sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Memórias da meninice em Schulz e Pompeia

Eliana Cardoso*
Donos de estilos quase diametralmente opostos, Bruno Schulz e Raul Pompeia compartilham os temas da memória e da puberdade em obras com marcas autobiográficas. Ambos deixaram poucos escritos: Schulz, dois livros de contos; Pompeia, um romance. Ambos morreram jovens de mortes trágicas: Schulz assassinado por guardas nazistas; Pompeia, suicídio numa noite de Natal. Ambos são grandes ficcionistas, cada um à sua moda. Em "Lojas de Canela", a imaginação surrealista transforma a realidade cotidiana em incidentes fantasmagóricos. Em "O Ateneu", ao contrário, apesar do ecletismo estilístico de Pompeia, o narrador não perde o sentido duro da realidade.
Publicado pela primeira vez em 1934, "Lojas de Canela", de Bruno Schulz (tradução de Henryk Siewierski, Imago, 1996), é uma pequena coleção de contos admirados mundo afora. As histórias se passam numa cidadezinha da Polônia entre um grupo pequeno de personagens. O narrador é ao mesmo tempo o menino e o adulto a descrever os eventos na primeira pessoa. Schulz inova ao fundir os dois pontos de vista (o da criança e o do adulto) num único narrador. O pai do menino ocupa posição de destaque. A mãe tem importância menor. Adela, a empregada prática e sensual, domina a família e me lembra a doméstica do filme "Cria Cuervos", de Saura.
Embora o pai tenha um caráter excêntrico, as situações são bastante comuns. No conto que dá nome ao livro, o pai se comunica com um mundo invisível que divide com o gato da família. Para distrair o marido, a mãe providencia uma ida ao teatro. Antes que a cortina se levante, o pai observa que esqueceu em casa sua carteira com dinheiro que o menino-protagonista-narrador volta para buscar.
Imagem da Internet -Bruno Schulz
Na noite clara de inverno, a imaginação do menino cria um mapa dos bairros familiares. A cidade se dissolve no tecido dos sonhos, onde ele procura suas adoráveis lojas de canela, repletas de curiosidades e livros vindos de lugares exóticos. O garoto vira numa rua que conhece e ela se transforma dando lugar a jardins e casas ornamentadas que, por sua vez, se metamorfoseiam no prédio do Ginásio. O narrador se recorda das aulas de desenho do Professor Arendt. Procurando a sala de aula, se encontra na ala do diretor e sua luxuosa residência particular. Encabulado com a ideia de que poderia ser pego espiando, corre para a rua, onde o cocheiro de um velho fiacre o convida a ir com ele.
Ao ver um grupo de colegas em frente de um botequim, o cocheiro desce da boleia, enquanto o menino se entrega à vontade do cavalo inteligente. O fiacre deixa a cidade e se move numa belíssima paisagem envolvida pelo perfume de violetas sob o céu estrelado.
A certa altura, o cavalo parou. O menino desceu do fiacre e notou que o cavalo arfava e tinha lágrimas nos olhos. Viu uma ferida negra e enorme na barriga do cavalo. "Por que você não me disse nada?", o menino perguntou. O cavalo respondeu: "Meu caro, é para você". E ficou pequeno como um cavalinho de madeira. O garoto sentiu-se leve e feliz. Correu de volta à cidade, onde se encontrou com os coleguinhas da escola e passeou com eles, "sem saber se era a magia da noite prateando a neve ou se já amanhecia..."
A realidade do mundo animista de Schulz é fluida e irracional. À moda de Platão, Schulz rejeita a evidência objetiva dos sentidos. Pessoas e objetos mudam de forma e distorcem o tempo e o espaço. A narrativa empresta credibilidade às ruas fantasmagóricas, casas sem portas, cavalos que falam. Artista do fantástico como Marc Chagall, mostra visões que celebram paisagens mágicas em noites estreladas. Schulz torna reais as alucinações de seu herói. Elas são convincentes em parte porque vêm embrulhadas em metáforas de efeitos pictóricos poderosos. Fiacres se movem como baratas. Montanhas se levantam como suspiros de felicidade. Jardins se transformam em parques que viram florestas.
O conto "A Rua dos Crocodilos" carrega uma ambiguidade terrível. O leitor nada sabe sobre a cidade do belo mapa encontrado na gaveta da escrivaninha do pai. A cidade tem um bairro novo e decrépito onde tudo é cinzento, opressivo, hipnótico. A conversa, decadente. As lojas são fachadas para a venda de material pornográfico. História da vida moderna e da degradação resultante do triunfo da comercialização de todas as coisas e de nossos sentimentos, o conto é uma fantasmagoria criada de material degradável. O mundo feito de "papier mâché" nasce e morre com a imaginação que o produziu. Onde está a realidade? Enganadora, parece existir apenas num mapa.
A consciência do adulto se sobrepõe e se confunde com a consciência infantil, tornando a realidade mais densa e opaca do que aquela disponível para a maioria dos observadores, confinados num único momento e num só espaço. A percepção sintética do tempo provoca estranhamento do leitor, que, logo em seguida, a percebe como impressionantemente realista. Sujeito e objetos também se misturam graças à sensualidade e à densidade das associações psicológicas. A chave para diferentes passagens está na memória, que torna intercambiáveis objetos e lembranças de objetos. A realidade frágil como uma folha de papel se produz pela metade, sob a constante ameaça de se transformar em devaneio. É difícil classificar a obra de Schulz. Surrealista? Simbolista? Expressionista?

