sábado, 8 de outubro de 2011

Philip Bobbitt: "O Estado nacional não atende a sociedade"

O autor e consultor de presidentes diz que a crise financeira mostra que as formas de governo vão mudar radicalmente

RODRIGO TURRER

O MERCADO É A LEI O americano Philip Bobbitt, no campus da 
Universidade do Texas, onde dá aulas de Direito. Para ele, o 
Estado-mercado dará mais oportunidades aos indivíduos (Foto: O mercado é
 a lei)


Os Estados nacionais vão deixar de existir e serão substituídos por uma simbiose do setor financeiro, de entidades privadas e do governo. Será o Estado-mercado. A tese é do texano Philip Bobbitt, de 63 anos, professor de Direito Constitucional na Universidade do Texas. Autor de A guerra e a paz na história moderna, um dos livros mais influentes da última década, Bobbitt foi consultor de quase todos os presidentes dos Estados Unidos desde 1970. Em entrevista a ÉPOCA, ele afirma que a crise econômica que assola o Hemisfério Norte desde 2008 não desmente a tese do Estado-mercado. “A crise é a prova da mudança”, diz ele. “A falência do mercado causaria danos incontornáveis aos Estados.”
ÉPOCA – Em seu livro A guerra e a paz na história moderna, o senhor afirma que os Estados nacionais, nascidos há 500 anos, vêm sendo substituídos pelo Estado-mercado, uma simbiose do setor financeiro com a política. A crise econômica de 2008 alterou essa visão?
Philip Bobbitt -
Não alterou. Na verdade, reforçou a ideia de que o mundo é governado pelo mercado, não mais por nações. O que vemos na crise atual? Governos incapazes de solucionar uma crise financeira e econômica perpétua, por mais que se esforcem. Os governos não conseguem regulamentar a economia ou estatizar as empresas. Mesmo que quisessem, não conseguiriam, por causa da natureza global dos investimentos. É um sinal da vulnerabilidade das sociedades aos mercados globais.

ÉPOCA – A reação dos governos à crise na Europa não vai no caminho inverso: reforçar as nações ante o mercado?
Bobbitt -
Ao contrário, é a prova da mudança. A pressa em socorrer bancos e instituições financeiras para salvar a economia demonstra que a falência do mercado levaria a danos incontornáveis aos Estados. Mas os governos ainda não entenderam bem a mudança em curso. Tentam reagir com aparatos regulatórios antiquados diante de uma crise contra a qual não têm como lutar. A mudança que ocorre de Estados-nação para Estados-mercado não é uma questão de vontade: é inevitável. É o caminho que estamos seguindo: a expansão de um regime econômico mundial que ignora as fronteiras na movimentação de investimentos de capital impede os Estados de administrar nacionalmente seus problemas econômicos. Por isso os políticos europeus estão num beco sem saída.
ÉPOCA – O senhor pode explicar melhor as diferenças entre Estado-nação e Estado-mercado?
Bobbitt -
O nascimento do Estado moderno data da Renascença, quando principados e ducados italianos enfrentaram os reinos da Espanha e da França. Eles inovaram radicalmente em vários campos, mas principalmente na introdução da artilharia móvel, mais poderosa, mais leve, mais rápida, e transportável. Quando essas armas entraram na Itália, as defesas foram ineficazes. As cidades italianas eram muito ricas, mas desprotegidas. Precisaram encontrar novas fontes de renda para construir muralhas distantes de seus centros, mais altas, e posicionar sua própria artilharia. Tiveram de criar alianças menos efêmeras do que as anteriores, com embaixadores para negociar. Precisaram criar uma burocracia para manter forças militares no campo por mais tempo, e não apenas contratar soldados mercenários. Para fazer isso, precisavam de um Estado. O Estado moderno surgiu com a necessidade de desenvolver uma ordem constitucional para suplantar as ordens feudais, por meio da eficácia bélica.
"O ESTADO NÃO ESTÁ MORRENDO,
APENAS SOFRE MAIS UMA DE 
SUAS TRANSFORMAÇÕES PERIÓDICAS. 
SE A MUDANÇA SERÁ BOA OU RUIM,
SÓ O TEMPO DIRÁ "
 
ÉPOCA – As guerras criaram as nações, então?
Bobbitt -
De certa maneira, sim. A guerra é a essência humana, um ato criativo do homem civilizado. Animais não entram em guerra. Grandes conflitos de coalizões foram cruciais para o nascimento e o desenvolvimento dos Estados-nação. O que houve no século XX foi uma “Longa Guerra” com vários conflitos. Ela começou com a Primeira Guerra Mundial, em 1914, e só terminou com a Queda do Muro de Berlim, em 1989. A Longa Guerra girou em torno de uma questão constitucional fundamental: que tipo de Estado-nação (comunista, fascista ou democrático) herdaria a legitimidade antes atribuída aos Estados-nação imperiais do século XIX. O fim da Guerra Fria pôs fim ao ideal de Estados nacionais soberanos estabelecidos com a Paz de Vestfália (tratados assinados em 1648, que puseram fim a guerras europeias e são considerados o marco do sistema de Estados nacionais).

