sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A sensação do século

Por Diego Viana
De São Paulo

Divulgação/Divulgação
Cena do filme "Gamer":
Shaviro mostra como a tecnologia que produz as obras se reflete nelas; por exemplo,
como o cinema de ação está ficando parecido com jogos eletrônicos.

Uma pergunta estranha, mas bastante atual, é o ponto de partida para o livro "Post-Cinematic Affect" (Zero Books, 200 págs., R$ 13,57), do crítico cultural americano Steven Shaviro, da Wayne State University: "Qual é a sensação de viver no começo do século XXI?" Já nos anos 1950, o teórico da mídia canadense Marshall McLuhan demonstrou que mudanças nos meios de produzir e se comunicar alteram também "as proporções dos sentidos". McLuhan se referia ao advento da televisão, mas hoje os novos meios são muitos. Não só as tecnologias de computação em rede influem na vida contemporânea, mas também os celulares, o sistema financeiro globalizado, o comércio por grandes cargueiros guiados por GPS e a possibilidade de gerir informaticamente os estoques. As consequências, para o autor, são "mudanças massivas na sensação de estar vivo". São "mudanças de humor, sensibilidade, modos de atenção e memória", imperceptíveis no dia a dia, mas detectáveis por outros meios.
Shaviro parte da premissa de que é difícil conhecer as particularidades do tempo em que se vive. Para entendê-las, é preciso examinar a produção cultural. "São mudanças tão novas e tão pouco familiares que mal temos vocabulário para descrevê-las." O exame permite enxergar como o público se relaciona com suas estrelas, como a tecnologia que produz as obras se reflete nessas obras e como uma mídia influencia as demais - por exemplo, como o cinema de ação vai se tornando parecido com jogos eletrônicos. Shaviro cita o filme "Videodrome", de David Cronenberg (1983), em que o personagem Brian O'Blivion [um trocadilho com "oblivion", o completo esquecimento] afirma que "a batalha pelas mentes será lutada na arena do vídeo".
Estendendo a afirmação aos meios do século XXI, Shaviro diz que a mídia é o campo de batalha porque é, ao mesmo tempo, parte do aparato de produção, uma ferramenta para gerar e modular a subjetividade e um instrumento de comunicação que atravessa as conexões e desconexões entre indivíduos e comunidades. "Há lutas sobre o conteúdo e as formas; questões sobre quem as possui, quem pode falar por elas, a quem se dirigem, como estão distribuídas, o que implicam."
"A disciplina da escola, o ritmo da fábrica
e a rigidez familiar deram lugar a exigências
de adaptação rápida e
ocupações fluidas"
É bem sabido que o cinema começou a perder sua posição central na cultura com o advento da televisão, nos anos 50, e a própria televisão passou a ceder espaço no fim dos anos 90 para mídias digitais. Mesmo assim, o livro examina quatro obras, todas feitas para o cinema ou a televisão. "Gamer", de Mark Neveldine e Brian Taylor (2009), "Traição em Hong Kong", de Olivier Assayas (2007), e "Southland Tales, o Fim do Mundo", de Richard Kelly (2006), são filmes para a tela grande. "Corporate Cannibal" é o videoclipe de Nick Hooker para a canção de Grace Jones (2008).
Para Shaviro, mais do que examinar diretamente as novas mídias, é preciso entender como elas modificam as que já existiam. Ele se apropria de um termo do sociólogo Raymond Williams, "estruturas de sensação", para se perguntar como os filmes do século XXI dão voz a "uma sensibilidade ambiente e flutuante". Entender essa sensibilidade é conhecer a sensação de viver no início do século XXI. O autor cita a trilogia "Atividade Paranormal" (2007, 2010 e 2011), em que, segundo ele, a sensação de terror advém da ruptura das relações de tempo e espaço. Quando forças demoníacas perturbam o sono dos protagonistas, submetendo-os a novos "ritmos temporais de terror e antecipação", os humanos tentam afastar as forças do mal usando tecnologias como computadores portáteis e câmeras digitais para restabelecer a ordem. "São as mesmas tecnologias que produziram os filmes", observa Shaviro. A tecnologia, assim, é o principal vínculo entre as famílias humanas e o "outro lado". O enredo sugere um entendimento de como as tecnologias digitais carregam consigo as relações sociais e de produção implicadas em sua invenção e seu uso.