Imagem da Internet - Raul Pompéia

Há um enorme contraste entre o lirismo das memórias de Schulz e o retrato crítico que Raul Pompeia faz do colégio de elite no fim do século XIX. Mas, assim como é difícil classificar o estilo de "Lojas de Canela", também não se pode definir "O Ateneu" como realista em sentido estrito. A plasticidade nervosa de alguns ambientes e de alguns personagens dá ao livro de Pompeia um tom impressionista, como na descrição da doméstica jovem (ao contrário da doméstica madura de Schulz ou de Saura), dotada de escancarada sexualidade:
"Ângela tinha cerca de vinte anos [...] Grande carnuda, sanguínea e fogosa, era um desses exemplares excessivos do sexo que parecem conformados expressamente para esposas da multidão. [...] Atirada de modos, como o ditirambo do amor efêmero; vazia como as estátuas ocas; sem sentimentos, material e estúpida, possuía, entretanto, um segredo satânico de graduar os largos olhos de sépia e ouro, animar expressões no rosto que dir-se-ia viver-lhe na face uma alma de superfície, possante, capaz de altos martírios da ternura."
Ao mesmo tempo, o gosto mórbido do narrador pelo grotesco e pela caricatura deforma o mundo do adolescente e dá ao livro um caráter expressionista:
"Eu queria a realidade, morte ao vivo. [...] O cadáver do criado estava em condições; com a vantagem do adereço dramático do sangue e do crime. [...] Guardava ainda a contorção esquerda da agonia; à boca fervia-lhe um crivo de espuma rosada [...] os olhos inteiramente abertos". 
Você, como eu, leu "O Ateneu" antes do vestibular e se lembra bem de que Sérgio, o narrador, recria dois anos vividos num internato para meninos de memória. Sérgio sente afeto pela mulher de Aristarco, o diretor do "Ateneu", execrado como tirano, encarnação do mal, figura do poder arbitrário, narcisista e ambicioso. O narrador não esconde o jogo masculino-feminino das relações entre alunos na puberdade. A memória dos episódios mais cruéis da vida do internato e os tons sombrios dos retratos revelam o ressentimento do autor: "O romancista se vinga", disse Mário de Andrade. E o narrador também oferece uma interpretação de seu livro através de discursos proferidos por um dos personagens, o Dr. Cláudio: "Não é o internato que faz a sociedade, o internato a reflete. A corrupção que ali viceja vai de fora", enquanto a escola e a sociedade fingem ignorar a perversidade sobre a qual se fundam suas instituições.
Entre as diferenças que separam Schulz e Pompeia também está a perspectiva em relação ao tempo. Em Schulz, à beira do sono "o tempo foge despercebido e corre desigual, como se fizesse nós na passagem das horas". Em Pompeia, não é o tempo, mas "é a vida que foge". O pai de Sérgio lhe escreve de Paris: "O futuro é corruptor, o passado é dissolvente, só a atualidade é forte".
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*Eliana Cardoso escreve semanalmente neste espaço, alternando resenhas literárias (Ponto e Vírgula) e assuntos variados (Caleidoscópio). Eliana Cardoso é PhD em economia pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT). É professora titular da Fundação Getulio Vargas (FGV), em São Paulo. Foi professora catedrática da Fletcher School (Tufts University) e professora visitante do MIT e das universidades de Yale e de Georgetown. Trabalhou no Fundo Monetário Internacional (FMI), no Banco Mundial e no Ministério da Fazenda. Eliana é uma estudiosa de escritores de língua inglesa e brasileiros. É autora de nove livros. “Fábulas econômicas”, da editora Pearson, e “Mosaico da Economia”, da editora Saraiva, são os mais recentes.Fonte: Valor Econômico on line, 14/10/2011

http://www.elianacardoso.com/

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