segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Outra inteligência artificial é possível

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A inteligência artificial se desenvolve rápido, mas prejudica o clima e relações 
(Foto: Pedro França/Agência Senado)

Os avanços da inteligência artificial são impressionantes, mas questionáveis: a tecnologia não está deixando de lado o essencial? Na década de 1970, os hippies que trabalhavam com informática sonhavam com máquinas que ajudariam a desenvolver nossa inteligência “natural” e nossa relação com o mundo


Um espectro assombra a América ‒ o espectro do comunismo. Desta vez, ele é digital. “O comunismo gerido por inteligência artificial poderia funcionar?”, pergunta Daron Acemoğlu, economista do Massachusetts Institute of Technology (MIT), enquanto o capitalista de risco Marc Andreessen se preocupa se a China está prestes a criar uma inteligência artificial (IA) comunista.1 Até mesmo o agitador republicano Vivek Ramaswamy contribui com sua análise, afirmando no X que a IA pró-comunista constitui uma ameaça comparável à da Covid-19.

Entretanto, quem realmente sabe, no meio do pânico geral, do que estamos falando? Uma inteligência artificial comunista seguiria o modelo chinês, com plataformas semelhantes às grandes empresas norte-americanas e sujeitas a um controle estatal rigoroso, ou uma abordagem mais europeia de Estado de bem-estar social, com um desenvolvimento centralizado nas mãos de instituições públicas?

A segunda opção tem certo apelo, especialmente porque a corrida pela inteligência artificial hoje tende a priorizar a velocidade sobre a qualidade ‒ como visto em maio passado, quando a função AI Overviews do Google recomendou colocar cola nas pizzas e comer pedras.2 O financiamento público para a IA generativa, acompanhado de uma seleção rigorosa de dados e supervisão exigente, poderia aumentar a qualidade das ferramentas e o preço cobrado das empresas-clientes, garantindo uma melhor remuneração para os criadores de conteúdo.

No entanto, tentar desenvolver uma economia socializada de inteligência artificial não seria ainda assim ceder ao Vale do Silício? Uma IA “comunista” ou “socialista” deve se limitar a decidir quem detém e controla os dados ou a modificar modelos e infraestruturas computacionais? Não poderia ser portadora de transformações mais profundas?

Dois exemplos da história contemporânea sugerem uma resposta positiva. O primeiro é o CyberSyn, a iniciativa visionária do presidente chileno Salvador Allende.3 Liderado por um carismático consultor britânico chamado Stafford Beer, esse projeto ambicioso e efêmero (1970-1973) visava inventar uma maneira mais eficiente de gerenciar a economia, aproveitando os modestos recursos computacionais do país.

O CyberSyn, muitas vezes chamado de “internet socialista”, baseava-se na rede de telex chilena para coletar dados de produção de empresas nacionalizadas e enviá-los para um computador central em Santiago. No entanto, para evitar os problemas da centralização soviética, ele introduzia uma forma de aprendizado automático antecipado, destinado a dar mais poder aos trabalhadores.

Técnicos do governo visitavam as fábricas e trabalhavam em conjunto com os operários para mapear os processos de produção e gestão tal como eram aplicados na prática. Essas informações valiosas, inacessíveis aos líderes em uma empresa capitalista, eram então traduzidas em modelos operacionais e monitoradas com software estatístico específico. Os gerentes-operários podiam ser avisados quase em tempo real dos problemas que surgiam.

No coração do CyberSyn estava a visão de um sistema híbrido, no qual a capacidade de computação amplificava a inteligência humana. Transformar conhecimentos implícitos em um saber formalizado e concreto permitia que os trabalhadores ‒ a classe recém-chegada ao poder no país ‒ agissem com confiança e sabedoria, independentemente de sua experiência anterior em gestão ou economia. Haveria algo aí para nos guiar em nossa procura por uma IA socialista?

Para explorar mais a fundo o significado dessa ideia singular, é necessário olhar para as aventuras de Warren Brodey, psiquiatra que se tornou especialista em cibernética e depois hippie, hoje com 100 anos de idade.

Uma racionalidade ecológica

No fim dos anos 1960, graças ao dinheiro de um rico associado, Brodey criou em Boston um laboratório experimental chamado Environmental Ecology Lab (EEL). Algumas estações de metrô adiante, seus amigos Marvin Minsky e Seymour Papert, do MIT ‒ instituição à qual ele esteve afiliado por um tempo ‒, desenvolviam projetos de IA que, segundo ele, estavam no caminho errado. Minsky e Papert partiam do princípio de que o raciocínio humano era guiado por um conjunto de regras e processos algorítmicos abstratos que bastava enumerar e decifrar para dotar um computador de uma “inteligência artificial”.

