Germano Almeida - Especialista em Política Internacional
No seu mais recente livro - Autocracia, Inc. - Os Ditadores que Querem Governar o Mundo - Anne Applebaum vai ao ponto: “As autocracias trabalham em conjunto para destruir o mundo democrático. É nosso dever organizarmo-nos para as derrotar.”
Estamos num momento crucial para sabermos se as democracias vão mesmo estar à altura de se protegerem da ameaça existencial que nos está a ser colocada - ou, sequer, se conseguiremos perceber o que já está em causa.
No livro, a jornalista e historiadora norte-americana - casada com o atual chefe da diplomacia polaco, Radoslaw Sikorski - lança um apelo para que as democracias reorientem fundamentalmente as suas políticas para combater este novo tipo de ameaça: “Todos temos em mente uma noção de como é um Estado autocrático: há um líder todo-poderoso no topo e esse líder controla a polícia. A polícia ameaça as pessoas com o uso de violência. E inclui colaboradores malignos e talvez alguns dissidentes corajosos. Mas, no século XXI, a realidade já não é essa. Hoje em dia, as autocracias não são sustentadas por um ditador, mas por redes sofisticadas compostas por estruturas financeiras cleptocráticas, tecnologias de vigilância e propagandistas profissionais, que operam em vários regimes, desde a China à Rússia ou ao Irão. As empresas corruptas de um país fazem negócios com as empresas corruptas de outro. A polícia de um país pode treinar a polícia de outro e fornecer-lhe armamento. Os propagandistas partilham recursos e temas, transmitindo as mesmas mensagens sobre a fraqueza da democracia e os males da América.”
Para liderar este combate existencial para as democracias liberais ainda não há alternativa real aos Estados Unidos da América. E continua a ser fundamental saber quem ocupa a Casa Branca. O poder do presidente dos EUA, mesmo tendo limitações contraproducentes no plano da aplicação da política interna, sobretudo em situações de Congresso dividido ou politicamente hostil, tem um grande arco de exploração no plano da política externa.
No caso da resistência ucraniana à agressão ilegal, criminosa e não-provocada da Rússia, trata-se de sabermos se a invasão em larga escala iniciada a 24 de fevereiro de 2022 terminará numa vitória da Rússia imperialista a engolir boa parte da Ucrânia, colocando-se perigosamente às portas da UE ou, em alternativa, se for conseguida uma vitória da Ucrânia como país íntegro, soberano e capaz de tomar livremente as suas opções geoestratégicas e geopolíticas (como poder entrar na UE e na NATO).
Ou seja: ou uma Rússia imperial a ameaçar em definitivo o projeto europeu, ou uma Ucrânia democrática e pró-europeia às portas da Rússia.
Um momento absolutamente definidor
Basta ler os sinais do encontro de Trump com Zelensky. Antes ainda da conversa, realizada na Trump Tower, o candidato presidencial republicano disse que se dava bem com o presidente ucraniano, “do mesmo modo que me dou bem com o presidente Putin”. Zelensky ainda engoliu em seco e, segundos depois, atirou: “Bom, espero que se dê melhor connosco…” Trump retaliou, sem facilitar: “Bem, é preciso dois para dançar o tango.”
Foi um momento absolutamente definidor.
Até agora, ainda havia quem quisesse ver nas contradições de Trump em relação ao tema: atacou Zelensky em contexto de campanha eleitoral, mas dois dias depois recebeu-o e disse que isso era “uma honra”; anda há dois anos a dizer que é preciso acabar com a guerra num instante, mas terá dado luz verde a Mike Johnson para a aprovação em abril passado, no Congresso, do mais robusto pacote de ajuda à Ucrânia.
Mas não vale mesmo a pena continuar a alimentar ilusões ou querer cair em ambiguidades de linguagem: se Trump ganhar em novembro, a Ucrânia já sabe que deixa de contar com os EUA para a defender verdadeiramente. É importante que tenhamos consciência disso, em vez de insistirmos em fazer o papel de “idiotas úteis”, como tanta gente tem feito em relação a Trump ao longo destes anos, dando-lhe um benefício da dúvida que ele, manifestamente, não merece.
Estamos num momento de necessidade de clareza: Donald Trump vai preferir estar do lado das autocracias, não hesitará em deixar cair a Ucrânia e não terá o menor pejo em deixar a Europa exposta ao urso russo.
Por muito que Zelensky tenha jurado, no final, que foi “uma reunião muito produtiva”, fica cada vez mais claro o que Trump se prepara para fazer se voltar à Casa Branca: “Se vencermos, vamos resolver isto, a guerra, muito rapidamente.”
"Concordámos que devemos acabar com a guerra na Ucrânia”, declarou Zelensky ainda antes da reunião. Mas terá sido mais um… concordar em discordar. Trump fez questão de não mostrar grande empatia com Zelensky e o foco em dizer que é amigo de Putin é simplesmente lamentável. “Esta guerra não deveria ter começado”, ripostou Zelensky. “Penso que o problema é que Putin matou tantas pessoas e, claro, precisamos de fazer tudo para pressioná-lo a parar esta guerra. Ele está no nosso território, isso é o mais importante de perceber, ele está em território nosso.”
Recuemos uns dias para perceber o que se passou na Geórgia
Em comício na Geórgia, na passada terça-feira, dois dias antes do encontro acima referido, Trump falou sobre a Ucrânia de um modo que retira qualquer ilusão sobre o que conta fazer se regressar à Casa Branca. Rotulou Zelensky de “grande vendedor”, alguém que, “sempre que cá vem aos EUA, sai daqui com mais alguns biliões de dólares garantidos”. Uma forma miserável de se referir à ajuda fundamental que os Estados Unidos estão a dar à resistência ucraniana ao invasor russo. “O Biden e a Kamala meteram-nos nesta guerra na Ucrânia, e agora não nos conseguem tirar. Eles não nos conseguem tirar.”
Trump insistiu: “Acho que estamos presos nessa guerra a não ser que eu seja presidente. Eu vou fazê-lo. Eu vou negociar, eu vou sair. Temos de sair. O Biden diz que não saímos até ganhar. O que acontece se eles ganharem.”
Este tipo de posição agrava a ideia de que o destino da Ucrânia está mesmo dependente dos eleitores indecisos dos swing states norte-americanos. Se Trump voltar a ser presidente, o maior apoiante da Ucrânia vai passar a ser liderado por alguém que está disposto a entregar Kiev a um acordo que tem tudo para premiar o agressor e punir o agredido.
É isto que está verdadeiramente em causa. Quem ainda não percebeu que acorde.
Escalada no Médio Oriente pode beneficiar Trump
O agravar da situação no Médio Oriente, com uma guerra que parece iminente entre Israel e o Hezbollah, e uma mais que provável incursão terrestre israelita no Sul do Líbano, é tema que certamente vai implicar contágio nesta reta final da eleição americana.
O discurso tremendista, a roçar o apocalíptico, de Trump pode, neste contexto, capitalizar: Donald tem dito que, “com Kamala na Casa Branca, Israel acabaria em dois anos”; tem acusado Biden de fraqueza nestes temas e de permitir que, nos seus anos de presidência, tenham ocorrido várias guerras. Trump surge como “o salvador de Israel”, com ele haveria condições para o Governo de Netanyahu “resolver as coisas rapidamente”.
Kamala, no oposto, fica numa situação complicada: como segurar o voto da esquerda anti-Israel e pró-Palestina mantendo o discurso de “os EUA vão sempre fazer tudo para garantir a segurança de Israel”?
Fonte: https://www.dn.pt/2809830978/o-fim-das-ilusoes/
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