sábado, 8 de outubro de 2011

Mais bonzinhos do que nunca

COM ALBERTO CAIRO E ALEXANDRE DE MELO
Steven Pinker (Foto: Suki Dhanda/Camera Press/Other Images )

Em seu novo livro, o renomado
psicólogo Steven Pinker 
diz que a epidemia de violência 
é uma ilusão de ótica – 
e que o mundo nunca foi tão pacífico. 
Será?
Alguém que afirme que os últimos 100 anos foram os mais pacíficos da humanidade certamente não conhece história. Não sabe dos 55 milhões de mortos da Segunda Guerra Mundial, do extermínio de 6 milhões de judeus no Holocausto e do brutal desaparecimento, entre 2003 e 2010, de pelo menos 300 mil pessoas na guerra civil de Darfur, no Sudão. Isso sem falar do terrorismo, que, apenas neste século que se inicia, já matou milhares nos Estados Unidos, na Europa e em dezenas de países da Ásia e do Oriente Médio. Se isso tudo parece distante, ainda há a violência urbana: os moradores das grandes metrópoles se sentem crescentemente assediados por vândalos, assassinos e ladrões. A sensação de que a violência permeia nossa vida (reforçada pelo fato de que vivemos cercados de policiais ou seguranças) desafia qualquer um a defender o pacifismo, ainda que relativo, dos últimos 100 anos. O psicólogo canadense Steven Pinker não é tolo nem ignorante, mas se lançou à tarefa de demonstrar que o mundo nunca foi um lugar tão seguro para viver.
Professor da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, Pinker é um dos acadêmicos mais festejados da atualidade e um dos autores de divulgação científica mais bem-sucedidos do mundo. Em seu novo livro, lançado na semana passada nos EUA, ele usa mais de 800 páginas para afirmar, entre outras coisas, que o banho de sangue da Segunda Guerra Mundial e a epidemia de violência atual, causada pelo crime urbano, são distúrbios estatísticos. Em The better angels of our nature: why violence has declined (algo como Os melhores anjos da nossa natureza: por que a violência declinou), ainda sem tradução no Brasil, essas grandes tragédias são reduzidas ao status de exceções. A noção de que o século XX foi o mais violento da história é descartada como um erro de percepção. “As estimativas que temos sobre as mortes nos séculos anteriores, quando calculadas como uma proporção da população mundial daquele período, mostram que pelo menos nove atrocidades anteriores ao século XX parecem ser bem piores que a Segunda Guerra Mundial”, diz Pinker. “Estamos falando do colapso de impérios, das invasões de tribos montadas, do tráfego de escravos e da aniquilação de povos nativos com inspiração religiosa. Nessa lista, a Primeira Guerra Mundial nem está entre os dez eventos de maior mortalidade da história.”
mensagem (Foto: reprodução)
Pinker, um judeu canadense de 57 anos, casado pela terceira vez, é desses intelectuais que ganham fama graças a sua capacidade de traduzir, para o grande público, ideias complexas que se tornam correntes no meio acadêmico. Ele escreve espetacularmente e sabe escolher temas que desafiam verdades estabelecidas. Por isso consegue muita repercussão. Em livros como Tábula rasa (Companhia das Letras, 2004) e Como a mente funciona (Companhia das Letras, 1998), Pinker defende, como psicólogo evolucionista, a ideia de que boa parte de nosso comportamento é herdada dos tempos das cavernas. Ele não nega a importância da vida em sociedade e da educação para moldar os costumes humanos. Mas advoga a existência, dentro de nosso cérebro, de um núcleo primitivo e instintivo que nos empurra ao reino animal – esse núcleo tem de ser vigiado e controlado permanentemente, sob o risco de incorrermos de novo na barbárie. A racionalidade e a empatias são responsáveis por domar o animal em nós e constituem os “melhores anjos da nossa natureza” que dão título ao livro – uma imagem extraída de um discurso em que o presidente americano Abraham Lincoln (1809-1865) apelava, inutilmente, aos sentimentos pacifistas de seus concidadãos.
Para sustentar a tese de que nunca se matou tão pouco na história, Pinker muniu-se de dados que sugerem a tendência cada vez mais pacífica da humanidade. Os cálculos, na maior parte das vezes, são emprestados de outros especialistas, como do criminologista europeu Manuel Eisner. Pesquisando em arquivos históricos, Eisner constatou que as taxas de homicídios em países da Europa têm caído século após século. Na Londres do século XIV, a cada 100 mil habitantes, 50 morriam assassinados. Hoje, a mesma estatística em Londres é de dois assassinatos por 100 mil. Na Europa como um todo, o número de mortes violentas por 100 mil varia entre um e três (leia o quadro abaixo).
Quanto mais se volta na história da humanidade, mais impressionante se torna a comparação com o presente. O economista americano Samuel Bowles, diretor do Centro de Ciências do Comportamento do Instituto Santa Fé, procurou informações de todos os assentamentos humanos existentes há cerca de 50 mil anos, quando éramos caçadores coletores. Bowles descobriu que entre 14% e 46% das pessoas enterradas nesses lugares morreram de forma violenta. Examinando dados como esses, Pinker conclui que, nas sociedades onde não havia um governo definido, como os povos bárbaros da Idade Média, 15% da população morria em média de forma violenta. No século XX, apesar das guerras e dos genocídios, apenas 3% da população teve o mesmo fim. “Se as guerras do século XX fossem travadas nas condições das sociedades tribais, 2 bilhões de pessoas teriam morrido, não 100 milhões”, disse Pinker durante uma de suas palestras no TED, conferência internacional que reúne pesquisadores e ativistas com ideias visionárias.
FORA DO PADRÃO A nuvem radioativa produzida pela bomba 
atômica lançada pelos Estados Unidos em Nagasaki, no Japão, em 1945. Na 
teoria de Steven Pinker, a Segunda Guerra Mundial  foi uma exceção no 
século mais pacífico da história  (Foto: AP)

