Anselmo Borges*
Explicitando:
o que é e como é ser o Alberto ou a Eunice, viver-se a si mesmo por
dentro como o Alberto ou a Eunice? Nunca saberei. E como é o mundo visto
a partir deles? E como é que ele ou ela me vêem? O quê e quem sou eu
realmente para eles, a partir do seu olhar?
E como é que eu sei que
há o outro, não enquanto outro eu - ainda no prolongamento de mim -, mas
precisamente como um eu outro, sujeito inapreensível?
Sartre teorizou que esse saber é dado de modo indubitável no sentimento da vergonha. E dá o exemplo de alguém que, num hotel, está, concentrado, a espreitar pelo buraco da fechadura. Ouve passos no corredor. Então, no sentimento paralisante da vergonha, ao ficar objectivado pelo olhar do outro a quem os passos pertencem, sabe que há um sujeito que não é ele. Ele é objecto para esse sujeito que o vê: é visto.
Sem o outro não há eu, como diz o conceito de Ubuntu, próprio da cultura africana, que diz precisamente: “Eu sou eu através de ti”, e na solidariedade e colaboração, não na competição. Se a única ou a principal relação com o outro fosse a da vergonha, não se aguentava viver, porque “o inferno” seriam “os outros”.
Seria insuportável estar sob a vigia de um olhar omnipresente. Por isso, para Nietzsche, o olhar de Deus é intolerável. Em A Gaia Ciência, uma miúda pergunta à mãe: “É verdade que Deus está em toda a parte?”, respondendo ela própria: “Eu considero isso uma indecência.” Então, em Assim Falava Zaratustra, escreve: o Deus que objectiva o Homem “tinha de morrer, porque via com olhos que viam tudo. A sua piedade desconhecia o pudor: ele metia-se nos meus recantos mais sórdidos.”
Também Jean-Paul Sartre cortou relações com Deus, o Todo-Poderoso, por causa do seu olhar horrorosamente indiscreto. “Uma só vez tive a sensação de que Ele existia. Brincava com fósforos e queimava um pequeno tapete; estava eu a dissimular o meu crime quando, de súbito, Deus viu-me; eu rodopiava na casa de banho, horrivelmente visível, um alvo vivo. Salvou-me a indignação. Blasfemei, murmurei como o meu avô: ‘Maldito o nome de Deus, nome de Deus, nome de Deus.’ Nunca mais Ele me contemplou.”
É certo que só vimos a nós na correlação com o outro. Sem outros eus enquanto tus, não há eu. Mas, repito, será que a única ou mesmo a principal relação com o outro é a da vergonha? Entre mim e o outro há uma tensão dialéctica: de distância e proximidade. Afinal, a relação com o outro pode ser de rivalidade ou de aliança, de destruição ou de criação. Então, precisamente no olhar do outro, enquanto próximo inobjectivável, irredutível, de que não posso dispor, pode revelar-se o apelo misterioso da proximidade infinita do Deus infinitamente Outro.
Conta a Bíblia, no Livro do Êxodo, que Moisés quis ver Deus, e Deus respondeu: “Farei passar diante de ti toda a minha bondade... mas tu não poderás ver a minha face, pois o Homem não pode contemplar-me e continuar a viver.” O Senhor disse: “Está aqui um lugar próximo de mim; conservar-te-ás sobre o rochedo. Quando a minha glória passar, colocar-te-ei na cavidade do rochedo e cobrir-te-ei com a minha mão, até que Eu tenha passado. Retirarei a mão, e poderás então ver-me por detrás. Quanto à minha face, ela não pode ser vista.”
Segundo a fé cristã, o Deus invisível deixou-se ver no rosto e no olhar misericordioso de Jesus. Ele deixa-se ver no rosto de todos os homens, mulheres e crianças: “O que fizestes a um destes mais pequeninos - dar de comer, de beber, curar, visitar... - a mim o fizestes.”
*Padre e Professor de Filosofia. - Imagem da Internet
Fonte: https://www.dn.pt/2916245186/o-homem-questao-para-si-mesmo-5-no-rosto-o-olhar/
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