segunda-feira, 11 de julho de 2011

Cícero sabia das coisas

Dorrit Harazim*

 
Imagem da Internet
Há um balaio de palavras que se banalizaram de forma indigesta depois de adotadas pelo léxico do socialmente correto - transparência, parceria, comunidade, sustentabilidade são algumas delas. Mas nenhuma adquiriu vacuidade tão absoluta como o substantivo "ética" e suas variantes adjetivas ou adverbiais.
Perde-se a raiz da palavra quando, por exemplo, o empresário paulista Abílio Diniz publica um comunicado invocando os "princípios da ética comercial" no caso Carrefour, quando o governador Sergio Cabral cria duas comissões de ética para tratar das relações pessoais de seu governo com o setor privado, quando o Conselho de Ética do Senado tem Renan Calheiros entre seus integrantes.
Difícil haver um seminário de jornalismo, medicina ou olimpismo que não tenha algum painel sobre Código de Ética. Soa virtuoso, solene, importante. De tão citada, a pobre ética já se transformou numa ferramenta verbal multiuso. "Todo bandido tem ética... em todas as profissões tem ética", afirmou recentemente o advogado paulista Jefferson Badan, em defesa de um cliente que participou da morte de um universitário de 24 anos e se recusava a nomear o comparsa.
No dia seguinte Badan desculpou-se pelas declarações dadas na sede do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa - "Falei frases infelizes, fui mal interpretado" - e a diretoria da seção paulista da Ordem dos Advogados do Brasil não precisou tratar do assunto. De todo modo, segundo o presidente da OAB-SP, Luiz Flávio D"Urso, a afirmação do advogado, apesar de condenável, não infringe o... Código de Ética da entidade.
Nessa batida, o defenestrado ministro dos Transportes Alfredo Nascimento e seu filho arquiteto, cuja firma multiplicou o patrimônio em 86.500% em dois anos, ainda acabam por se escorar em alguma frase solta de Aristóteles.

Convém a presidente distribuir
o ensaio "Dos deveres"

Antes que isso aconteça, e dado que em Brasília tudo pode acontecer, convém a presidente Dilma Rousseff distribuir o ensaio "Dos deveres" de Marco Túlio Cícero, a quem cruzar com ela até o fim do mandato. Não que o livro seja recente - é do ano 44 AC - mas cai como uma luva para quem já perdeu quatro colaboradores de primeiro escalão. O ensaio tem a vantagem de ser de compreensão mais imediata do que o amplo tratado do grego Aristóteles sobre virtude e ética.
Ao escrever sua última obra, o filósofo, orador e político romano se ocupou de questões bastante simples. Qual o grau de honestidade que um homem de negócios deve manter? É lícito contornar as leis? Como deve um homem de bem responder a demandas injustas de um tirano? É correto permanecer calado?
A solução de Cícero para essas questões do dia a dia soam igualmente simples: sempre faça a coisa certa porque mesmo que o errado lhe traga alguma vantagem, ela nunca será totalmente do seu interesse. E por quê? Por ser errada.
Mas como saber o que é certo? Para começar, ensina o autor, siga a lei. E quando a lei não for justa, seja honesto, franco e reto, leal a suas convicções sejam quais forem as consequências. Diga a verdade, mesmo não estando sob juramento.
A força dessa regra de conduta aparentemente banal, ou irreal, reside na sua obviedade: todo ser humano que não seja mentalmente lesado tende a saber distinguir o certo do errado. No decorrer de toda uma vida, ensina Cícero, são poucas as circunstâncias em que não temos certeza de termos feito a escolha correta.
Mas, se não quiser distribuir textos de mais de dois mil anos de idade, Dilma também pode adotar a fórmula radical usada por Barack Obama ao ser eleito presidente dos Estados Unidos. Na época, ele entregou um formulário de 7 páginas e 63 perguntas a serem respondidas por todo postulante a qualquer cargo de confiança no governo. Não escaparam do questionário sequer os 150 nomes de sua preferência para algum dos 800 cargos que nos Estados Unidos exigem aprovação do Senado.
O questionário fuçava o passado pessoal, financeiro e profissional do candidato, e cobria os dez últimos anos de cada respondente. Além de exigir respostas igualmente detalhadas sobre as atividades de filhos maiores e cônjuges, incluía eventuais conflitos de interesses, possíveis mimos recebidos de lobistas, escapadelas amorosas. A pergunta de número 13 gerou arrepios: "Alguma vez você enviou uma mensagem eletrônica - e-mail, mensagem de texto ou SMS, que pode causar embaraço a você, sua família ou ao presidente caso venha a público?"
Para o analista político David Gergen, que foi conselheiro de quatro presidentes americanos, "este foi o questionário mais invasivo que já passou pela Casa Branca". Ele acabou excluindo a megaempresária de Chicago Penny Pritzker, herdeira de uma família que há 30 anos frequenta a lista das mais ricas dos Estados Unidos, e que arrecadara 750 milhões de dólares para a campanha democrata. Penny era a escolha de Obama para ocupar a pasta do Comércio.
Segundo a equipe de advogados que elaborou o questionário, ele não se destinava a eliminar candidaturas. Pecadillos podiam perfeitamente ser relevados, já que todo bípede os tem. A finalidade do crivo era evitar surpresas e impedir a frase mais repetida em Brasília: "Eu não sabia."
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* Jornalista.
Fonte: O globo on line, 10/07/2011

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