Contrariamente a essa visão, Brodey e seus cinco colaboradores acreditavam que a inteligência, longe de estar confinada em nosso cérebro, nasce das interações com nosso ambiente. É uma inteligência ecológica. Regras e mecanismos abstratos não têm sentido por si sós; tudo está no contexto. Um exemplo simples ilustra essa teoria: a ordem para se despir não significa a mesma coisa quando dita por um médico, um amante ou um estranho encontrado em um beco escuro.

Conceber uma inteligência artificial capaz de apreender autonomamente essas sutilezas parecia um desafio monumental. Além de modelarem os processos mentais humanos, seria necessário que os computadores dominassem uma infinita variedade de conceitos, comportamentos e situações, bem como todas as suas correlações ‒ em outras palavras, compreender inteiramente o quadro cultural da civilização humana, único capaz de produzir sentido.

Em vez de se esgotar perseguindo esse objetivo aparentemente inatingível, a equipe de Brodey sonhava em colocar os computadores e as tecnologias cibernéticas a serviço dos humanos, permitindo-lhes explorar e enriquecer seu ambiente e, principalmente, a si mesmos. Nessa perspectiva, as tecnologias da informação não são apenas ferramentas para realizar tarefas, mas instrumentos para pensar o mundo e interagir com ele. Imagine, por exemplo, um chuveiro cibernético que discutisse com você sobre mudanças climáticas e a escassez de recursos hídricos, ou um carro que comentasse sobre o estado do sistema de transporte público durante a viagem. O laboratório inventou até mesmo um traje que, ao ser usado para dançar, modificava a música em tempo real, destacando as complexas relações entre som e movimento.

O Environmental Ecology Lab rejeitava a Escola de Frankfurt e sua crítica à razão instrumental: era o capitalismo industrial, e não a tecnologia, que privava nosso mundo de sua dimensão ecológica e nos obrigava a adotar a racionalidade meios-fins criticada por Theodor Adorno, Max Horkheimer e Herbert Marcuse. Para restaurar essa dimensão perdida, queria nos fazer conscientes, com a ajuda de sensores e computadores, das complexidades ocultas por trás dos aspectos mais banais da existência.

As ideias extravagantes de Brodey deixaram uma marca profunda, mas paradoxalmente quase invisível em nossa cultura digital. Durante sua breve carreira no MIT, Brodey foi mentor de Nicholas Negroponte, pioneiro tecnoutopista cujos trabalhos no MIT Media Lab contribuíram significativamente para definir os termos do debate sobre a revolução digital.4 No entanto, as filosofias dos dois homens diferiam profundamente.

Brodey acreditava que os dispositivos cibernéticos de nova geração deveriam se destacar principalmente por sua “reatividade”, um meio de facilitar o diálogo homem-máquina e aguçar nossa consciência ecológica. Ele postulava que os indivíduos aspiravam sinceramente a evoluir e via o computador como um aliado nesse esforço de transformação contínua. Seu pupilo, Negroponte, adaptou o conceito para torná-lo mais prático: as máquinas tinham como função principal entender, prever e satisfazer nossas necessidades imediatas. Em suma, Negroponte procurava criar máquinas originais e excêntricas, enquanto Brodey, convencido de que ambientes inteligentes ‒ e inteligência de forma geral ‒ não podiam existir sem pessoas, tentava criar humanos originais e excêntricos. A visão de Negroponte foi a que o Vale do Silício adotou.

Outro elemento que distinguia Brodey de seus pares: enquanto os informáticos da época viam a IA como uma ferramenta para aumentar o humano ‒ com as máquinas realizando as tarefas mais banais para estimular a produtividade ‒, ele visava melhorar o humano ‒ um conceito que ia muito além da mera eficiência.5

A distinção entre esses dois paradigmas é sutil, mas crucial. “Aumento” é quando você usa o GPS de seu telefone para se orientar em um território desconhecido: isso permite chegar ao destino mais rápido e facilmente. O ganho, no entanto, é efêmero. Retire essa muleta tecnológica e você se sente ainda mais desamparado. “Melhorar” consiste em usar a tecnologia para desenvolver novas habilidades ‒ aqui, seria aprimorar seu senso inato de orientação usando técnicas avançadas de memorização ou aprendendo a decifrar sinais da natureza.