A nuvem radioativa produzida pela bomba atômica lançada pelos Estados Unidos em Nagasaki, no Japão, em 1945.
Na teoria de Steven Pinker, a Segunda Guerra Mundial foi uma exceção 
no século mais pacífico da história (Foto: AP)

Pinker afirma que nossa sensação de insegurança se deve a uma ilusão causada pelo funcionamento de nosso cérebro. “Estimamos a probabilidade de algo acontecer a partir da facilidade com que lembramos de casos semelhantes”, escreve Pinker. “Cenas de massacre são mais marcantes que as de pessoas morrendo de velhice. E hoje os massacres chegam até nós com enorme frequência, por causa dos meios de comunicação.” Parte da nossa ideia distorcida da violência seria culpa do excesso de informação. Um estudo recente do professor Kalev Leetaru, da Universidade de Illinois, analisou coberturas jornalísticas entre 1945 e 2011 e concluiu que o tom das notícias hoje é mais negativo e sensacionalista do que era no passado. Os fatos destacados no noticiário seriam exceções – mas se tornam inesquecíveis e moldam a percepção do mundo que nos cerca.
A explicação para a diminuição da violência, diz Pinker, se resume à ideia de que as sociedades humanas avançaram em direção a formas de governo racionais. Quanto menos organizado um grupo humano, diz ele, maior a probabilidade de que indivíduos pratiquem atos de violência como forma de resolver conflitos. Ao abraçar essa ideia, Pinker assume-se como discípulo do filósofo britânico Thomas Hobbes. Em seu livro de 1651, O Leviatã, Hobbes argumenta que a natureza humana é tão sombria – “o homem é o lobo do homem” – que instituições que controlem essa natureza são indispensáveis para a vida em sociedade. Em sua ausência, restariam o caos e a destruição. Por isso, o surgimento do Estado, capaz de estabelecer normas e sistemas para regular o comportamento dos homens, seria a base da pacificação da humanidade. Em seguida, se assentariam tendências auxiliares como a urbanização, o comércio, a disseminação da cultura e, curiosamente, a extensão da empatia. Esse sentimento, que no passado ligava apenas as pessoas de uma mesma família ou de um clã, generalizou-se. Hoje, graças à leitura e à cultura, somos capazes de nos identificar com gente de outra cor e de outra religião, que vive do outro lado do planeta. A cultura ampliou o que Pinker chama de “círculos de empatia”. Eles agora podem, potencialmente, abranger o mundo todo – e ajudar a coibir o impulso da violência que ainda é parte de nós.
Embora a conclusão central de Pinker pareça incontroversa – existe uma tendência de longo prazo rumo à redução da violência –, a lógica que ele usa para chegar a ela pode ser contestada. Pinker parece excessivamente voltado para o que acontece na Europa, sabidamente o lugar mais civilizado e menos violento do mundo. “A violência está aumentado em lugares como Caribe e África”, afirma o coronel José Vicente da Silva, mestre em psicologia social pela Universidade de São Paulo e secretário nacional de Segurança no governo Fernando Henrique. Defrontado com índices de violência do século XIV em bairros negros de Detroit e Nova Orleans, nos Estados Unidos (49 homicídios por 100 mil), Pinker responde que essas áreas vivem de forma pré-hobbesiana, sem a presença civilizatória do Estado. Um crítico poderia argumentar, com os mesmos dados, que a violência nessas cidades é parte integrante da sociedade que as produziu, onde barbárie e civilização convivem lado a lado. A diferença entre uma abordagem e a outra está no futuro que elas projetam. Se Pinker estiver correto, a presença crescente do Estado e a ampliação dos círculos de empatia farão do mundo um lugar cada vez mais seguro e pacífico. Se ele estiver errado, o mundo civilizado, por suas próprias deficiências, continuará produzindo lugares nada civilizados, onde o homem seguirá sendo o lobo do homem.
O DECLÍNIO DA VIOLÊNCIA

O psicólogo canadense Steven Pinker afirma em seu novo livro que os humanos nunca foram tão pacatos. Eis alguns dos dados usados por Pinker, produzidos por historiadores e cientistas sociais, para mostrar que as mortes violentas estão caindo ao longo da história
guerras (Foto: reprodução)
assassinatos (Foto: reprodução)
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Fonte: Revista ÉPOCA on line, 07/10/2011

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