ÉPOCA – Por que o ordenamento tradicional está em xeque?
Bobbitt -
O Estado nacional é incapaz de dar à sociedade aquilo que ela almeja. É incapaz de prover o bem-estar prometido, com políticas de seguridade social, sistemas de educação e saúde de massa gratuitos, direitos humanos para todos. O Estado-nação é centralizador e regulador, enquanto o Estado-mercado é fragmentado, multipolar e transnacional. O Estado-mercado será responsável por maximizar as opções disponíveis aos indivíduos e aumentar as oportunidades para a sociedade – não por regular os negócios para promover e fornecer o bem-estar de homens e mulheres.

ÉPOCA – O que minou a existência dos Estados-nação?
Bobbitt -
Em 1519, o pensador italiano Nicolau Maquiavel escreveu que não há muro, por mais grosso que seja, que não possa ser arrasado pela artilharia. É o que acontece com as fronteiras nacionais. A proliferação de ameaças globais e transnacionais transcende as fronteiras dos Estados. Catástrofes ambientais, migração, doenças, a ampla distribuição de armas de destruição em massa e do terrorismo não têm fronteiras.

ÉPOCA – Como será o Estado no futuro?
Bobbitt
- O fim do Estado-nação não é o fim do Estado, que sempre será necessário para proporcionar segurança, organização fiscal e lei. O Estado não está morrendo, apenas sofre mais uma de suas transformações periódicas. Se a mudança será boa ou ruim, só o tempo dirá. A nova sociedade política mundial será ditada pelas regras do mercado, e o futuro Estado-mercado será coordenado por uma ordem jurídica mundial, supranacional.

ÉPOCA – Quando o senhor escreveu seu livro, as nações emergentes que integram os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e a recém-integrada África do Sul) não eram as potências que são hoje. Esses países se enquadram na definição de Estado-mercado?
Bobbitt -
Perfeitamente. Os emergentes evoluíram de modelos de governo de Estados-nação para Estados-mercado. Índia e China usavam o aparato político para comandar a economia. Um dia saíram desse modelo, se abriram e se integraram ao Estado-mercado. Agora participam do comércio mundial e suas economias afetam e são afetadas pelo mercado global. Tiraram da posição abaixo da linha da pobreza cerca de 40% de sua população e dobraram suas receitas. Nunca ocorreu nada parecido em um período tão curto de tempo. Isso aconteceu por causa da integração ao Estado-mercado.

ÉPOCA – O senhor acredita no declínio do poder americano?
Bobbitt -
Sou uma das poucas pessoas nos Estados Unidos a duvidar da tão propalada decadência do poder americano. Todo mundo acha que a China vai puxar o tapete americano e tomar o lugar dos Estados Unidos no pedestal da condução mundial. Duvido. A participação dos Estados Unidos na economia mundial é gigantesca, e nossas Forças Armadas são incomparáveis. Os Brics certamente se tornaram influentes e serão ainda mais. Mas isso não tem nada a ver com o declínio dos Estados Unidos. Há uma equação errada quando se diz que o crescimento de outros países tirará a força americana. Para mim, quanto mais os outros países do mundo se tornam prósperos e livres, mais os Estados Unidos ganham.

ÉPOCA – Como isso se manifesta na prática?
Bobbitt -
Imaginemos que você é um estudante. Você se graduou, se formou, é um ph.D. Você é natural de uma pequena aldeia no Texas e volta para morar lá. Você não vai se sentar com os caipiras de seu vilarejo e conversar naturalmente. Vai achá-los incultos e eles vão achar você pretensioso e pedante. Você vai querer se sentar com pessoas cultas e educadas. Vale o mesmo para os países. Um mundo em que Brasil, Rússia China, Índia e outros fiquem mais ricos não é um mundo em que os Estados Unidos terão menos influência ou poder. Ao contrário. É um mundo em que os diálogos serão mais abertos e inclusivos.

ÉPOCA – Nesse novo mundo, uma disputa por poder entre China e Estados Unidos não é possível?
Bobbitt -
A China não pretende assumir o papel dos Estados Unidos como força hegemônica global. Está interessada na economia e nas questões locais de sempre: a influência regional, a relação com Taiwan, o Leste Asiático e os conflitos no Mar do Japão. Não acredito em uma nova Guerra Total, longa e envolvendo nações em busca de poder hegemônico. Acredito em pequenos conflitos e intervenções periódicas, coordenadas por um conjunto de nações aliadas para garantir a manutenção do Estado-mercado ante as verdadeiras ameaças, como o terrorismo moderno, que não vem sendo combatido corretamente.

ÉPOCA – Por quê?
Bobbitt - Os Estados pensam que conhecem e entendem o terrorismo, mas não conhecem. Os governos ainda pensam que o terrorismo moderno é igual ao adotado por grupos como o IRA (Exército Republicano Irlandês), o ETA (Pátria Basca e Liberdade), os vietcongues. Pensam que é apenas mais um exemplo do tipo de terrorismo que havia na era dos Estados-nação. Pensam assim porque se acostumaram a enfrentar a ameaça do terrorismo nacionalista. Mas o terrorismo mudou. A al-Qaeda é uma organização terrorista descentralizada, desvinculada de nacionalismo, totalmente nova em relação ao terrorismo do passado. O 11 de setembro foi um sinal desse terrorismo do Estado-mercado, que ainda não foi compreendido. É preciso reforçar as alianças, para os parceiros dos EUA perceberem que a vulnerabilidade americana é, na verdade, a vulnerabilidade do mundo inteiro.
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Fonte: Revista ÉPOCA on line - 07/10/2011

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