Em essência, o aumento nos priva de habilidades em nome da eficiência, enquanto a melhoria nos faz adquirir novas e enriquece nossas interações com o mundo. Dessa diferença fundamental resulta a forma como integramos a tecnologia em nossa vida, transformando-nos em operadores passivos ou em artesãos criativos.

Brodey formou essas convicções participando, como psiquiatra, de um programa semissecreto elaborado pela CIA no início dos anos 1960. A agência de inteligência norte-americana teve a ideia brilhante de ensinar russo a uma equipe de cegos escolhidos a dedo, depois fazê-los ouvir comunicações soviéticas interceptadas. Partia do pressuposto de que, por causa da cegueira, seus outros sentidos eram mais aguçados do que os de analistas com visão. Após vários anos trabalhando com essas pessoas para identificar as pistas internas e externas ‒ calor corporal, taxa de umidade, qualidade da luz… ‒ que elas usavam para enriquecer suas percepções, Brodey descobriu que a aptidão para o aprimoramento dos sentidos era, na verdade, universalmente compartilhada.

Se esse programa de melhoria, que nos atribuía uma sensibilidade artística em potencial, era resolutamente poético, Brodey, um pragmático incorrigível, considerava impossível colocá-lo em prática sem a ajuda dos computadores. Quando tentou trazê-lo ao MIT para transformá-lo em um campo de pesquisa oficial, encontrou feroz oposição não apenas da elite conservadora da IA. Outros também viram conotações nazistas sombrias: Brodey não estava sugerindo fazer experiências em humanos? Essa reação finalmente o obrigou a recorrer a doadores privados.

A diferença profunda entre aumento e melhoria do humano ‒ e suas consequências em termos de automação ‒ só ficou evidente décadas depois. O aumento visa criar máquinas que pensem e sintam como nós, correndo o risco de tornar nossas habilidades obsoletas. As ferramentas atuais baseadas em IA generativa não apenas se propõem a “aumentar” o trabalho dos artistas e escritores, mas também ameaçam substituí-los completamente. Ao contrário, as tecnologias inteligentes de Brodey não visavam automatizar a humanidade até torná-la obsoleta nem padronizar as existências. Prometiam enriquecer nossos gostos e ampliar nossas habilidades, elevando a experiência humana em vez de diminuí-la.

 

Libertar capacidades humanas adormecidas

Essa era uma visão corajosa no contexto da época, quando a maioria dos representantes da contracultura via a tecnologia como uma força anônima e sem alma da qual era melhor desconfiar, ou, nas comunidades “de volta à terra”, como um instrumento de emancipação individual. Quando formulou essas ideias em meados da década de 1960, Brodey viu sua vida profissional e familiar se desintegrar. Suas posições o levavam cada vez mais para as margens mais vanguardistas do establishment norte-americano, do qual havia sido um respeitado membro. Como muitos na contracultura hippie, ele não reconhecia a legitimidade da política, o que o impedia de traduzir suas teorias em reivindicações.

Do outro lado do mundo, um filósofo soviético chamado Evald Ilyenkov, nascido como ele em 1924, fazia perguntas semelhantes, mas dentro do quadro conceitual do “marxismo criativo”. Seus trabalhos ajudam a entender o que envolve o conceito de melhoria do humano no pensamento comunista e socialista.

Como Brodey, Ilyenkov trabalhou muito com cegos. De seus estudos, concluiu que as capacidades cognitivas e sensoriais derivam da socialização e das interações com a tecnologia. Desde que encontremos os ambientes pedagógicos e tecnológicos corretos, podemos cultivar habilidades que possuímos em estado latente. O comunismo visa, sob a liderança do Estado, libertar as capacidades humanas adormecidas para que todos possam realizar plenamente seu potencial, independentemente das barreiras sociais ou naturais.

Irritado pela fascinação dos burocratas soviéticos pela inteligência artificial à moda norte-americana, Ilyenkov propôs uma crítica particularmente convincente em um artigo de 1968 intitulado “Ídolos e ideais”.6 Para ele, desenvolver uma inteligência artificial era como construir uma enorme e cara fábrica de areia artificial no meio do Saara. Mesmo admitindo que ela funcionasse perfeitamente, era absurdo não aproveitar o recurso natural disponível em abundância fora de seus muros.

