MOACYR SCLIAR*
Na semana passada, em artigo publicado na revista Science online, pesquisadores americanos do J.Craig Venter Institute anunciaram que haviam conseguido colocar numa célula viva um genoma sintético (o genoma, vamos lembrar, é o conjunto dos genes que, herdados, vão controlar todas as características do ser). A mesma equipe, liderada por Craig Venter, já havia sintetizado quimicamente um genoma bacteriano e também transplantado o genoma de uma bactéria para outra. Agora, os especialistas juntaram as duas técnicas para criar o que chamaram de “célula sintética”.
A rigor, a célula não é sintética. A bactéria natural já existia; o que os cientistas fizeram foi colocar nela uma espécie de enxerto, de microscópica prótese. Só que se trata de um enxerto, ou de uma prótese, com extraordinário poder, capaz de determinar como a célula bacteriana vai funcionar. Esta célula será, portanto, uma espécie de robô; poderá ser programada para fabricar substâncias medicamentosas, vacinas ou outros produtos. Enfim, abre uma gama de excitantes, ainda que não imediatas, possibilidades.
Pergunta: pode-se dizer que, com isto, criou-se vida no laboratório?
Não exatamente. Foi produzido o genoma, que é uma parte importante da célula, mas não é a célula toda. Nesta temos ainda o protoplasma, que é matéria viva, com uma estrutura extremamente complexa. Produzir protoplasma com substâncias químicas é coisa que ainda não se conseguiu, um desafio que tem um sentido até metafísico, lembrando aquela passagem do Antigo Testamento em que a serpente induz Adão e Eva a comer do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal, dizendo: “Sereis como deuses”.
Propaganda enganosa, claro. E, para um crente, ultrajante: só Deus é Deus, só Deus pode criar vida. Nada de modificar a narrativa bíblica para algo do tipo: “No começo criou Craig Venter os céus e a terra” etc.
Misto de empresário e cientista, Craig Venter não deve estar muito interessado nas implicações filosóficas ou religiosas dessa pesquisa, atrás da qual, aliás, há muita grana. A Exxon ali investiu pesado: há possibilidade de que as bactérias fabriquem biocombustível, o que seria uma boa alternativa para o problemático petróleo. De qualquer modo, o experimento demonstrou, mais uma vez, como é tênue a separação entre matéria inanimada e vida, coisa que fica evidente com os vírus, entidades difíceis de classificar. Talvez se consiga produzir protoplasma sintético equipando-o com um genoma sintético; seria uma grande e revolucionária conquista. Mas o problema para nós, humanos, não é o de criar a vida; o furo está mais abaixo (ou mais acima). O problema é o que fazer com a nossa vida. E, a resposta, nenhum laboratório a dará.
____________________________*Médico. Escritor. Colunista da ZH.
Fonte:ZH, 25/05/2010
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