sexta-feira, 20 de setembro de 2024

A RELAÇÃO ENTRE A ÍNDIA E A UNIÃO EUROPEIA NO XADREZ TRIDIMENSIONAL DA GEOPOLÍTICA.

 Por Flávio Aguiar 

 aperto de mão da índia com a união europeia melhor uso da ue para negócios  ou qualquer projeto 15581345 Vetor no Vecteezy

---------------------------------------

Quem lembra da série televisiva “Jornada nas Estrelas” deve ter na retina, mesmo que fatigada, a imagem do xadrez tri-dimensional em que despontava a inteligência do Sr. Spock, o cientista, comandante e diplomata nascido no planeta Vulcano em 2230, de orelhas pontiagudas e sobrancelhas aparadas, vivido na tela dos anos 60 por Leonard Nimroy.

As peças convencionais de xadrez se distribuíam sobre uma série de pequenos tabuleiros dispostos verticalmente, sustentados por um meio arco provavelmente metálico, e ali os tripulantes da nave-mãe, a Enterprise, depunham seus conhecimentos e táticas soberanas no jogo. Havia uma hierarquia entre os tabuleiros, sendo os mais altos considerados superiores aos mais baixos. Os telespectadores da série viam e ouviam as jogadas, “Rainha vs bispo no tabuleiro 5”, “bispo na terceira do cavalo no tabuleiro 2” e assim por diante. Mas desconheciam as regras do jogo; o conhecimento destas ficava restrito aos personagens da série.

Considero esta imagem uma metáfora muito apropriada para se caracterizar o universo diplomático, para-diplomático e extra- diplomático (guerras) da geopolítica mundial. Nesta, as potências mundiais ditavam e ditam as regras nos territórios que consideram sob sua “jurisdição”, seguindo normas próprias que frequentemente violam as leis internacionais e atropelam soberanias menores ou regionais. Muito comumente impunham e impõem valores, práticas e restrições que considerem fundamentais para a manutenção ou ampliação de seu reinado. Isto não é uma prática nova. Lembremos a série de golpes de estado impulsionados, patrocinados e protegidos pelos Estados Unidos na América Latina, a invasão da ilha de Granada em 1983 por tropas norte-americanas, além de outras intervenções pelo mundo, e as invasões soviéticas no antigo Leste Europeu sob o manto do finado Pacto de Varsóvia. Houve também o patrocínio das “revoluções coloridas” no mesmo antigo Leste Europeu, como na Ucrânia em 2014.

Mais recentemente, desde a invasão do Iraque em 2003, tais práticas se tornaram moeda comum, com as intervenções da OTAN nos Bálcãs, na Líbia, a pressão da OTAN sobre a Rússia, e a invasão da Ucrânia pela Rússia. Nos últimos tempos tais práticas entraram pelo campo aberto da pirataria escancarada, como na aplicação das reservas russas congeladas no sistema financeiro do Ocidente em benefício da Ucrânia em garantia dos empréstimos concedidos a esta pelo próprio Ocidente e os confiscos dos aviões venezuelanos pelos Estados Unidos.

Parece que estamos voltando ao universo geopolítico anterior à Primeira Guerra Mundial, quando as potências europeias faziam gato e sapato no hoje chamado Sul Global, e os Estados Unidos ensaiavam seus primeiros passos na carreira imperialista. A geopolítica é jogada em diferentes tabuleiros hierarquicamente distribuídos, com “regras” definidas unilateralmente nos bastidores das relações internacionais.

Apesar de tudo, o mundo não é o mesmo daquele prevalecente até as duas guerras mundiais. E uma das provas desta diferença está nas relações entre a Índia e a União Europeia. Para começo de conversa, a soberba Europa Ocidental de antes, ainda que tenha algo de seus poderes preservados, não passa de uma atriz coadjuvante da política norte-americana através da OTAN. E desde sua independência em 1947 a Índia vem mudando sua posição no xadrez tridimensional da geopolítica, saltando para alguns dos

tabuleiros superiores.

Alguns números de comércio e investimentos podem nos ajudar a entender o que está acontecendo. Em 2023 a Índia exportou para a União Europeia 64,860 bilhões de euros em mercadorias e em 2022, 26,856 bilhões em serviços, importando da mesma 48,315 bilhões em mercadorias e 21,882 bilhões em serviços. O superávit da Índia nestes números, é de 21,519 bilhões.

Os números são mais impressionantes se olharmos para o mesmo padrão de relações com o Reino Unido, no ano de 2023. A Índia exportou 12,480 bilhões de dólares para o Reino Unido e importou dele 6,750 bilhões, com um saldo positivo de 5,73 bilhões.

Ao mesmo tempo, 954 empresas indianas investem no Reino Unido, como um retorno em 2022 da ordem de 65,800 bilhões de dólares, enquanto 618 empresas britânicas investem na Índia, com um retorno no mesmo ano de US$ 45,600 bilhões.

É claro que uma análise mais refinada, que não tenho condições de fazer aqui, deve detalhar o conteúdo destas exportações, importações e investimentos. Mas o dado bruto já é significativo para demonstrar que, mesmo no mapa das desigualdades mundiais, as posições nos tabuleiros tri-dimensionais estão passando por mudanças. A tal ponto que o político britânico Boris Johnson, quando ministro de Relações Exteriores, chegou a mencionar com algum exagero retórico, por ocasião dos 70 anos da independência da Índia, que seu país era o beneficiário de um “colonialismo reverso”…

No campo político propriamente dito também há movimentos tectônicos significativos. A Índia é membro fundador dos BRICS.

Num autêntico roque tri-dimensional passa por um momento de “détente” em relação a sua antiga rival continental, a China. Mantém sua política de colaboração, inclusive militar, com a Rússia. E sua frente de disputa com o Paquistão está de momento

“congelada”. Ao mesmo tempo fez uma jogada diagonal de bispo, ou de salto triplo de cavalo, nos tabuleiros internacionais, aterrizando na guerra da OTAN, e de sua coadjuvante União Europeia, através da Ucrânia, e a Rússia. Visitando Moscou e Kiev, o primeiro-ministro Narendra Modi colocou-se à disposição, como os dirigentes do Brasil, da Turquia e da China, para exercer virtualmente o papel de mediação de uma solução negociada. Desta forma, a Índia subiu a um patamar no tabuleiro que a União Europeia não tem mais condições de alcançar, ficando mais submetida do que senhora das sanções econômicas anti-russas que se viu forçada a adotar, como protetorado militar dos Estados Unidos, via OTAN. - Artigo publicado no Boletim n°7 do Observatório Internacional do Século XXI.  

Nenhum comentário:

Postar um comentário