Quase sessenta anos depois, a denúncia de Ilyenkov permanece atual. Ainda estamos presos nesse deserto, defendendo a utilidade da fábrica, sem perceber que ninguém, exceto os generais e arquitetos da ordem econômica, realmente precisa dela. Brodey usava outra imagem, emprestada de Marshall McLuhan: suas tecnologias ecológicas tinham o poder de nos abrir os olhos, como um peixe que de repente tomasse consciência da existência da água. Da mesma forma, é hora de alguém revelar aos obcecados por IA que estão rodeados por um gigantesco depósito de inteligência, humana, criativa, imprevisível e poética.

Resta a grande questão: podemos realmente nos melhorar se continuarmos a lidar com conceitos como IA que parecem contradizer a própria ideia de desenvolvimento humano?

A ambição de construir uma inteligência artificial não apenas engoliu bilhões de dólares, mas também custou caro a algumas pessoas em nível pessoal. E a intransigência dos jovens lobos que presidiram sua expansão ‒ com suas arrecadações de fundos e definição rígida das fronteiras da disciplina ‒ marginalizou pensadores visionários como Stafford Beer e Warren Brodey, que sempre se sentiram desconfortáveis com o rótulo “inteligência artificial”.

Os dois homens, que se encontraram pouco antes da morte do primeiro em 2002, vinham de mundos diametralmente opostos. Ex-executivo, Beer era membro do elitista Athenaeum Club britânico; Brodey cresceu em Toronto, em uma família judaica de classe média. Isso não os impedia de desprezar a IA como disciplina científica e o dogmatismo de seus praticantes. Eles compartilhavam também um mentor espiritual: Warren McCulloch, gigante da cibernética.

A cibernética nasceu logo após a Segunda Guerra Mundial, sob os auspícios do matemático Norbert Wiener. Muitos pesquisadores, pioneiros em seus respectivos campos (matemática, neurofisiologia, engenharia, biologia, antropologia…), perceberam uma dificuldade comum: todos se deparavam com processos complexos e não lineares em que era impossível distinguir causas de efeitos ‒ o efeito aparente de um processo natural ou social dado poderia ser simultaneamente ligado a outro.

Articulada em torno dessa ideia de causalidade mútua e de interconexão entre fenômenos aparentemente independentes, a cibernética era menos uma disciplina científica do que uma filosofia. Seus grandes pensadores não abandonavam seus campos de pesquisa originais, mas enriqueciam suas análises com uma nova perspectiva. A abordagem interdisciplinar permitia apreender os processos em máquinas, cérebros humanos e sociedades com o mesmo conjunto de conceitos.

Quando a inteligência artificial surgiu em meados dos anos 1950, parecia uma emanação natural da cibernética; na verdade, porém, ela marcava uma regressão. A cibernética queria se inspirar nas máquinas para melhor compreender a inteligência humana, não para reproduzi-la. A disciplina emergente da IA, desinibida, propôs-se a abrir uma nova fronteira fabricando máquinas capazes de “pensar” como nós. O objetivo não era desvendar os mistérios da cognição humana, mas satisfazer as exigências de seu principal cliente: o Exército. A pesquisa foi imediatamente ditada pelos imperativos de defesa, o que se revelaria determinante para sua evolução futura.

Assim, alguns dos projetos iniciais inspirados pela filosofia cibernética, como a tentativa de fabricar redes neurais artificiais, foram rapidamente redirecionados para fins militares. De repente, essas redes não visavam mais desvendar o caráter intrincado do pensamento, mas analisar imagens aéreas para localizar navios inimigos ou petroleiros. A busca ambiciosa por uma inteligência artificial acabou por cobrir com um verniz de prestígio científico contratos militares banais.

Nesse contexto, a interdisciplinaridade não era bem-vinda. A IA era dominada por jovens e brilhantes matemáticos ou desenvolvedores de informática que achavam a cibernética muito abstrata, muito filosófica e, sobretudo, potencialmente subversiva. Vale lembrar que, nesse meio-tempo, Norbert Wiener começou a apoiar lutas sindicais e a criticar o Exército, o que não o ajudava a atrair financiamento do Pentágono.

A inteligência artificial, que prometia “aumentar” os operadores humanos e elaborar armas autônomas, não sofria de tal problema de imagem. Desde o início, foi uma disciplina científica independente. Enquanto as ciências tradicionais tentavam entender o mundo às vezes usando a modelagem, os pioneiros da IA decidiram construir modelos simplificados de um fenômeno do mundo real ‒ a inteligência ‒ e nos convencer de que nada diferenciava os modelos do fenômeno real. Um pouco como se geógrafos renegados criassem uma nova disciplina, o “território artificial”, tentando nos fazer acreditar que, com os avanços da tecnologia, mapa e território logo seriam a mesma coisa.

