Por Christina Vital da Cunha*
Ele expõe questões maiores que já estão em curso
O caso Marçal é útil para refletir sobre diversos aspectos, como o poder das mídias sociais nas novas formas de empreendedorismo e sobre o discurso do mérito que ressoa emocionalmente entre muitos brasileiros. No entanto, gostaria de focar nas mudanças que este caso expressa no campo evangélico nacional.
Marçal é um dos principais expoentes de uma transformação sociocultural significativa no Brasil. Essa transformação se baseia na difusão de valores morais de referência, de expressões pentecostais usadas no cotidiano, de uma visão da vida fundada na confissão positiva, que prega o poder da palavra em nome de Jesus e que busca por prosperidade em todas as áreas da vida, não apenas na financeira.
Marçal exemplifica essa transformação associada ao crescimento de evangélicos e sua interface com política, artes, mídias e economia, incorporando gramáticas e performances de líderes pentecostais. Ele usa essas habilidades em seus cursos e pregações, soando natural e estimulante para seus seguidores.
Essa mudança reflete outras transformações. A religiosidade evangélica até aqui vivida principalmente nas igrejas e controlada por pastores, baseada em encontros presenciais e em exclusivismo de fé, ganha autonomia. O território digital ampliou o acesso das pessoas ao evangelicalismo, possibilitou a criação de líderes independentes de denominações e de fiéis não vinculados a nenhuma instituição específica. Todo esse cenário pode facilitar o crescimento de um múltiplo pertencimento religioso em novas bases, diferenciando-se do que acontecia comumente no Brasil de décadas atrás.
Outra transformação envolve os mediadores religiosos. O debate até os anos 1990 indicava que o movimento evangélico rompia com a centralidade de mediadores viabilizando uma vinculação direta com Deus por meio do acesso direito à Bíblia e de uma disciplina espiritual própria. Contudo, hoje, vemos a ascensão de celebridades gospel e grandes lideranças midiáticas que substituem o estudo bíblico por uma abordagem motivacional, deixando de lado a valorização de uma contenção moral existente no protestantismo e no pentecostalismo tradicional.
O caso Marçal exemplifica essa renovação das mediações religiosas e novas formas de monetização do religioso no ambiente político e digital. Embora as denúncias contra ele devam ser investigadas, o fenômeno que ele representa vai além de sua figura e não pode ser contido por ações voluntaristas ou religiosas. Ele expõe questões maiores que já estão em curso.
A disputa sobre o que é eticamente aceitável em nossa cultura é crucial, mas não devemos ter a ilusão de poder escolher quem participa do jogo democrático. Nesse contexto, questionar se Pablo Marçal é realmente evangélico ou não é uma falsa questão para entender o que está acontecendo no Brasil, entre os evangélicos e no empreendedorismo digital.
* É antropóloga, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora de “Oração de Traficante: uma Etnografia”
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