Imagem da Internet - Rosto de Greta Garbo
O capítulo sobre "Traição em Hong-Kong" introduz uma reflexão sobre o estrelato. Em "O Rosto de Garbo", o semiólogo francês Roland Barthes marcou a diferença entre o estrelato da sueca Greta Garbo (cujo auge foi nos anos 30) e o da inglesa Audrey Hepburn (auge nos anos 60). Shaviro compara as estrelas de outrora a Asia Argento, de "Traição em Hong Kong", uma "estrela pós-cinemática". Barthes descreve o rosto de Greta como uma figura de beleza essencial, "descida de um paraíso onde as coisas são formadas na mais clara das luzes". Já o rosto de Audrey não é uma essência, mas uma figura individualizada, um "estrelato modernista". Asia, para Shaviro, é um novo tipo de estrela, "imanente e corporificada". Para Barthes, "o rosto de Garbo é uma Ideia, o de Hepburn é um evento". Shaviro argumenta que o rosto de Asia Argento não é nenhum dos dois, mas uma superfície em branco, "sobre a qual todos os afetos podem atuar ao mesmo tempo, mesmo os contraditórios".
A ideia da superfície em branco ajuda a entender por que o início de século é caracterizado por noções como fragmentação, imediatismo, virtualidade, atenção estilhaçada e "a sensação alucinante de que as coisas são mais intensas no curto prazo e têm menos seguimento no longo", diz o autor. Escrevendo sobre o videoclipe de "Corporate Cannibal", Shaviro observa que o diretor trabalha com os extremos do preto e branco, criando um fundo simples sobre o qual produz uma série ilimitada de modulações da imagem de Grace Jones. A modulação é tecnológica, sublinha o autor.
Imagem da Internet - Grace Jones
Hooker usa programas de computador para reproduzir o rosto e o corpo de Grace Jones em uma infinidade de variações, a partir de uma matéria-prima também técnica (porque obtida pela eliminação de todas as tonalidades cromáticas), mas simplificada até o máximo possível. A modulação, diz Shaviro, precisa dessa base fixa para se manter sob controle e, com isso, "aconteça o que acontecer, as variações podem ser capturadas e neutralizadas".
Shaviro aproxima a noção de modulação e o imperativo da flexibilidade, com seus corolários "adaptabilidade" e "versatilidade", nos mercados de consumo e trabalho do início de século XXI. Ao contrário do que ocorria no século XX, dominado pela produção industrial de caráter fordista, os moldes fixos são rejeitados pela subjetividade contemporânea. A disciplina da escola, o ritmo do chão de fábrica, a rigidez familiar, tudo isso ficou para trás e deu lugar a exigências de adaptação rápida, produtos individualizados e ocupações fluidas. O videoclipe de Grace Jones explora essa variabilidade nas últimas consequências.
Para resumir o vínculo estreito que descobre entre os processos de produção dos bens culturais e a própria sensação de pertencer à cultura contemporânea, o autor evoca uma frase do poeta francês Stéphane Mallarmé: "Tudo se resume à estética e à economia política". As obras estéticas, segundo Shaviro, ajudam a revelar com um pouco mais de clareza o mundo onde vivemos e as dificuldades que enfrentamos. Mais do que isso, permitem imaginar alternativas. Por isso, explica o autor, a ficção científica é um gênero particularmente interessante, porque se preocupa não em prever o futuro, mas em extrapolar futuros a partir do presente, "para trazer à luz tanto seus potenciais quanto seus perigos".
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Fonte: Valor Econômico on line, 14/10/2011

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