De muitas maneiras, a trajetória ‒ e a tragédia ‒ da inteligência artificial durante a Guerra Fria se assemelhou à da ciência econômica, especialmente norte-americana. A economia nos Estados Unidos havia sido uma corrente de pensamento vibrante, plural, em sintonia com as dinâmicas do mundo real, consciente de que o poder e as instituições (dos sindicatos ao Federal Reserve) influenciavam a produção e o crescimento. As prioridades da Guerra Fria fizeram dela uma disciplina obcecada por modelos abstratos ‒ otimização, equilíbrio, teoria dos jogos… ‒ cuja relevância para a vida real era secundária. Mesmo que algumas aplicações digitais, como publicidade on-line ou serviços de transporte por aplicativo, se baseiem nessas construções matemáticas, a validade pontual de uma abordagem tendenciosa não é suficiente para redimi-la. O fato é que a economia ortodoxa moderna tem pouco a oferecer para resolver problemas como desigualdade ou mudança climática, além de soluções baseadas no mercado.

A análise também vale para a inteligência artificial, que, embora descrita como um triunfo tecnológico, é muitas vezes um eufemismo para militarismo ou capitalismo. Seus defensores podem reconhecer a necessidade de algum controle e regulamentação, mas lutam para imaginar um futuro em que nossa concepção de inteligência não seja dominada pela IA. Desde o início, a IA foi menos uma ciência ‒ que se caracteriza por objetivos finais não predeterminados ‒ do que um híbrido de religião e engenharia. Seu objetivo final era criar um sistema informático universal, capaz de realizar qualquer tipo de tarefa sem ter sido explicitamente treinado para isso ‒ uma visão agora conhecida como inteligência artificial geral (IAG).

Aqui entra outro paralelo com a economia: durante a Guerra Fria, a IAG foi concebida da mesma forma que os economistas concebiam o livre mercado: como uma força autônoma, autorreguladora, à qual a humanidade teria de se adaptar. Por um lado, o pensamento econômico ignora o papel que a violência colonial, o patriarcado e o racismo desempenharam na expansão do capitalismo, como se este prolongasse naturalmente “a propensão geral ao intercâmbio, ao escambo e à troca”, segundo a célebre frase de Adam Smith.7 Por outro lado, o relato tradicional das origens da IA reconhece as contribuições da cibernética, da matemática e da lógica, mas permanece silencioso sobre o contexto histórico ou geopolítico. Como se simplesmente qualificássemos o eugenismo e a frenologia como ramos da genética e da biologia, sem nada dizer de sua dimensão racista. Não esqueçamos, como destaca Yarden Katz em seu notável ensaio Artificial Whiteness,8 que a inteligência artificial nunca teria existido sem o militarismo, o corporativismo e o patriotismo exacerbado da Guerra Fria.

Um conceito tão pervertido poderá um dia ser colocado a serviço de ambições progressistas? Defender uma “inteligência artificial comunista” não é tão inútil quanto sonhar com oficinas clandestinas humanizadas ou com instrumentos de tortura deliciosos?

As experiências de Stafford Beer e Warren Brodey sugerem que deveríamos abandonar o sonho de uma inteligência artificial socialista e nos concentrar na definição de uma política tecnológica socialista pós-IA. Em vez de tentar humanizar os produtos existentes imaginando aplicações de esquerda ou inventando novos modelos de propriedade econômica, devemos abrir a todos, independentemente de classe, etnia ou gênero, o acesso a instituições, infraestruturas e tecnologias que promovam a autonomia criativa e permitam realizar plenamente suas capacidades. Em outras palavras, devemos iniciar a transição do humano aumentado para o humano melhorado.

 

Viver em um balão, não em uma bolha

Tal política se apoiaria nos componentes do Estado de bem-estar social que estão mais distantes das palavras de ordem conservadoras do capitalismo: educação e cultura, bibliotecas, universidades e meios de comunicação. Ela abriria caminho para uma política educacional e cultural socialista, em vez de fortalecer a economia neoliberal, como faz a abordagem atual.

