas curtas, como “A noite da paixão”, último conto da mesma obra, em que se vê no lugar da “vítima” ao fazer sexo com uma prostituta desdentada. O personagem ficou tão famoso que sua imagem passou a se confundir com a do próprio Trevisan, cujo estilo de vida recluso e avesso a entrevistas aumentou a mítica em torno de si. Porém suas criações fictícias são bastante inspiradas no período em que trabalhou como repórter policial depois de se formar em direito.

Mayara Ferrão

O vampiro, portanto, está intrinsecamente ligado à cidade de Curitiba – algo que ocorre também com o autor, que trata esse cenário urbano de uma forma diferente do que se costuma encontrar na literatura. “É bastante comum a literatura ou os textos memorialísticos caracterizarem a cidade natal como um local de aconchego, que desperta nostalgia. Entretanto, não é o que ocorre nas obras de James Joyce [1882-1941] e de Dalton Trevisan”, comenta Priscila Giacomassi, professora de língua portuguesa e inglesa do Instituto Federal do Paraná (IFPR) e doutora em estudos literários pela UFPR. No ano passado, ela publicou no Abei Journal – The Brazilian Journal of Irish Studies, da USP, artigo em que compara a cidade de Dublin na obra do irlandês Joyce com a Curitiba de Trevisan. Segundo a pesquisadora, ambas as cidades, no universo ficcional desses escritores, são lugares inóspitos, sufocantes e dos quais os personagens desejam reiteradamente escapar. “Não são apenas cenários, mas assumem um papel muito maior, como uma ‘persona’ atroz que aprisiona seus habitantes e traça seus destinos.”

De acordo com Giacomassi, nesses dois lugares, as personagens buscam escapar de uma realidade marcada por frustração, decadência e paralisia. “No entanto, essa fuga revela-se impraticável. A impossibilidade de conseguirem deixar o espaço físico da cidade invariavelmente os leva a sublimar essa necessidade por meio de outros tipos de evasão, tais como o sonho, o devaneio e vícios, em particular, a bebida.”

Assim como a cidade é vista de uma forma mais crua e menos idealizada, a velhice também é abordada sob o mesmo ponto de vista. Foi esse o tema da pesquisa de doutorado de Márcia Tavares, da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Na tese, defendida em 2002, na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), ela analisou como a questão aparece em mais de 60 contos de Trevisan. Desde então, investiga o assunto. “Não é uma velhice sacralizada, que apela para a memória. A velhice do autor é seca, dura, violenta, solitária. Existem poucos contos em que os filhos estão próximos aos pais. Os homens nessa fase ainda imaginam que são vampiros e vão seduzir as mulheres, enquanto as mulheres, não raro, dizem uma frase recorrente: ‘Tão logo ele morra [o marido], eu começo a viver’”, aponta a pesquisadora.

Nesse sentido, trata-se de uma velhice que intensifica a brutalidade e a crueldade da juventude. É o que se nota nos contos de A guerra conjugal (Civilização Brasileira, 1969), protagonizados por João e Maria, que representam as várias facetas e fases de uma relação conjugal. Em “Batalha de bilhetes”, por exemplo, um casal de idosos, apesar de morar na mesma residência, apenas se comunica por bilhetes, mostrando a alienação e a solidão afetivas. “As personagens nesse estágio da vida não acumularam sabedoria. É como se as mazelas só se intensificassem. Não há redenção para essas pessoas”, observa Tavares.

A pesquisadora destaca outros aspectos que até então não eram tratados na literatura brasileira com relação a esse tema: a restrição de mobilidade da população mais envelhecida em espaços urbanos e a falta da coletividade nas histórias que trazem personagens idosos como protagonistas, marcados por uma vida individualista e confinada em suas residências, com poucos contatos externos.

Para Guimarães, da USP, Trevisan é o autor brasileiro vivo mais importante não apenas pela inventividade e experimentação da obra, como também pelo acompanhamento atento que faz do mundo e do Brasil em mais de oito décadas de vida literária. “Fala-se muito da repetição em Dalton Trevisan, mas pouco se diz de como seus escritos são variados e de como sua obra muda ao longo do tempo. É uma produção que vai do lírico ao obsceno, do cômico ao trágico, do pungente ao farsesco, e registra com muita argúcia e graça as voltas que o mundo dá”, diz o pesquisador. “E essas voltas implicam tanto mudanças como repetições das questões fundamentais que nos afligem, e que seus escritos registram em um estilo inconfundível.”

A reportagem acima foi publicada com o título “Mestre do conto” na edição impressa nº 342, de agosto de 2024.

Projeto
Da imprensa periódica aos livros: O boom do conto brasileiro entre as décadas de 1950 e 1970 (nº 16/20464-0); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Arnaldo Franco Junior (Unesp); Bolsista Leandro Henrique Aparecido Valentin; Investimento R$ 172.417,14

Artigos científicos
GIACOMASSI, P. C. Devouring hometowns: James Joyce’s Dublin and Dalton Trevisan’s Curitiba. Abei Journal, USP. v. 25, n. 1, p. 99-115. jun. 2023.
SOUZA, F. Vanguarda e tradição no manifesto da revista Joaquim. Revista Brasileira de História. v. 42, n. 90, mai-ago. p. 167-88. 2022.
TAVARES, M. O território da velhice em Dalton Trevisan. Anuário da Literatura, UFSC. v. 26, p. 01-21. 2021.

Livro
GUIMARÃES, H. S e PAIXÃO, F. (org.). Dalton Trevisan: Uma literatura nada exemplar. São Paulo: Tinta-da-China Brasil/IEB-USP, 2024.

Fonte: https://revistapesquisa.fapesp.br/dalton-trevisan-quase-centenario/?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=Ed342&utm_id=ago24 

Nenhum comentário:

Postar um comentário