Brodey entendeu rapidamente que não poderia haver IA socialista sem socialismo. No início dos anos 1970, ele reconheceu que o contexto da Guerra Fria nos Estados Unidos esvaziava de sentido sua busca por “melhoria humana” e “tecnologia ecológica” ‒ sem contar que ele fazia questão de recusar dinheiro do Pentágono e até de instituições como o MIT, para marcar sua oposição à Guerra do Vietnã.

Segundo Negroponte, Brodey nunca quis ouvir falar de uma titularidade no MIT. Conforto não o interessava. Preferiu construir uma casa de espuma e balões em plena floresta, em New Hampshire. Um ambiente “reativo e inteligente” que lhe convinha. No entanto, isso era demais, até mesmo para seus admiradores. “Nem todos aspiram a viver em um balão”, ironizou Negroponte na época.

O pensamento de Brodey era impregnado de utopismo. Ele e seu colega mais próximo, Avery Johnson, esperavam que a indústria norte-americana adotasse sua visão ‒ produtos reativos e interativos que despertassem novos gostos e interesses nos usuários, em vez de explorar seu desejo consumista. Contudo, as empresas optaram pela versão mais conservadora de Negroponte, na qual a interatividade serve principalmente para as máquinas identificarem nossas ansiedades e nos fazerem comprar mais.

Em 1973, desiludido, Brodey mudou-se para a Noruega. Lá ressurgiu como maoista, membro ativo do Partido Comunista dos Trabalhadores, e chegou a ir à China para trocar ideias com engenheiros sobre seu conceito de “tecnologias reativas”. Para um homem que esteve estreitamente envolvido em projetos do Exército, da Nasa e da CIA durante a Guerra Fria, não foi uma mudança trivial.

De acordo com as longas conversas que tive com ele nos últimos dez anos na Noruega, onde ainda vive, Brodey personifica maravilhosamente o projeto de evolução aberta que defendia nos anos 1960. Evidentemente, a melhoria do humano funcionou para ele. Isso significa que talvez funcione para todos nós ‒ desde que escolhamos as tecnologias certas e cultivemos uma boa dose de ceticismo em relação à inteligência artificial, comunista ou não.

*Evgeny Morozov é autor do podcast “A Sense of Rebellion”, publicado em junho passado pela Post-Utopia e no qual este texto foi inspirado.

1 Daron Acemoğlu, “Would AI-enabled communism work?” [O comunismo gerido por IA poderia funcionar?], 28 jun. 2023, www.project-syndicate.org. Cf. também “Marc Andreessen: Future of the Internet, technology, and AI” [Marc Andreessen: futuro da internet, tecnologia e IA], podcast de Lex Fridman, n.386, 21 jun. 2023, https://lexfridman.com.

2 Stephen Morris e Madhumita Murgia, “Google’s AI search tool tells users to ‘eat rocks’ for your health” [Ferramenta de busca de IA do Google diz aos usuários para “comer pedras” para a saúde], Financial Times, Londres, 24 maio 2024.

3 Ouça o podcast “The Santiago Boys” [Os Garotos de Santiago], https://the-santiago-boys.com/, 2003, e ler Philippe Rivière, “Allende, l’informatique et la révolution” [Allende, a informática e a revolução], Le Monde Diplomatique, jul. 2010.

4 Em particular por meio de Nicholas Negroponte, Being Digital [Ser Digital], Alfred A. Knopf, 1995.

5 A primeira publicação dessa abordagem por Brodey data de 1967, embora ele se empenhasse em promovê-la desde 1964. Warren M. Brodey e Nilo Lindgren, “Human enhancement through evolutionary technology” [Melhoria humana por meio da tecnologia evolutiva], IEEE Spectrum, v.4, n.9, Nova York, set. 1967.

6 Pode-se encontrar um resumo em Keti Chukhrov, “The philosophical disability of reason: Evald Ilyenkov’s critique of machinic intelligence” [A deficiência filosófica da razão: a crítica de Evald Ilyenkov à inteligência maquinal], Radical Philosophy, n.207, Londres, primavera de 2020.

7 Adam Smith, Recherches sur la nature et les causes de la richesse des nations [Pesquisa sobre a natureza e as causas da riqueza das nações], livro I, capítulo 2.

8 Yarden Katz, Artificial Whiteness. Politics and Ideology in Artificial Intelligence [Brancura artificial. Política e ideologia na inteligência artificial], Columbia University Press, Nova York, 2020.

Fonte:  https://diplomatique.org.br/outra-inteligencia-artificial-e-possivel/

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